Repertório 451 MHz,

Stella do Patrocínio e a loucura no Brasil

Episódio narrativo conta como uma mulher negra e pobre foi internada à força por trinta anos em um hospício no Rio e, depois da sua morte, foi considerada poeta

13maio2022

Está no ar mais um episódio especial do 451 MHz. No mês da Luta Antimanicomial e no Dia da Abolição, apresentamos Stella do Patrocínio e a loucura no Brasil, que conta como uma mulher negra e pobre foi internada à força por trinta anos em um hospício no Rio e, depois da sua morte, foi considerada poeta.

Conhecida após sua morte pelo livro Bicho do reino e dos animais é o meu nome (2001), Patrocínio foi considerada poeta sem se definir assim. Sua poesia foi tirada dos seus falatórios, gravados nos anos 80, que entraram em domínio público recentemente; o 451 MHz é o primeiro programa audiovisual a usar esses áudios. Neste episódio, vamos ouvir a voz de Stella e descobrir outras vozes que foram abafadas dentro dos manicômios do país. 

Mais que poesia, falatório

“Aqui no hospital ninguém pensa, não tem nenhum que pense. Eles vivem sem pensar.” — Stella do Patrocínio


Stella do Patrocínio em liberdade antes da internação forçada [Acervo pessoal do sobrinho, cedido à pesquisadora Anna Carolina Vicentini Zacharias]

Stella do Patrocínio nasceu em 9 de janeiro de 1941 no Rio de Janeiro, por onde ela andava muito a pé. Sua internação forçada ocorreu em 1962, quando ela tinha 21 anos, e ela passou os próximos trinta anos encarcerada, até sua morte, em 1992. O último emprego de Stella do Patrocínio foi como empregada doméstica. 

Sua fama póstuma aconteceu com a publicação do livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, organizado pela poeta e filósofa Viviane Mosé, que saiu pela Azougue Editorial em 2001 e foi finalista do Prêmio Jabuti. Apesar de ter sido então reconhecida como poeta, ela nunca se definiu assim e não escreveu nenhuma das linhas presentes no livro. 


 

A potência das suas palavras se encontra no seu falatório (como chamava suas falas), que foi preservado em fitas pela artista plástica Carla Guagliardi, então estagiária das oficinas de arte da Colônia Juliano Moreira, entre 1986 e 1988. As conversas entre as duas foram gravadas ao longo desses anos, e Reino dos bichos e dos animais é o meu nome fez um recorte das frases de Patrocínio nesses diálogos.

Até então sob posse de Guagliardi, essas gravações entraram recentemente em domínio público, cedidas pela artista para a dissertação de mestrado Stella do Patrocínio: entre a letra e a negra garganta de carne, defendida em 2021 por Sara Martins Ramos na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). O 451 MHz é o primeiro programa audiovisual a usar esses áudios, e, assim, podemos ouvir toda a potência de uma das vozes mais expressivas da cultura brasileira que ainda é pouco conhecida.

Além de Ramos, outras duas jovens pesquisadoras dedicaram trabalhos acadêmicos sobre Patrocínio: Anna Carolina Vicentini Zacharias e Bruna Beber. Zacharias defendeu em 2020 a dissertação de mestrado Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na qual trouxe várias informações biográficas inéditas sobre Patrocínio: ela e a mãe ficaram internadas no mesmo hospício por alguns anos, ela não era analfabeta e não foi abandonada pela família, e até sobre a forma como ela assinava o próprio nome — Stella, e não Stela.


 

A tradutora e poeta Bruna Beber também defendeu, em 2021, uma dissertação de mestrado sobre Patrocínio na Unicamp: Uma encarnação encarnada em mim: cosmogonias encruzilhadas em Stella do Patrocínio, que acaba de virar livro pelo selo José Olympio, do Grupo Editorial Record. Esse ensaio sobre a sua poética segue o som da sua voz por cenários diversos, em um deslocamento surpreendente no espaço-tempo. O poeta Marcelo Ariel escreveu uma resenha da obra para a edição 57 da revista dos livros.

