Literatura,

De Machado a Michael Jackson

Primeiro encontro do clube de leitura da Quatro Cinco Um com a Japan House debateu questões em torno do livro "Memórias de um urso-polar"

15jul2019

Aconteceu na última quinta-feira (27) o primeiro encontro do clube de leitura da Quatro Cinco Um em parceria com a Japan House. O livro Memórias de um urso-polar, romance de Yoko Tawada, foi comentado pela crítica literária Maria Esther Maciel, com mediação de Paulo Werneck, editor da revista dos livros.

Junto com Natasha Barzaghi Geenen, diretora cultural da Japan House São Paulo, Werneck é responsável pela curadoria do projeto, que foca a literatura contemporânea japonesa. Estão previstos oito encontros, sempre a cada última quinta-feira do mês, com críticos e escritores de ficção convidados.

Recém-lançado pela editora Todavia, o romance de Tawada tem como protagonista o urso-polar Knut, que se tornou popular ao ser rejeitado pela mãe logo após nascer, em 2006, num zoológico em Berlim. Adotado pelo tratador do zoo, ganhou fama mundial nas redes sociais, chegou a ser fotografado por Annie Leibovitz e foi capa da Vanity Fair. Morreu subitamente em 2011, diante dos olhos do público.

Animalidade perdida

Especializada em estudos animais, vertente da crítica literária que pensa a presença dos animais na arte e na cultura, Maciel abriu o encontro falando dos primórdios do que chama de zooliteratura. "Desde que existe literatura, os animais estão presentes nos livros. Uma história da literatura pressupõe também uma história dos animais na literatura. Desde a Grécia Antiga, os animais frequentam o nosso imaginário. Basta evocarmos as antigas fábulas de Esopo ou os estudos de Aristóteles", disse ela. O filósofo grego, autor de História dos animais, foi o primeiro pensador ocidental a se deter na catalogação dos animais e no estudo de seus hábitos e características.

Segundo ela, a zooliteratura se preocupa com a recuperação da animalidade perdida, que foi marginalizada em nome da razão, da religião e do progresso: "Essa animalidade foi demonizada e colocada no terreno da loucura, da sexualidade, da transgressão, e tudo isso contribuiu para que fosse elaborado um conceito de humano a partir da negação da animalidade". 

A crítica literária contou que, no Brasil, Machado de Assis foi um dos primeiros autores a falar da necessidade de se criar uma sociedade protetora dos animais e a associar a crueldade contra os animais à crueldade contra os humanos, citando o "Conto Alexandrino" do escritor, que trata da hierarquização dos seres.

Trânsitos

Para Maciel, Yoko Tawada faz zooliteratura de maneira instigante, ousada e complexa: "Ela é uma escritora que faz trânsitos de maneira muito explícita, atravessando as fronteiras da língua e das culturas". Nascida no Japão, Tawada vive na Alemanha desde 1982 e escreve seus livros em duas línguas: japonês e alemão. Memórias de um urso-polar foi escrito em ambas.

Perguntada por um membro do público se a condição da autora como imigrante interferiu na construção da história, Maciel remeteu novamente ao conceito de trânsito: "Essa é a história de um urso-polar que não conhece o polo-norte. A autora tem a mesma condição de deslocamento. É uma exilada – viveu até os 22 anos no Japão, depois foi à Alemanha, onde vive. Ela também está em trânsito".

"Tawada é muito engenhosa para articular temporalidades, espaços e dimensões distintos no livro. Por isso que falo que a palavra trânsito define muito o seu trabalho. Há um movimento constante, de trespassamento de fronteira, de ida e volta e de interseções."

A partir de outra interação do público, a crítica literária falou sobre o zoológico como alegoria de nossa vida em sociedade. "É o espaço onde o urso vive, mas é também uma metáfora. Tawada se vale da ideia do zoológico para falar das instituições humanas. A ideia de aprisionamento atravessa esse romance do início ao fim. Não só o do zoológico, mas também os aprisionamentos sociais, em várias dimensões", disse. Com a crise dos zoológicos em pauta, falou também sobre o afastamento dos animais de nossa convivência cotidiana. "Resta o quê? Criar animais em casa e ter uma relação neurótica com eles?".

Para Maciel, o conceito de humano tem sido cada vez mais desconstruído. "Ele foi construído muito à revelia da própria ideia de animal, até contra ela, e a partir de um exercício de soberania, de superioridade em relação às demais espécies. Mas esse conceito está sofrendo um abalo sísmico", contou, atribuindo a mudança, entre outros fatores, às descobertas no campo da etologia, o estudo do comportamento animal.

Urso pop

De acordo com Maciel, o livro não se deixa pegar numa chave só. "A autora discute muitas questões, como a Guerra Fria, a censura e, inevitavelmente, o aquecimento global — que atravessa o livro de maneira muito contundente, mas sem figurar como um manifesto. Não é uma lição moral, não é um panfleto. A crítica se dá por vias mais oblíquas.”

Antes de terminar a noite, Maciel lançou uma questão provocante: "Por incrível que pareça, achei que o Michael do livro é o Michael Jackson. O Knut é aquele ursinho que foi treinado para ser um popstar. A autora trabalha o tempo todo com a questão de celebridade. Isso me deixou intrigada". "Tem até uma referência a caminhar na lua", concordou um dos leitores presentes, referindo-se ao famoso moonwalk do cantor. Fica a dúvida!

O próximo encontro do clube de leitura acontece no dia 25 de julho. Em breve, informações sobre o livro, os convidados e as inscrições serão divulgados pela Japan House São Paulo e pela Quatro Cinco Um.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).