A Terceira Margem do Reno,

Ep 2. Ninguém pode me negar o pertencimento a essa cidade

O contraste entre cidades segundo Annie Ernaux. A Paris dos imigrantes de Abdellah Taïa. A Berlim pós-queda do muro de Ingo Schulze e o clássico do expressionismo alemão de Alfred Döblin

23nov2022

Está no ar o segundo episódio de A Terceira Margem do Reno, o podcast de literatura em língua francesa e alemã, feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.

Ouça o episódio aqui:

Composto por nove episódios publicados quinzenalmente, o podcast narrado por Paulo Werneck, diretor de redação da Quatro Cinco Um, e Paula Carvalho, editora de podcasts da Quatro Cinco Um, trata da literatura em língua francesa e alemã e suas pontes com o Brasil. O episódio conta com participações de Vinicius Farjalla, Alexandre Ribeiro, Raquel Rolnik e Bianca Tavolari.

Partimos de um dos rios mais importantes da Europa: o Reno, que faz fronteira com a Alemanha e a França, para tratar de temas importantes para o mundo e a literatura. O rio é um ser sem fronteiras, e por isso não vamos nos limitar a elas. Aqui, autores clássicos convivem com os mais contemporâneos, e a única pátria é a língua, a alemã e a francesa, não importando as fronteiras dos Estados nacionais. 

Inspirado pelo título do conto A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras estórias, de 1962 (hoje no catálogo da editora Global), o podcast é guiado pela pergunta: onde será que fica A Terceira Margem do Reno? Para além das fronteiras nacionais, temporais e geográficas? Poderia estar na literatura? 

Continuamos nossa jornada literária visitando as cidades criadas nas páginas da literatura. Nossa primeira parada será Paris. Nossos guias serão a escritora francesa Annie Ernaux e o escritor e cineasta marroquino, radicado na França, Abdellah Taïa. Nossa segunda parada será Berlim. Aqui, nossos guias serão os autores alemães Ingo Schulze e Alfred Döblin.

Uma cidade para (não) voltar

Ganhadora do Nobel de 2022, Annie Ernaux tem um destaque merecido no panorama da literatura francesa. Sua escrita tem caráter autobiográfico. Chama a atenção a engenhosidade com que a autora conecta as escalas do pessoal e da intimidade com a vida social da França, entrelaçando os acontecimentos de sua vida com eventos compartilhados por toda uma sociedade.


O lugar, de Annie Ernaux

Annie Ernaux é também aclamada pela crítica, além de ser cada vez mais conhecida do público brasileiro. Recebeu o prêmio Renaudot, um dos mais importantes da França, justamente pelo livro O lugar, publicado ano passado pela editora Fósforo com tradução de Marília Garcia, e que foi eleito o melhor livro de ficção pelos colaboradores da Quatro Cinco Um em 2021.

No livro, Ernaux rememora a trajetória de seu pai, em uma espécie de acerto de contas com o passado. A linguagem descritiva, por vezes seca, consegue comover pela narração da dor da perda dele, sem floreios estilísticos.

A figura paterna se conecta com o imaginário da pequena cidade da Normandia, chamada de Y… pela autora, uma referência a Yvetot, onde Ernaux cresceu, na região de Seine-Maritime. É no mínimo curioso que um livro intitulado O lugar não nomeie diretamente o espaço que se entrelaça intimamente com a vida desse pai e da família como um todo. Y… pode ser a Yvetot que a autora tem nas suas lembranças de infância e adolescência, mas também pode ser qualquer outra cidade pequena, tornando esse local absolutamente preciso, mas também genérico.

Ela costura a vida do pai, plenamente adaptada à pequena cidade francesa, com a própria, que se descola do lugar de origem em direção a Paris. Se Y… representa uma proximidade maior com o campo, marcado pelos moradores como parte do atraso, a autora desponta como alguém que enxerga mais longe em seu meio.

Esse contraste social entre Paris e o local onde Ernaux nasceu fez com que a escritora Natalia Timerman lembrasse os desníveis sociais da Nápoles da tetralogia napolitana de Elena Ferrante. Timerman escreveu sobre isso na edição 52.