Patrocínio também foi tema de uma música lançada por Linn da Quebrada em 2021, “medrosa – ode à Stella do Patrocínio”, no álbum “Trava Línguas”, e a letra foi tirada do falatório gravado por Carla Guagliardi. A canção pode ser ouvida abaixo:

Colônia Juliano Moreira

Um dos pontos altos do episódio é a visita que a editora Paula Carvalho, que apresenta e assina o roteiro do programa, e Claudia Holanda, jornalista e editora do 451 MHz, fazem ao Museu Bispo do Rosário, guiadas pelo educador Rennan Carmo, que está há quatro anos na instituição, e Jurandir Jr, que estava há quatro dias no museu. O museu fica na Colônia Juliano Moreira, onde Patrocínio viveu grande parte de sua vida, no Núcleo Teixeira Brandão. As visitas são gratuitas e podem ser marcadas pelo site da instituição

A Colônia Juliano Moreira foi um antigo engenho de açúcar. A última proprietária do terreno, uma baronesa, perdeu a posse da propriedade, que passou para o poder público, e o local foi transformado na Colônia de Psicopatas de Jacarepaguá, em 1924. Mais tarde, o local passou a ser chamado Colônia Juliano Moreira, em homenagem ao médico psiquiatra negro que defendia a tese de que as doenças mentais eram causadas menos por características hereditárias e mais por consequência do ambiente social. Para conhecer mais sobre a história desse médico, é possível ouvir o episódio sobre ele no podcast Vidas Negras, apresentado por Tiago Rogero.

O manicômio foi o lugar de internação de Arthur Bispo do Rosário, que, após ser internado, foi reconhecido como grande artista plástico. Apesar do seu passado controverso, atualmente a Colônia é um bairro que ensina sobre como conviver com a loucura de uma maneira natural.

Saúde mental hoje no Brasil


 

No mês da Luta Antimanicomial, celebrado em 18 de maio, a Quatro Cinco Um traz na edição impressa um especial sobre a loucura, tendo o psiquiatra martinicano Frantz Fanon na capa. Veja o índice da edição. O assunto também já havia sido tratado no episódio Vozes do hospício, do 451 MHz.

Entre os textos está “A contrarreforma psiquiátrica”, da psicóloga Melissa de Oliveira Pereira, que mostra os retrocessos que a Reforma Psiquiátrica e a Luta Antimanicomial vêm sofrendo no país, desde o governo de Michel Temer e de forma mais intensa no mandato de Jair Bolsonaro. Um dos golpes no sistema então instituído foi que dados oficiais sobre saúde mental deixaram de ser publicizados, como antes era garantido pelo documento Saúde Mental em Dados, informativo do Ministério da Saúde ausente desde 2015.

No entanto, o Painel Saúde Mental: 20 anos da lei 10.216 de 2001 (lei conhecida por reformular a antiga legislação de saúde mental brasileira), publicado em 2021 pela organização Desinstitute a partir de uma série histórica de dados federais, comprova o aumento do financiamento de espaços asilares e o desinvestimento na rede de serviços territoriais. Por exemplo, de 2002 a 2020 foram cortados mais de 37 mil leitos de psiquiatria no Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Esses recursos foram substituídos por incentivos ao aumento de leitos em hospitais privados ou em comunidades terapêuticas, que em geral são administradas por pastores, igrejas e instituições religiosas, assim como o incentivo à eletroconvulsoterapia (ou eletrochoque).

Vozes

Carla Guagliardi


Carla Guagliardi [Thomas Florschuetz]
 

A artista plástica carioca Carla Guagliardi era estagiária e fazia oficinas de arte na Colônia Juliano Moreira como parte de seus estudos no Parque Lage com a professora Nelly Gutmatcher. Guagliardi e Patrocínio ficaram muito próximas durante os dois anos em que a Guagliardi fez estágio na instituição, entre 1986 e 1988. Hoje, ela é artista plástica, radicada em Berlim, e foi finalista do Prêmio PIPA 2017, que fez um vídeo sobre seu trabalho.

