Poesia,

A Flip 2020 é de Elizabeth Bishop

Sessenta anos depois de visitar Paraty, poeta americana é primeiro nome estrangeiro a ser homenageado no festival

25nov2019

Sessenta anos depois de visitar Paraty, em setembro de 1960, a poeta americana Elizabeth Bishop será homenageada na cidade pelo maior festival literário brasileiro. 

A Flip anunciou a notícia hoje, em São Paulo, em evento com leituras dramáticas e uma conversa entre o público, a curadora Fernanda Diamant, que assina pela segunda vez a programação principal da festa, e o diretor geral Mauro Munhoz.

Primeiro nome estrangeiro a ser homenageado na história da Flip, Bishop viveu por 16 anos no país, do qual foi uma observadora aguda, apaixonada e crítica. Sua relação com o Brasil, que transparece em cartas, poemas e até mesmo num livro escrito por encomenda, certamente será um dos pontos centrais de interesse na curadoria.

A poeta americana Elizabeth Bishop [The Rosalie Thorne McKenna Foundation/Courtesy Center for Creative Photography, University of Arizona]

A passagem por Paraty é um exemplo típico do hipsterismo avant la lettre de Bishop e sua namorada Lota: em setembro de 1960, elas foram passar três dias numa cidade perdida no litoral fluminense. Paraty então ainda estava praticamente isolada por estradas ruins e longas viagens de barco.

Esse isolamento, a bem da verdade, lentamente começava a se romper naquele início de anos 1960: o casal visitou a cidade um mês depois de a energia elétrica chegar às casas e ruas paratienses. A região começava a receber migrantes de diversas regiões do país, atraídos pela distribuição de terras devolutas promovida pelo então governador do Estado da Guanabara, Roberto Silveira, que hoje dá nome à principal avenida da cidade. 

Mas não havia nem sombra do turismo que hoje movimenta Paraty: as duas se hospedaram num hotel que a poeta descreve como “uma mansão setecentista cheia de divisórias de madeira, de modo que dá para ouvir todo mundo espirrando e tossindo — quer dizer, nós e os caixeiros-viajantes”. Em carta a uma tia, ela conta que os caixeiros-viajantes andam de pijama e escovam os dentes na sala de jantar, e diz que lhe “faltam palavras” para descrever o banheiro. “A Lota bem que brigou, mas não conseguimos que o consertassem. Porém a proprietária, dona Zezé, finalmente passou a nos dar um balde d’água várias vezes por dia, para que nós pudéssemos dar a descarga na privada.” 

Foram apenas alguns dias na futura sede da Flip, mas a carta transborda um amor imediato pela cidade: “Eu tinha vontade de comprar a cidade inteira, só para preservá-la”, escreve a poeta, informando que por 2 mil dólares da época era possível arrematar um casarão de três andares “com um jardim enorme com palmeiras e tudo”. “As pessoas eram todas maravilhosas! O peixe era excelente (passei três dias só comendo peixe e banana), as igrejas lindas, e um único alto-falante estragando tudo — também aqui estamos no período eleitoral. Mas mesmo assim valeu a pena — uma longa viagem de carro, por estradas de terra.”

Questões de viagem

A condição de viajante marcou a vida e a obra de Bishop, que tem um poema famoso intitulado “Questões de viagem”, no qual interroga: “Teria sido melhor ficar em casa, onde quer que isso seja?”. 

A segunda parte da pergunta é uma chave importante para compreender a poeta, uma pessoa deslocada no mundo, “sem casa” para voltar — seu pai morreu antes que Elizabeth completasse um ano, e quatro anos depois sua mãe foi internada num hospital psiquiátrico, morrendo anos depois, sem que as duas tenham voltado a se ver. A solidão vinha para ficar na vida da poeta, que morreria em consequência do alcoolismo em 1979.

Um acaso levou a poeta, durante uma viagem de circum-navegação do continente sul-americano, em 1951, a se fixar no Brasil por mais tempo do que o planejado. 

