Crônica do Rio,

Poesia e pirotecnia

Escolas de samba criticam o pior prefeito do Rio em todos os tempos, mas ainda deixam o dinheiro ditar suas escolhas internas

12jan2020 | Edição #30 jan/fev.20

“Virou Hollywood isso aqui”, cantava em coro o camarote da Sapucaí, em 2019, enquanto à sua frente a São Clemente desfilava um carro alegórico com camarões gigantes, DJs e duplas sertanejas. Era um desenho literal da gourmetização do Carnaval, mas o espelho não ficou nítido para a turma que pagou caro para vê-lo. Uma reedição do enredo de 1990, o desfile criticava o fato de a carne do Carnaval ter se rendido às cifras. Mas o problema não começa no sambódromo: pode ser observado em certos dias de outubro, quando as escolas elegem o samba a ser entoado no ano seguinte.

O trajeto de uma hora de trem da Central do Brasil até Nilópolis é uma miscelânea caótica, com uma massa indistinta de sons atravessada por ambulantes vendendo pinga, ralo, melancia, cadeira. “Vamos chupar!”, grita o vendedor de geladinho. A quadra da Beija-Flor, a terceira maior campeã do Carnaval, fica a poucos metros da estação, e as ruas estão lotadas. É a rua, aliás, o tema de seu desfile em 2020, que vai tratar de Eldorado à Sapucaí. No barracão, a performance começa com a chegada dos músicos em carros cenográficos, com os números dos três sambas finalistas nas placas. Sobe ao palco o mais célebre dos intérpretes atuais, Neguinho da Beija-Flor, para entoar sambas históricos do alto de seus setenta anos enquanto passistas com elaborados figurinos e coreografias divertem o público. Um caprichado jogo de luzes completa o show.

A parceria liderada por Magal Clareou abre a competição com pompa. Na metade dos vinte minutos reservados a cada concorrente, a quadra entra em êxtase com uma chuva de balões e papel picado aliada aos disparos de duas máquinas, uma de cada lado do palco, soltando fumaça em impressionante sincronia com as sílabas do refrão: “Nilopolitano em romaria/ A fé me guia”. As duas parcerias seguintes, de J. Velloso e de Jr. Beija Flor, acompanham a grandeza do evento com similar profusão de recursos e até um beija-flor flutuante adornado com led. O povo, é claro, vibra. Não há como negar: é um espetáculo belíssimo.

O anúncio do vencedor, na terceira hora de sexta-feira, é seguido pela voz de Neguinho ressoando os versos até então cantados por Tinga, da Vila Isabel — é praxe que intérpretes sejam contratados para defender parcerias em outras escolas. “Segura o povo que o povo é o dono da rua”, diz o samba eleito em noitada grandiosa — e abençoada: uma enorme figura de Nossa Senhora, com dez metros de altura, negra como deve ser, aparece no palco para coroar divinamente o samba.

A sexta-feira se despede com decisão na rua Clara Nunes. As torcidas desorganizadas enchem a sede da Portela, maior campeã do Carnaval, seus trajes uniformemente alvicelestes impossibilitando distinguir a predileção entre os finalistas, uma tríade liderada por Noca, o jovem de 87 anos expulso da Velha Guarda por criar confusão ao perder a final de 2016; Samir Trindade, campeão daquele ano e responsável por tirar a escola de um jejum de 33 anos; e Valtinho Botafogo, vencedor do samba que, no ano passado, homenageou Clara Nunes. Em 2020, o enredo portelense é indígena: exalta a vida dos primeiros habitantes do Rio, os “kariókas”, muito antes da chegada dos portugueses — uma de suas principais fontes de inspiração foi o livro O Rio antes do Rio, de Rafael Freitas da Silva, lançado pela Babilônia em 2015 e agora reeditado pela Relicário.

O espetáculo começa com passistas, baianas, mestres-salas, porta-bandeiras e Velha Guarda caracterizados como indígenas — um show completo de luzes, penas, tambores — e segue para as eliminatórias com a turma de Noca, acompanhada de torcedores (agora organizados) ostentando camisetas e bandeiras estampadas com “Eu sou Portela por natureza”, trecho do refrão entoado pelos trinta minutos seguintes. “Castigo é fogo/ E veio do céu/ Ao homem que não preservou”, canta Madureira enquanto do teto caem balões azuis e brancos. O grupo de Valtinho chega com uma comitiva vestindo cocares e empunhando lanças, com cartazes que ensinam a letra aos presentes: “Caium para festejar”, “Hoje meu Guajupiá é madureira”, “Índio é dono desse chão”. Nas camisetas, um apelo moderno em três hashtags: #soueu, #índio, #filhodaportela. A performance final, de Samir, tem marcha semelhante: o cortejo vem às dúzias, exibindo bandeirinhas com o símbolo da escola, lanças, cocares e ramos verdes nos punhos em riste. “Sou a lembrança de um tupinambá que não se rendeu jamais”, cantam.

