Psicanálise,

Amigos e colegas relembram Contardo Calligaris

Psicanalista e escritor morreu nesta terça (30), em São Paulo, em decorrência de um câncer

30mar2021

“Que perda para todos nós, do mundo psi e fora dele: hoje nos despedimos de Contardo Calligaris. Um homem que, desde que chegou ao Brasil, fez diferença por onde passou. Fundou, na década de 1980, a Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Desde então, e até hoje, encontramos na APPOA o ambiente mais aberto e menos dogmático que conheço em se tratando de instituições psicanalíticas. A APPOA é um organismo vivo, capaz de se transformar para absorver novas questões e debater, sem preconceitos, questões que ultrapassam o campo da psicanálise. Décadas depois de Contardo ter se mudado para São Paulo, seu toque iluminista ainda marca o estilo dos congressos da APPOA. Em sua coluna na Folha de S.Paulo, Contardo nunca foi banal. Envolvia-se em debates sobre temas polêmicos com a mesma elegância com que evocava, na semana seguinte, um episódio formador de sua infância ou de sua adolescência. Era assim também em conversas informais com amigos. Um iluminista irônico. Eu me irritava quando a fina ironia dele passava uma rasteira em meus dogmatismos. Mas que falta essa mistura de ironia e erudição há de fazer!”  

Maria Rita Kehl, psicanalista

“A Folha das quintas-feiras sempre foi diferente: trazia a promessa da coluna do Contardo. Com uma competência única ele fazia com que a psicanálise se infiltrasse em seu texto, precisa e acessível a todos, independentemente da amplitude dos temas de que tratava. Minha aproximação inicial ao Contardo foi a leitura da Introdução a uma clínica diferencial das psicoses, publicado pela primeira vez em 1989. A meu ver, é desde sempre a melhor referência sobre o assunto. Foi com ele que aprendi que o psicanalista deve reunir os recursos para dar conta do desafio das psicoses em sua clínica. Conheci Contardo na FLIP de 2011 e me encantou o sorriso generoso e acolhedor. Nesse período crítico para a saúde pública, acrescido de tintas sombrias e vulgares, sua lucidez vai nos fazer muita falta. Poderemos supri-la, em parte, por meio da releitura dos escritos que ele nos deixou.”

Paulo Schiller, psicanalista e tradutor

“Contardo analisou gerações e culturas com  o mesmo carinho no coração e rigor nas palavras. Lúcido, tinha sempre uma giro a mais na conversa, uma sacada inesperada, uma piada capaz de fazer você se sentir subitamente íntimo e ao mesmo tempo um estrangeiro em sua própria pele. Ele tinha a fotografia da alma na ponta dos dedos e era um humanista crítico como não existem mais.” 