Depois de comer um caju no Rio, onde foi visitar uma antiga namorada, Mary Morse, sofreu uma reação alérgica e foi obrigada a ficar para se tratar. Quem cuidou dela foi a namorada de Mary, Lota de Macedo Soares, notável arquiteta que daria à Zona Sul do Rio de Janeiro as feições que conhecemos hoje ao planejar e comandar as obras do Parque do Flamengo.

As duas não demoraram a se apaixonar, formando um casal que, sem alarde, desafiou pioneiramente o moralismo brasileiro e abriu caminho para outros casais de mulheres. Se é certo que o país ainda tem muito a avançar no combate à homofobia, também é certo que o casal Bishop-Lota foi dos primeiros a quebrar os tabus sociais em torno da homossexualidade no país. É de esperar que este seja outro ponto central na curadoria da Flip 2020. Assim, a curadora cumpre uma promessa feita ao ser anunciada como curadora em 2018, dizendo que procuraria fazer uma Flip mais queer.

Entre o apartamento do Leme, frequentado pela elite política e cultural do país, e o sítio de Petrópolis, onde as duas passavam longas temporadas, Bishop construiu uma das mais sólidas obras poéticas do século 20 — que vai muito além dos temas brasileiros — e manteve intensa correspondência com os amigos, em especial os poetas Robert Lowell e Marianne Moore. 

As cartas, que tiveram uma seleção publicada no Brasil nos anos 1990, organizada por João Moreira Salles, são fascinantes retratos da vida brasileira, em especial quando a poeta conta pequenas anedotas e cenas de rua, recolhe expressões populares curiosas, descreve personagens urbanos e a vida no interior do país. Além de Petrópolis, Bishop teve casa em Ouro Preto, já depois da relação com Lota, que morreu em 1967.

Bishop nunca se envolveu na agitada vida intelectual carioca nos anos 1960 — ela descreve a única vez em que esteve com Carlos Drummond de Andrade como um encontro entre dois tímidos, "na rua e à noite" — e tinha dificuldades para se expressar em português, embora fosse uma excelente leitora e tradutora — traduziu poemas de Drummond, Vinicius e João Cabral, além do clássico Minha de vida de menina, de Helena Morley, que ela quis intitular, sem conseguir convencer os editores, “black beans and diamonds” (feijões-pretos e diamantes). Seus escritos são uma antena sensível que captou o Brasil de maneira única. 

Paulo Henriques Britto já contou que pequenos lances de estranhamento linguístico estiveram na origem de poemas centrais em sua obra. Num deles, o tarimbado tradutor confessa que foi impossível obter o mesmo efeito de estranheza. Britto capitulou, deixando o poema de fora de sua edição de poemas escolhidos. “O poema em questão termina com um verso em que Bishop traduz a fala de um personagem ao pé da letra”, explicou o tradutor em entrevista ao Instituto Moreira Salles. “O que ele diz em português é prosaico: ‘Hoje é meu aniversário, dia de Reis’ — mas na tradução literal de Bishop [‘Today is my Anniversary/the Day of Kings’] a frase se transforma numa coisa estranha, poética, que fecha o poema com chave de ouro. Não vejo como reproduzir o efeito em português”. 

Sua ligação com o Brasil, apesar de todo o tempo que passou por aqui e das relações privilegiadas no meio sociocultural, está longe de ser um conhecimento “especializado”— pelo contrário, passou por equívocos, mal-entendidos e episódios dignos de uma espécie de “lost in translation” que se passasse no Brasil dos anos 50 e 60. O apoio ao Golpe de 1964, que expressou em carta a um amigo, episódio difícil de engolir para seus leitores brasileiros, certamente teve a influência do convívio íntimo com Carlos Lacerda, o governador do estado da Guanabara que dera a Lota a oportunidade de criar o Parque do Flamengo — e conspirava contra o governo de João Goulart.

“A relação de Bishop com o Brasil era conflituosa”, diz a poeta Angélica Freitas, “parecia que amava e odiava o país ao mesmo tempo (mais odiava que amava?). Bem, para nossa sorte, mesmo que seu olhar fosse às vezes impiedoso, ela escreveu muitos poemas por aqui.”

