Vinte Mil Léguas,

Ep. 4: Um novo estoque de metáforas, pt. II + Microepisódio #1

Na segunda parte do episódio, vemos como só o tempo pode explicar a existência das diferentes camadas do solo e o surgimento e a extinção das espécies

21set2020

O novo episódio do Vinte Mil Léguas está no ar! Ouça agora Um novo estoque de metáforas, pt. II, o quarto episódio da temporada de estreia do podcast, dedicada a Charles Darwin. Além do episódio da semana, um microepisódio especial também está disponível – saiba mais abaixo. O Vinte Mil Léguas é realizado pela Quatro Cinco Um em parceria com a Livraria Megafauna e com o apoio do Instituto Serrapilheira.

Nesta segunda parte do episódio, continuamos o mergulho na época intelectual em que Darwin se formou. É a época em que um escritor tenta catalogar os tipos humanos como os cientistas faziam com os tipos animais. Também é a época em que a própria ideia do tempo revoluciona as ciências. Como na famosa reflexão de Santo Agostinho, o tempo parece algo óbvio, imediato, mas quando paramos para pensá-lo e entender sua natureza, percebemos que não é tão óbvio assim. A noção do tempo como um agente constituidor do mundo natural foi responsável por uma grande guinada no pensamento de Darwin. O tempo como criador e revelador das coisas, o tempo na literatura e na vida de cada um de nós, o tempo geológico, profundo: ouça mais sobre isso no mais novo episódio do Vinte Mil Léguas.

 

Aspas

“O acaso é o maior romancista do mundo; para ser fecundo, basta estudá-lo.”
Honoré de Balzac, em A comédia humana

Pessoas

Georges Cuvier

O francês Cuvier tornou-se uma celebridade das ciências por conta do seu método único de interpretação de ossadas e fósseis, a ponto de Balzac tê-lo chamado de “o poeta dos mundos perdidos”. Nisso ele foi brilhante: dizia que a natureza deveria ser nosso único livro. Cuvier criou um sistema científico que lhe permitia, a partir de um osso ou fragmento de osso, deduzir e recriar a espécie à qual o fragmento pertencia. Com essas ideias, ajudou a fundar a ciência da paleontologia, percebendo que havia animais que andaram sobre a Terra, mas que desapareceram completamente. Ele foi, portanto, um dos primeiros a postular a ideia da extinção de espécies. O que Cuvier tinha de genial como cientista, no entanto, ele também tinha de falhas de caráter. O elogio fúnebre que ele fez de seu colega Lamarck, contado nos 33 minutos do episódio, é um exemplo disso – só faltou cuspir no morto. Ele também tinha um defeito de caráter que é mais comum do que se admite, apesar de asqueroso e com consequências mortais: Cuvier defendeu diversas formas de racismo científico – tema que será ainda abordado no podcast. Ele chegou a afirmar que a “raça caucasiana” seria superior às demais em “gênio, coragem e atividade”, além de ter descrito das maneiras mais grotescas aquilo que ele considerava raças inferiores.


Ossos do Homo diluvii testes, o “homem que testemunhou o dilúvio”. Cuvier estragou a festa ao afirmar que o fóssil pertenceria de fato a um anfíbio extinto. Crédito: Teylers Museum

Jean-Baptiste Lamarck

Apesar de Lamarck ser muito lembrado como o criador da teoria “errada” sobre a história das espécies, ele foi pioneiro em defender que elas de fato mudavam e se transformavam ao longo do tempo – coisa da qual Cuvier discordava e que era um dos motivos de os dois terem sido antagonistas. Lamarck, nascido em 1744 e falecido em 1829, era um jovem soldado quando começou a se interessar por botânica e colecionar plantas. Após aposentar-se do exército por ferimentos sofridos, passou a perseguir os estudos e a carreira de naturalista, conseguindo alçar-se a uma posição no Jardim Real (o Jardin des Plantes, onde hoje há uma estátua em sua homenagem). Quando o Museu de História Natural da França foi criado, ele se tornou professor de zoologia. Controvérsias à parte, Lamarck estava certo em sua defesa da transformação dos seres e de que deveria haver leis ditando as variações ao longo do tempo. Ele teve grande influência sobre Darwin, e algumas de suas ideias são hoje revisitadas pelo campo da epigenética, que estuda justamente alterações nas espécies que não ocorrem por transmissão de genes.