 

Daniela Arbex


Daniela Arbex [Acervo pessoal]
 

A jornalista mineira Daniela Arbex é autora de Holocausto brasileiro, livro-reportagem de 2013 reconhecido como Melhor Livro-Reportagem do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (2013) e segundo melhor Livro-Reportagem no prêmio Jabuti (2014). Nessa obra, ela resgata a história dos sobreviventes do maior hospício do Brasil, o Hospital Colônia de Barbacena (MG). Dentro do local, morreram 60 mil pessoas entre os anos 30 e o fim dos anos 80. Elas passavam por tratamentos desumanos, e uma política de morte administrava o lugar. Por isso fala-se em genocídio quando o assunto é o que aconteceu em Barbacena.


 

O livro foi transformado em um documentário homônimo, em 2016, pela HBO. 

O cineasta Helvécio Ratton também já havia dirigido um documentário, em 1979, que mostrava imagens fortes do Hospital Colônia de Barbacena, chamado Em nome da razão:

Marcio Rolo


Marcio Rolo [Acervo pessoal]
 

Marcio Rolo fez licenciatura e bacharelado em matemática, na Faculdade de Humanidades Pedro 2º (FAHUPE), e é servidor concursado da Fundação Oswaldo Cruz. Ele fez estágio junto com Guagliardi nas oficinas de arte feitas com as mulheres da Colônia e conheceu Patrocínio e outras mulheres internadas na Colônia Juliano Moreira. 

Natasha Felix


Natasha Felix [Agência Chaos]
 

A artista e poeta realizou junto com a poeta Bianca Chioma a performance Muito bem patrocinada — falatórios de Stella do Patrocínio, que pode ser assistida abaixo. 

Felix participou do episódio lendo obras que tratam do confinamento de pessoas em hospícios e que conversam diretamente com a história da Patrocínio, além de fazer leituras da própria Stella, a partir de “VERSOS, REVERSOS, pensamentos e algo mais…”, de Stella do Patrocínio, transcrição da psicóloga Monica Ribeiro de Souza, então estagiária de psicologia da Colônia Juliano Moreira. 

 

Rachel Gouveia


Rachel Gouveia [Acervo pessoal]
 

Rachel Gouveia é professora adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é pesquisadora e ativista do movimento Luta Antimanicomial. Ela é colaboradora frequente da Quatro Cinco Um, tendo escrito sobre a influência de Frantz Fanon na Luta Antimanicomial no Brasil e sobre o trabalho da cantora e compositora Ivone Lara na Reforma Psiquiátrica no país, além de um texto sobre a importância da Luta Antimanicomial para o registro dos falatórios de Patrocínio.


 

Gouveia também organizou, junto com Melissa de Oliveira Pereira, o livro Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira, lançado em 2017 pela editora Autografia.

Mais na Quatro Cinco Um


 

Stella do Patrocínio já apareceu tanto no 451 MHz quanto na revista Quatro Cinco Um. Ela foi tema do episódio Na encruzilhada com Stella do Patrocínio, que contou com a participação das pesquisadoras Anna Carolina Vicentini Zacharias, Bruna Beber e Sara Martins Ramos. Patrocínio também foi capa da edição impressa 51, com arte de Cássia Roriz, com textos do poeta e tradutor Guilherme Gontijo Flores, sobre como ela se tornou um patrimônio cultural brasileiro; da professora e assistente social Rachel Gouveia, sobre a importância da Luta Antimanicomial para o registro dos seus falatórios; e da curadora de arte Diane Lima, sobre a dívida que a arte moderna tem com Stella do Patrocínio

Lima também é a curadora de uma exposição que vai acontecer no segundo semestre de 2022 no Museu Bispo do Rosário, no Rio de Janeiro, que vai reunir obras de Arthur Bispo do Rosário e Stella do Patrocínio.