Bishop, afinal, não veio “estudar” o Brasil, veio viver o país, e escreveu sobre ele com a graça e a sem-cerimônia de uma cronista na acepção brasileira do termo. Por sinal, muito do Brasil que se vê em seus poemas e cartas são cenas cotidianas, por vezes com acidez. O poema “Cadela rosada”, que Angelica Freitas aponta como um de seus preferidos, descreve com ironia uma cachorra que perambula pelas ruas do Rio coberta de feridas de sarna, durante o carnaval.

Para a dramaturga Marta Góes, autora da peça Um porto para Elizabeth Bishop, que chegou a ser apresentada na programação principal da Flip 2005, tendo a atriz Regina Braga no papel da poeta, vai ser interessante observar a homenagem nos dias de hoje: “Em 2001, quando o espetáculo estreou no Festival de Curitiba, soava engraçada a má-vontade com que nos olhou aquela poeta obscura, aquela mulher desajustada. Acabávamos de comemorar nossos quinhentos anos. Vivíamos um certo encanto por nossas qualidades e tínhamos certeza de que estávamos a caminho de um futuro risonho. Em sua próxima visita, ela chegará como uma poeta do Olimpo, e nossa autoconfiança foi bastante reduzida. Vai ser muito oportuno repensar esse parentesco”.

As cartas de Bishop registram os bastidores da construção do Parque do Flamengo, projeto que Lota de Macedo Soares fez acontecer de modo obstinado e no limite da sua capacidade física, enfrentando toda sorte de dificuldades — o machismo, a burocracia, as disputas políticas e uma série de outros obstáculos. Lota teve sucessivos problemas de saúde que acabaram levando-a à morte, pouco depois da separação do casal. A perda inspiraria um dos mais bonitos poemas de Bishop, “Uma arte”, aqui na tradução de Paulo Henriques Britto:

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Edições

Atualmente, só está disponível nas livrarias o volume Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop (Companhia das Letras), que reúne traduções e comentários de Paulo Henriques Britto. Pela mesma editora, as cartas foram reunidas em Uma arte, edição de oitocentas páginas esgotada há anos. A Companhia das Letras por enquanto anuncia apenas a publicação, no ano que vem, da biografia Love Unknown: The Life and Worlds of Elizabeth Bishop, de Thomas Travisano.

Como o interesse internacional em torno de Bishop tem crescido, é de esperar que outras edições sobre a poeta surjam por ocasião da homenagem.

A editora Simone Paulino, da Nós, está engatilhando uma tradução: “Já estou há mais de um ano planejando a publicação de um belíssimo e delicado livro sobre ela, escrito por Colm Tóibin. E achei ousado e corajoso da parte da curadora Fernanda Diamant homenagear essa autora. Não podemos esquecer que a Flip é uma Festa Literária Internacional, portanto, acho coerente e bonito que se ultrapasse a fronteira de homenagear exclusivamente autores brasileiros. Sem contar que Elizabeth tem uma história cheia de intertexto com o Brasil. Vai ser lindo!”. 

A poeta Angélica Freitas também comemora a escolha: “Elizabeth Bishop foi uma das maiores poetas do século 20. Acabou morando alguns anos no Brasil porque teve uma alergia braba a um caju que experimentou durante uma visita ao Rio. Ela seguiria viagem até Buenos Aires, acho, mas gostou tanto de ser paparicada pelas amigas durante a convalescença que foi ficando, ficando, e ficou mesmo — apaixonou-se por uma brasileira, a charmosíssima arquiteta Lota de Macedo Soares, que foi sua companheira durante muitos anos. A relação de Bishop com o Brasil era conflituosa, parecia que amava e odiava o país ao mesmo tempo (mais odiava que amava?). Bem, para nossa sorte, mesmo que seu olhar fosse às vezes impiedoso, ela escreveu muitos poemas por aqui. Um dos meus favoritos é o “Cadela Rosada”, em que se dirige a uma cadela sarnenta em pleno carnaval do Rio. “O Carnaval está cada vez melhor!/ Agora, um cão pelado é mesmo um horror…/Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô…” (na tradução de Paulo Henriques Britto).”

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.