Desenho e mensagem de Mary Anning, de 1823, sobre uma de suas descobertas, o plesiossauro, réptil marinho. [Crédito: Wellcome Collection]

Mary Anning

Se Cuvier foi o pai da paleontologia, a mãe foi Mary Anning. Mary nasceu em uma família inglesa de classe baixa na costa sudoeste da Inglaterra, em 1799. Ainda pequena, tornou-se ajudante do pai, que era marceneiro e colecionador de fósseis amador. Alguns dos fósseis coletados e tratados com ajuda da filha eram vendidos em sua loja. Mary praticamente não teve educação formal, mas sabia ler e estudava por conta própria geologia e anatomia. Cada vez mais experiente em localizar e identificar fósseis, ela desenterrou espécimes monstruosos, como o primeiro pterossauro encontrado na Grã-Bretanha e os primeiros esqueletos completos de várias outras espécies do período jurássico. A costa onde se situa a cidade natal de Mary é hoje chamada de “costa jurássica” e tornou-se patrimônio cultural da humanidade pela quantidade de fósseis e ossadas encontrados no local. Mary Anning era a inteligência certa no lugar certo. Com o tempo, museus e colecionadores do mundo inteiro solicitavam e compravam seus achados, e naturalistas e professores vinham consultá-la atrás de seu conhecimento ímpar sobre o assunto. Por sua classe social e por ser mulher – e também por conta de um sem número de cientistas que nunca lhe deram os devidos créditos –, sua contribuição e suas ideias não foram reconhecidas em vida. Para saber mais sobre Mary e seus achados, recomendamos este texto, em inglês, do portal The Conversation. Uma peça infantil sobre a paleontóloga e caçadora de dinossauros, Mary e os monstros marinhos, da Companhia Delas de Teatro, esteve recentemente em cartaz resgatando a história de Anning.


Duria Antiquior. Cena inspirada pelos achados de Mary Anning. Litografia de Georg Brasch a partir de arte de aquarela de Henry de La Béche. [Crédito: Wellcome Collection]

Philip Henry Gosse

Igualmente apaixonado pelas ciências naturais e pela Bíblia, Gosse tentou explicar o mistério dos fósseis e “desatar o nó geológico” criando uma teoria que contasse a história da Terra sem contradizer seus princípios religiosos. Ouça mais sobre Gosse e sua arrojada e curiosa teoria do umbigo de Adão no microepisódio abaixo.

Ideias & invenções

Catastrofismo e uniformitarismo

A Terra e as espécies se formaram a partir de grandes acontecimentos ou estaria o planeta sempre em constante movimento e transformação? Essa é a diferença entre o pensamento catastrofista, subscrito por Cuvier, e o uniformitarismo defendido por Charles Lyell, sobre quem falamos na última newsletter. Como ouvimos a partir dos 24’40’’ do episódio, este debate seguiu vivo até praticamente a época de Charles Darwin. Parece mais sensato pensar que a natureza e o relevo se formaram por alguns eventos de grande repercussão, mas foi o uniformitarismo de Lyell que se provou correto: forças naturais menores, agindo constantemente ao longo de uma grande escala de tempo, moldaram o planeta. Ponto para Lyell e seu poder imaginativo, digno de um poeta ou romancista: sem isso, como chegar a intuir escalas de tempo tão absurdas quanto ele intuiu? Essa peça – o fator tempo – era justamente a que faltava para complementar a discussão científica da época e permitir novos avanços e teorias.

Tempo profundo

Lyell foi um dos primeiros a projetar uma história do planeta na casa dos milhões e bilhões de anos, e foi também responsável por inculcar em Darwin a ideia de que o tempo, o “tempo profundo”, seria responsável pela formação tanto do relevo quanto da variedade da vida sobre a Terra. Para Darwin, que leu Lyell enquanto ainda estava na universidade e que viu e viveu tudo aquilo a bordo do Beagle, tentar aplicar o tempo à biologia foi um salto natural. Para experimentar o tempo geológico e ler sobre as espécies em cada período, confira este mapa interativo, em inglês – navegue usando as setas do teclado.