#DesafioStella

O #desafiostella, lançado ao final do episódio, faz uma pergunta relacionada a Stella do Patrocínio aos ouvintes. Quem der a resposta mais criativa, na opinião da equipe da revista, ganha um exemplar do livro Uma encarnação encarnada em mim, que acaba de ser lançado pelo selo José Olympio. Para participar, publique sua resposta nas redes sociais — Facebook, Twitter e Instagram — com a hashtag #desafiostella e marcando o perfil @quatrocincoum. A resposta pode ser um texto com até cem palavras ou um vídeo de um minuto. As respostas serão recebidas até o dia 31 de maio. No dia 10 de junho, o vencedor será anunciado no 451 MHz e nas redes da Quatro Cinco Um. As respostas poderão ser divulgadas no site, na newsletter e nas redes da revista.

 

Trechos 

A artista e performer Natasha Felix leu os seguintes trechos: Hospício é deus, de Maura Lopes Cançado, publicado pela editora Autêntica; VERSOS, REVERSOS, pensamentos e algo mais…, de Stella do Patrocínio, transcrição de Monica Ribeiro de Souza, tirados da dissertação de mestrado Stella do Patrocínio: Da internação involuntária à poesia brasileira, de Anna Carolina Vicentini Zacharias, da Universidade Estadual de Campinas; e Dez dias no hospício, de Nellie Bly, com tradução de Ana Guadalupe, da editora Fósforo. O episódio também apresentou parte da canção “medrosa – ode à Stella do Patrocínio”, de Linn da Quebrada.

A fonte dos dados raciais de moradores de hospitais psiquiátricos paulistas é o artigo “Cena psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do estado de São Paulo: um olhar sob a perspectiva racial”, de Sônia Barros, Luís Eduardo Batista, Mirsa Elisabeth Dellosi e Maria Mercedes L. Escuder, publicado em 2014 na revista “Saúde e Sociedade”. 

O 451 MHz tem apoio dos Ouvintes Entusiastas. Seja um você também!

O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo e da Associação Quatro CincoUm.
Direção geral: Paulo Werneck
Apresentação: Paulo Werneck e Paula Carvalho
Participação especial: Natasha Felix, Carla Gualiardi, Marcio Rolo, Daniela Arbex e Rachel Gouveia
Coordenação geral: Evelin Argenta e Vitor Hugo Brandalise
Roteiro: Paula Carvalho
Tratamento de roteiro: Vitor Hugo Brandalise
Produção: Ashiley Calvo e Gabriela Varella
Direção de locução: Vitor Hugo Brandalise
Edição: Cláudia Holanda
Sonorização: Júlia Mattos
Captação de áudio externo: Claudia Holanda
Música tema: Guilherme Granado e Mario Cappi
Trilha adicional: Daniel Limaverde
Finalização e mixagem: João Jabace
Ilustração: Rafa Campos Rocha
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: FêCris Vasconcelos
Distribuição: Bia Ribeiro
Gravado com apoio técnico dos estúdios Tyranosom e Confraria de Sons & Charutos, em São Paulo.
Neste episódio, você ouviu áudios da Stella do Patrocínio que estão em domínio público.
Foram lidos por Natasha Felix, na ordem, os seguintes trechos: Hospício é deus, de Maura Lopes Cançado, publicado pela editora Autêntica; VERSOS, REVERSOS, pensamentos e algo mais…, de Stella do Patrocínio, transcrição de Monica Ribeiro de Souza, tirados da dissertação de mestrado Stella do Patrocínio: da internação involuntária à poesia brasileira, de Anna Carolina Vicentini Zacharias, da Universidade Estadual de Campinas; e Dez dias no hospício, de Nellie Bly, com tradução de Ana Guadalupe, da editora Fósforo.
Áudio de “medrosa – ode à Stella do Patrocínio”, de Linn da Quebrada.
Para falar com a equipe: [email protected].br