É possível ter outro olhar sobre o mesmo livro no texto escrito por Antonio Mammi para a edição 45, no qual focaliza a relação entre pai e filha.

Um país para viver

Paris como lugar e não lugar é parte constitutiva de Um país para morrer, de Abdellah Taïa, que saiu pela editora Nós com tradução do francês por Raquel Camargo. Também de caráter autobiográfico, o livro de Taïa se aproxima da capital francesa a partir da posição do imigrante. De origem marroquina, nascido na cidade de Salé em 1973, o autor, que é assumidamente homossexual, é radicado na França desde 1999.


Um país para morrer, de Abdellah Taïa

Se em O lugar a contraposição é entre a pequena Normandia e Paris, com duas margens opostas, mas ainda internas à França, em Um país para morrer o contraste se dá entre a capital francesa e as cidades do mundo árabe, abrindo uma margem externa.

A personagem central é Zahira, nascida perto de Rabat, no Marrocos, residente em Paris trabalhando como prostituta, que sente uma relação ambígua com o local, entre a ausência de pertencimento oficial e a afirmação dela de que tem direito a viver e transitar na capital francesa. Afinal, essa é a sua cidade, é o lugar de liberdade e de possibilidade. Mas o espaço urbano parisiense não é feito apenas de luzes e libertação.

Outro personagem que encarna bem esse entre-lugar é Aziz, um argelino amigo de Zahira que está se preparando para passar por uma cirurgia de redesignação sexual. Ele vai se tornar a mulher Zannouba. Num primeiro momento, está radiante com essa possibilidade, mas, depois de passar pela operação, ela se vê insatisfeita e se questiona sobre o que realmente é: “Eu sou mulher, completamente mulher? Não. Eu sou homem? Não. O que sou então?”. É uma espécie de terceira margem da existência que vemos surgir em Aziz/Zannouba, refletindo esse não lugar dos imigrantes na capital francesa. 

Há uma dobra entre Paris e as localidades africanas que os personagens deixaram para trás. Mas há também outra dobra, interna à cidade, que mostra a clivagem entre quem já pertence a ela e quem precisa lutar constantemente por esse reconhecimento.

Ser estrangeiro

A Berlim dos imigrantes também aparece no episódio com Alexandre Ribeiro, escritor que mora hoje nesta cidade, onde está fazendo um curso de graduação. Ele venceu um dos maiores concursos literários brasileiros, o ProAC Prosa 2020, com o seu livro Da quebrada pro mundo, que foi escrito na Alemanha e lançado este ano no Brasil, com prefácio de Emicida.

Ele comentou no episódio como se sente um estrangeiro no país e se identifica com os imigrantes e filhos de imigrantes, em especial os de origem turca e africana, como é narrado no rap Ausländer 2020, de Mert e Alpa Gun, cujo clipe pode ser visto a seguir.

Uma nova vida

Ingo Schulze é um autor bastante premiado. Vidas novas, lançado por aqui pela editora Cosac Naify em tradução de Marcelo Backes, foi finalista do Deutschen Buchpreis de 2006 e, em 2021, Schulze ganhou o Preis der Literaturhäuser na Alemanha, Áustria e Suíça. Günter Grass disse que ele é nada menos do que um "escritor épico".


Vidas novas, de Ingo Schulze

Vidas novas é um romance epistolar sobre a juventude de um personagem que encarna o espírito destruidor do novo mundo. A clivagem entre cidades do lado leste e oeste de Berlim nos ajuda a entender a transformação da capital alemã após a queda do muro que a dividia.

O livro tem uma estrutura peculiar: Ingo Schulze se apresenta como mero organizador da correspondência do empresário Enrico Türmer — posteriormente germanizado para Heinrich Türmer — e não como o próprio autor dessas cartas. Elas são do marcante ano de 1990. A primeira, datada de 6 de janeiro, quase dois meses depois da queda do muro, é o primeiro ponto em uma teia de transformação de Enrico, um jovem morador da cidade de Dresden, na Alemanha Oriental, e detentor de um pequeno império, com negócios revestidos por uma série de fraudes.