O anúncio chega às seis da manhã na quadra ainda cheia: Valtinho é bicampeão. Com os raios de sol atravessando a águia altaneira na fachada da agremiação, centenas de foliões rumam às ruas administradas pelo prefeito Marcelo Crivella, reprovado por 72% dos cariocas segundo recente pesquisa do Datafolha, bradando o hino de 2020: “Nossa aldeia é sem partido ou facção/ Não tem bispo nem se curva a capitão”.

Brilho realçado

Diz Luiz Antonio Simas, um dos melhores cronistas do Rio atual, que não podemos nos enganar, em final de samba, pela torcida. “A marcha sobre Roma, que levou Mussolini ao poder, foi visualmente linda — e o fascismo foi uma titica”, escreve. “Bola de encher é coisa de festa de aniversário de criança e lugar de tremular bandeiras é a arquibancada do Maracanã. Escutar samba, pular feito doido e balançar bandeira ao mesmo tempo são atividades excludentes — e coreografia é coisa de torcedor do Boi Garantido e de japonês que desfila na Mangueira.” Pois é justamente na Velha Manga, segunda maior vencedora do Carnaval, que o espetáculo, expurgado de toda pirotecnia, tem seu brilho realçado.

Em 2019, para tornar mais justo o processo, as inscrições tiveram valor único de R$ 4.800 (montante baixo se comparado aos seis dígitos que gastam algumas parcerias), os sambas tiveram gravações uniformizadas e foram vetados intérpretes de outras escolas, torcidas, bexigas e demais parafernálias. “O compositor é o agente principal do desfile e tem sido esvaziado por causa do poder do capital. Para combater essa situação, faremos um concurso em que o poder do dinheiro não terá lugar”, diz o carnavalesco Leandro Vieira. Assim, neste sábado, a disputa tem uma honestidade inédita até para a Verde-e-Rosa, e ainda se adequa fortuitamente ao enredo de 2020, “A verdade vos fará livre”. O resultado pode até decepcionar algum japonês desavisado, mas reajusta o foco para seu devido lugar: o samba.

A parceria de Rodrigo Pinho empolga com os versos “Quem é na verdade o homem de bem? O que a atitude faz é muito mais que amém”, assim como a de Beto Savana com “A intolerância me fez despertar/[…] Eu sou resistência, minha vida é lutar”. Ambas fariam bonito no desfile que vai indagar como seria a volta de Cristo em um contexto de intolerância e violência. “Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em comunidades, chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma. O amor irrestrito ainda assusta”, crava o enredo.

É a parceria de Manu da Cuíca, no entanto, que verdadeiramente cativa. Com a perspectiva de uma Maria Madalena drag na avenida, como sugere a primeira fantasia divulgada, os versos “Mangueira, vão te inventar mil pecados/ Mas eu estou do seu lado” são um acalanto. Soam particularmente acertadas também a descrição de Jesus — “Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher” — e a sequência “Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem Messias de arma na mão”, além da potente pergunta: “Será que todo o povo entendeu o meu recado?”.

Trinta anos após criticar a descaracterização da festa (“O mestre-sala foi parar em outra escola/ Carregado por cartolas/ Do poder de quem dá mais” diz a letra cantada em 1990 e 2019), a São Clemente segue colocando o dedo na ferida. Diz a letra do humorista Marcelo Adnet: “Tem laranja/ Na minha mão, uma é três e três é dez/ […] Brasil compartilhou, viralizou, nem viu/ E o país inteiro assim sambou/ Caiu na fake news”. Não estará sozinha: neste ano, oito das treze escolas do Grupo Especial têm sambas críticos, ilustrando bem a função da passarela de termômetro da sociedade.

No entanto, ainda falta às agremiações, assim como à trupe do camarote que aplaudiu o desfile da São Clemente, uma boa olhada no espelho. “Eis o cortejo irreal”, começa o célebre samba da Portela de 1981, imortalizado na voz de Maria Bethânia. É verdade que uma final de samba de enredo — ora, uma visita qualquer à quadra — impressiona, seja como for a disputa. Mas o Carnaval, aquele que é fruto de paixões e tem raízes longe da ganância que hoje o controla, se beneficiaria muito se começasse a se despir do sobrepeso de seus cortejos irreais.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #30 jan/fev.20 em janeiro de 2020.