Memória,

Claudio Willer anunciou: ‘sobreviveremos’

O poeta, tradutor e ensaísta, morto no último dia 13 de janeiro, criou uma das mais poderosas ações culturais em torno da poesia

16jan2023

São Paulo, começo dos anos 90. Eu não devia ter mais de dezoito anos. Passava as tardes com a minha namorada na época, a Priscila, na Biblioteca Mário de Andrade, copiando a lápis poemas que depois, chegando em casa, passava a limpo. Colocava uma pauta embaixo de um papel de seda e escrevia cuidadosamente a caneta, respeitando o desenho original dos textos nas páginas. Era nossa antologia particular, num momento em que a oferta de livros de poesia nas estantes de livrarias era absolutamente escassa. Íamos descobrindo novos poetas conforme líamos, a partir de citações e referências.

Roberto Piva era uma fonte quase inesgotável, sempre se referenciando a outros poetas, como que nos lembrando que poesia não é uma atividade que se faz sozinho, mas em diálogo permanente. Cada nome que aparecia na página era todo um novo universo que se abria. Foi assim que descobri o Claudio Willer, primeiro como prefaciador do livro Piazzas, de Piva, depois como poeta.

Eu me lembro até hoje da Priscila lendo Jardins da provocação, o livro que Willer lançou em 1981. A edição grande, quase em formato revista, realizada por Massao Ohno, o “japonês voador”, era linda e valorizava a espacialidade dos poemas na página. Certa hora, no silêncio da biblioteca, ela sussurrou: “olha isso”. E leu para mim o “Visitantes 4”. O começo já me arrebatou:

Nosso espaço
é o espaço do terrível
[…] a noite definitiva
e o grito
congelado
penetremos aos poucos
neste jardim de negações
onde a palavra pede mais espaço

O poema seguia vertiginoso, com cortes rápidos, até o seu final:

transformemo-nos em planta
em raiz
ou minério bruto
para que seja possível conversar
SOBREVIVEREMOS

Respiro. Naquele momento sabíamos que estávamos frente a algo grande, com um poeta que falava diretamente com o mundo que estávamos confrontando. Willer entrou imediatamente no nosso paideuma.

Algum tempo depois, vi em uma pequena nota de jornal que ele realizaria uma palestra numa biblioteca pública, no extremo leste da cidade. Era longe, muito longe, para quem morava na zona sul. Mas decidimos ir lá, novamente eu e a Pri, minha permanente companheira de aventura. Pegamos três ônibus, ansiosos para ver aquele que já considerávamos um grande poeta. Chegando lá, não havia quase ninguém na plateia, como costuma ser nesse tipo de evento. Mas Willer falou com seriedade e entusiasmo, como se tivesse com a casa cheia. No fim, abriu para perguntas. Eu estava me formando no ensino médio, então perguntei qual faculdade que ele recomendaria para quem quisesse ser poeta. Ele respondeu, para minha surpresa: “Qualquer uma, menos letras”. E explicou então que a faculdade de letras no Brasil era muito conservadora, estava cinquenta anos atrasada em relação à poesia brasileira; seguia trabalhando apenas com os nomes canônicos, até o modernismo, sem atualizar o seu repertório, e era extremamente avessa a certas tendências da poesia, como por exemplo o surrealismo, que fingia não existir no Brasil. E concluiu dizendo que assim poderia desestimular a curiosidade por novas descobertas, algo fundamental para todo poeta.

Atuação múltipla

Ele estava certo. Ao abrir mão de seguir um currículo pré-definido e me tornar independente, pude nos anos seguintes ajudar a revalorizar muitos poetas brasileiros de alta qualidade que estavam completamente marginalizados na época, seja no meio acadêmico ou no editorial. O próprio Willer era um caso: com uma trajetória então de quase trinta anos, era praticamente inacessível para os novos leitores. E olha que ele seguia atuando em torno da poesia. Uma atuação vigorosa, múltipla e muitas vezes pouco reconhecida.