Christian Dunker, psicanalista

“Estou muito abalada pelo falecimento do Contardo. Eu conheci o Contardo pelos textos dele na Folha, que sempre me impactaram muito, me inspiraram, me deram vontade de também escrever no jornal, o que eu não sabia que depois viria a se concretizar com uma coluna minha na Folha. Mas ali tinha uma fonte de inspiração importante, porque era um psicanalista que se colocava no mundo de um jeito que me interessava muito, falando com o público em geral com estilo muito próprio. Eu lembro de encontar o Contardo uma vez na Folha, e vê-lo numa roda, hipnotizando a roda, porque essa competência de capturar a gente pela escrita também acontecia presencialmente, ele era magnético, um homem bonito, com um sorriso lindo, uma presença muito vivaz, muito intensa, e eu lembro dele contando pra nós duas coisas que aconteceram no prédio onde ele atendia. Uma pessoa tinha se jogado do alto do prédio e destruído um toldo do restaurante que ficava logo abaixo. O dono do restaurante estava bravo porque a pessoa acabou se matando e caindo na calçada dele, o que dava um certo ar engraçado para uma situação trágica. Na sequência ele contou que existiam nesse prédio prostitutas e prostitutos que tinham lá seus clientes, que subiam nos apartamentos, e que o condomínio queria mandar essas pessoas embora e ele era terminantemente contra. E a graça de ouvi-lo falar disso pra mim ficou na imagem desafetada do Contardo falando da morte, quase uma indignação: como é que o cara desperdiça a vida assim se matando?  Esse modo meio blasé de falar da morte e um respeito a Eros, ao erótico ao sexual, ao amoroso. Essa imagem fica pra mim. Isso nas colunas dele está o tempo todo, esse Eros e Tânatos, essa busca por viver sem concessões. Isso era sempre muito apaixonante nele, ele transmitia isso no trabalho, na vida dele. Amava o Brasil e odiava o Brasil, mas produzia uma coisa importante aqui, tinha uma relação passional com o Brasil. A gente tem esse privilégio de ter sido adotado por ele e com certeza isso também o transformou de várias formas. Hoje é um dia muito triste, para os psicanalistas, para as pessoas que conheceram ele, para os colunistas da Folha, e um choque para muita gente que não sabia que ele já estava doente. Tem uma emoção que atravessa a fala, tem uma gratidão enorme. Ele é. Difícil falar no passado, ele é importante pra muita gente, pros pacientes, pros amigos, pros familiares, para a comunidade psicanalítica, para a intelectualidade brasileira. Ele é um cara que fez a diferença. Fez a diferença com a série dele. Psi é um marco para as séries brasileiras. E um homem lindo, né? Um homem bonito, um homem atrante, é bacana isso de ele ter essa vivacidade.”

Vera Iaconelli, psicanalista

“Nascido em Milão, cidadão do mundo e tradutor do Brasil, Contardo Calligaris elevou o patamar do colunismo de cultura no Brasil. Foi testemunha ocular das principais mudanças de comportamento dos últimos cinquenta anos. Deixará uma lacuna gigante.” 

Sérgio Dávila, diretor de Redação da Folha de S.Paulo

“Certa vez, eu disse ao Contardo: ‘Se eu fizer análise algum dia, terá que ser com você’. Ele me respondeu: ‘Não podemos, você é o meu editor’. Eu retruquei: ‘E esse não é mais um motivo para eu fazer contigo?’. Ele sorriu. Nunca fui analisado por Contardo, mas editar os textos dele na Folha ou na editora Três Estrelas foi um privilégio que a vida me concedeu. Contardo foi uma das pessoas mais extraordinárias que conheci. Sua inteligência era daquele tipo muito raro que impulsiona a gente na direção da liberdade e do saber alegre e sem ressentimento.”

Alcino Leite Neto, editor e jornalista

“Psicanalista importante no cenário brasileiro, Contardo Caligaris com seu ecletismo e inquietação arriscou-se no jornalismo, na ficção e como roteirista de TV. Com sucesso ímpar em tudo que fez. Deixará saudades num mundo compartimentado no qual nem todos os intelectuais aceitam tomar os riscos que ele tomou.”

Luiz Schwarcz, editor

“Amigo querido, escrever sobre você é uma dor maior que imaginei, mesmo sabendo nesses dois anos dessa doença, desse câncer que te consumiu. Se é uma perda para mim, é uma perda enorme para esse país que vc escolheu para viver. Poucos pensadores nessa terra como você, além dos clichês, das citações intermináveis dos seus pares. Pares? Nunca foram pares para suas ideias, construídas e atravessadas  pela filosofia, psicologia  e profundo conhecimento do homem com todas pulsões. Termino com o que você me disse nesses dias e ontem ainda repetiu pra mim: ‘Que merda, Helinho, que merda’.”

Hélio Goldstein, jornalista

“É tão tamanha nossa precariedade atual que nem sequer encontro uma palavra justa para nomear a pulsão vital, a alegria de viver e o desejo de transmissão que a figura pública do Contardo emanava. Sua vida era um ‘texto de prazer’.”

Ilana Feldman, crítica literária