 

Eventos

As pedras mentirosas de Beringer

Antes de Cuvier, de Anning e de outros paleontólogos pioneiros, entender os fósseis e o que eles podiam revelar sobre a história da Terra e das espécies era um grande mistério da ciência. Um caso interessante é o de Johannes Beringer, professor na Universidade de Wurtzburgo, na Alemanha, que publicou, no começo do século 18, um longo tratado sobre fósseis que ele havia encontrado. Eram especialmente curiosos: muitos tinham desenhos como sóis e luas, estrelas, um bebê humano ou animaizinhos simpáticos. Ele encontrou até alguns com traços de letras do alfabeto hebraico soletrando o nome de Deus! Se você achou que não eram fósseis coisa nenhuma, acertou. As pedras desenterradas eram cerâmicas plantadas por dois colegas de Beringer, que, cansados de sua credulidade e arrogância, queriam vê-lo passar vergonha em praça pública. O plano deles deu certo: Beringer é até hoje lembrado pelo caso das ‘pedras mentirosas’ (Lügensteine). Pode parecer óbvio que fóssil nenhum traria escrito o nome de Deus, mas, como Darwin resumiu bem: “é fácil ignorar fenômenos, mesmo que óbvios, antes de eles terem sido observados por alguém”. O próprio Darwin teve uma experiência parecida, mas com uma concha tipicamente tropical encontrada na Inglaterra, e ainda por cima longe do litoral. Ele consultou um professor, que logo dispensou o caso dizendo que alguém tinha jogado a concha lá: se ela estivesse mesmo incrustada no solo inglês, toda a geologia teria de ser jogada no lixo, já que seria impossível dar conta do fenômeno. Ao fim de sua vida, Darwin refletiu sobre o episódio como algo que o fez ver como a ciência se produz pelo agrupamento de muitos fatos, a partir dos quais se depreendem leis ou conclusões – fatos isolados que proponham derrubar o monumento científico precisam ser encarados com cautela.

 


Museu de História Natural da França. Vista da Grande Galeria da Evolução (prédio dedicado à zoologia) e do Jardin des Plantes. [Crédito: Benh LIEU SONG]

A ciência se torna assunto de Estado

É uma constante em países desenvolvidos que a maior parte do investimento em pesquisa seja oriundo dos governos. No complexo processo da Revolução Francesa de 1789, as ciências e a pesquisa saíram fortalecidas, como Pedro Paulo Pimenta conta a partir dos 4’30’’ do episódio. Durante a Convenção, entre 1792 e 1795, argumentou-se que a pesquisa científica deveria passar a ser responsabilidade da República, já que isso iria trazer grandes benefícios materiais futuros. A França já era um local de efervescência do pensamento científico nesse período e, após a Revolução, Paris tornou-se um centro do pensamento biológico. O Jardim do Rei foi transformado no Museu de História Natural, e os espólios de guerra das invasões comandadas por Napoleão – sempre havia uma equipe científica junto aos exércitos – também se tornaram propriedade do povo da França. Hoje em dia vemos discussões acaloradas sobre quem seriam os verdadeiros donos desse patrimônio cultural.

Referências do episódio

  • Ed Simon, “How Erasmus Darwin's poetry prophesied evolutionary theory”, no portal Aeon
  • Erasmus Darwin, The Temple of Nature.
  • Erasmus Darwin, Zoonomia.
  • Ernst Mayr, Isto é biologia: a ciência do mundo vivo. Companhia das Letras. 
  • Charles Darwin, A origem das espécies. Ubu.
  • Charles Darwin, The life of Erasmus Darwin.
  • De Vandelli para Lineu, de Lineu para Vandelli: correspondência entre naturalistas. Dantes.
  • Michael Ruse, The Darwinian Revolution: Science Red in Tooth and Claw. The University of Chicago Press.
  • Pedro Paulo Pimenta, Darwin e a seleção natural: uma história filosófica. Edições 70/Discurso Editorial.
  • Pedro Paulo Pimenta, A trama da natureza. Editora Unesp
  • Richard Holmes, The age of wonder: how the Romantic generation discovered the beauty and terror of science. Pantheon Books.
  • Stephen Jay Gould, Bully for Brontosaurus: reflections in natural history. WW Norton & Co.
  • Stephen Jay Gould, The lying stones of Marrakech: penultimate reflections in natural history. Harvard University Press.
  • William Bynum, Uma breve história da ciência. L&PM.
  • Honoré de Balzac, A pele de onagro. L&PM Pocket. Tradução de Paulo Neves.

vinte mil léguas recomenda

  • Jorge Luis Borges, Outras inquisições. Companhia das Letras.
  • Stephen Jay Gould, Time’s arrow, time’s cycle. Harvard University Press.