O Muro de Berlim em foto de John Zukowsky, do ano de 1986 [Library of Congress]

Alemães sobem no muro em frente ao Portão de Brandemburgo, em 1989 [Fotógrafo anônimo/Reprodução feita por Lear 21/Wikimedia Commons]

Uma viagem a Paris é narrada como um grande acontecimento após a queda do muro: a vida antes disso trazia restrições de liberdade e ao direito de ir e vir. Não é simples assimilar a nova vida em que realizar uma pequena expedição em um final de semana à capital francesa passa a ser possível.

Assim como Ernaux e Taïa, Ingo Schulze também narra uma história de transformação que pode ser lida a partir das mudanças estruturais do espaço urbano. Mas Enrico Türmer, seu personagem principal, encarna uma figura fáustica, que faz pacto com o demônio e se adapta muito bem a essa nova vida, principalmente no que ela tem de mais cruel e dominador. Essa diferenciação não é apenas marcada pela comparação com Paris, mas também entre as cidades orientais e ocidentais dentro da Alemanha dividida.

Uma cidade dividida

Berlim é a cidade dividida por excelência. Mas a ideia de que o espaço urbano encarna clivagens e divisões fundamentais não está apenas relacionada à experiência traumática do muro.


Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin

Dividido em nove volumes, Berlin Alexanderplatz é, sem dúvida, o livro que projeta a cidade ao máximo lugar de protagonista. No Brasil, a obra foi lançada pela editora Martins Fontes e traduzida por Irene Aron. Berlim é, portanto, uma caixa de ressonância, amplificadora do que se fala, um grande megafone que se entrelaça com a história pessoal de Franz Biberkopf, o personagem principal do romance de Döblin. Ele é um antigo operário da construção e dos transportes, recém-saído do presídio de Tegel. De início, sabemos apenas que a pena foi cumprida em razão de sua "insensata vida anterior".

A experiência da cidade é decisiva para Biberkopf. Berlim é sua ruína, mas também oferece as condições de sua regeneração moral. O antigo operário tenta viver o que se chamava de uma vida respeitável por um tempo, mas fracassa. A capital alemã é barulho e devassidão, um grande canteiro de transformações urbanas que lhe tiram o chão. Álcool, dívidas com garotas de programa e traições o levam a se tornar cafetão. Não vamos contar o resto da história para não dar spoilers.

  

Esse clássico também ficou muito conhecido pela adaptação audiovisual feita pelo cineasta Rainer Werner Fassbinder. Com quinze horas de duração, é um monumento da arte cinematográfica de 1980. Ele ganhou uma versão moderna em 2020 pelas mãos do diretor Burhan Qurbani.

A bela trilha sonora do filme de Fassbinder, composta por Peer Raben, pode ser ouvida no Spotify

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A Terceira Margem do Reno é um podcast feito em correalização pelas unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo do Goethe-Institut, pela BiblioMaison e o Escritório do Livro da Embaixada da França no Brasil e pela Associação Quatro Cinco Um.
Direção geral: Paulo Werneck
Roteiro: Bianca Tavolari
Coordenação geral e tratamento do roteiro: Paula Carvalho
Produção: Ashiley Calvo, com apoio de Mariana Shiraiwa
Edição, sonorização, trilha sonora, finalização e mixagem: André Whoong
Direção de locução: Tiê
Arte: J. Miguel
Coordenação digital: Rádio Novelo, com Juliana Jaeger e FêCris Vasconcellos
Distribuição: Rádio Novelo
Gravado com o apoio técnico do estúdio Rosa Flamingo.
Na ordem, foram lidos trechos das seguintes obras: A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa, que faz parte do livro Primeiras estórias, que saiu pela editora Global; O lugar, de Annie Ernaux, publicado pela editora Fósforo com tradução de Marília Garcia; Um país para morrer, de Abdellah Taïa, que saiu pela editora Nós vertido do francês por Raquel Camargo; Vidas novas, de Ingo Schulze, lançado pela editora Cosac Naify em tradução de Marcelo Backes; A crise do romance, de Walter Benjamin, em Obras escolhidas 1, da editora Brasiliense e com tradução de Sergio Paulo Rouanet; e Berlin Alexanderplatz, de Alfred Döblin, da editora Martins Fontes e traduzido por Irene Aron.