Estávamos frente a algo grande, com um poeta que falava diretamente com o mundo que estávamos confrontando

Para além de poeta, o seu trabalho como ensaísta é fundamental para criar uma fortuna crítica sobre os seus contemporâneos. O prefácio de Piazzas, onde o descobrimos, é exemplar disso: ele mesmo adverte que não faria um texto biográfico, mesmo lidando com o Piva, um poeta cuja vida sempre foi motivo de curiosidade. E brincava: “Declarar que um poeta transa hoje em dia é uma total obviedade”. Então, ele mergulha profundamente em uma análise da poesia dos dois primeiros livros de Piva, com atenção e total respeito. Assim o fez com diversos outros autores, de diferentes tendências, como Hilda Hilst, Afonso Henriques Neto e Manoel de Barros.

Willer atuou também como tradutor, com a mesma dedicação de scholar: longos prefácios, notas, pesquisas aprofundadas, constituindo livros de referência sobre autores como Allen Ginsberg, Lautréamont e Antonin Artaud, para ficar nos mais conhecidos. Um trabalho que se desdobraria na sua ampla pesquisa sobre gnose, literatura e misticismo. O seu livro Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia moderna (2010) é um extenso tratado sobre a relação entre literatura e misticismo. É também a demonstração de sua capacidade de lidar com temas que se mantêm à margem, deslocando-os e superando preconceitos do pensamento acadêmico vigente.

Mas não era apenas em livro que a sua atuação aparecia: Willer talvez tenha sido o criador da mais poderosa ação cultural em torno da poesia, quando trabalhou na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo em meados dos anos 90. Seu ciclo “Poesia 96” (e no ano seguinte “Poesia 97”), trouxe a fala de dezenas, possivelmente mais de uma centena de poetas, se apresentando em bibliotecas públicas para um público diverso. De octogenários como Manoel de Barros até a novíssima geração, Willer criou um panorama amplo da poesia daquele momento, numa história que ainda precisa ser contada, até mesmo como base para outras iniciativas do tipo.

O Brasil não é um país generoso com seus poetas; Nas últimas décadas, Willer passou por imensas dificuldades financeiras

Mas o Brasil não é um país generoso com seus poetas. Nas últimas décadas, Willer passou por imensas dificuldades financeiras, assim como seu amigo Piva. Situações-limite. No início da pandemia de Covid-19, em março de 2020, ver a sua penúria me levou a pensar a criação de uma cooperativa de poesia, para tentar estabelecer uma rede de proteção para esses autores em graves dificuldades financeiras. Se o projeto fracassou em sua proposta, ao menos pôde dar uma bolsa por seis meses para Willer e outros poetas. E aqui fica um ponto importante: a escolha foi feita, de forma correta, através de questões identitárias, como poetas indígenas, afrobrasileiros, LGBTQIA+. São, sim, os mais fragilizados economicamente. Mas sempre falta incluir nessas políticas os mais velhos, a terceira idade, como uma categoria que merece sempre atenção e cuidado.

Artistas abandonados

Willer morreu no último dia 13 de janeiro. Estava debilitado há tempos, mas seguia lutando pela sobrevivência, sempre com altivez, fazendo cursos e palestras. Agora, é preciso um trabalho intenso de pensar a sua obra, não apenas a escrita, mas a de gestor e articulador cultural. É um autor original e de grande valor. Também precisamos atentar para essa situação, que segue se repetindo, de abandono de poetas e outros artistas que dedicaram a sua vida inteira para a cultura. A contribuição de Willer é imensa, e é o nosso dever como sociedade, a nossa responsabilidade cultural, não deixarmos mais que situações tão radicais se abatam sobre aqueles que tanto nos ofereceram. É chegada a hora de criarmos formas de garantir a dignidade de vida para nossos poetas e artistas. De podermos falar, como anunciou Willer, que “sobreviveremos”. 

Quem escreveu esse texto

Sergio Cohn

Poeta, editor e crítico literário, é autor de A reflexão atuante (Azougue).