Arte,

Do ato aos fatos

Arte produzida sob a sombra do AI-5 restitui verdade factual sobre ponto de virada do autoritarismo

12jan2020

O anúncio aconteceu no Grande Salão de Visitas do Palácio Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Às 22 horas de uma sexta-feira, 13 de dezembro do ano bissexto de 1968, Alberto Curi, locutor oficial da Voz de Brasil, entrou no ar, em cadeia nacional de rádio e televisão. Atrás de uma mesa de mármore, tendo, às costas, um retrato a óleo de Luís 14 — coincidentemente, o rei francês que melhor representa o absolutismo e a centralização do poder — e, solenemente acomodado a seu lado, o ministro da Justiça, Luís Antonio Gama e Silva, Curi leu, num tom monocórdio, os seis considerandos e os doze artigos que compunham o Ato Institucional n° 5 — dezoito páginas datilografadas em tipologia grande, com anotações rabiscadas nas margens que incluíam o Ato Complementar n° 38, decretando o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado. 

Na outra ponta do salão, perfilado, estava o ministério do general Costa e Silva — com os ministros militares à frente. Quando Curi terminou de ler o último artigo e foram desligadas as câmaras de TV e os microfones das rádios, os ministros abraçaram-se. Difícil explicar exatamente a razão da euforia, mas, dali por diante, não haveria mais limites para a ditadura — nenhum limite.

O AI-5 era uma ferramenta de intimidação pelo medo, não tinha prazo de vigência e seria empregado diuturnamente pela ditadura contra a oposição e a mera discordância. Fazia parte de um conjunto de instrumentos e normas discricionárias que foram adaptadas ou criadas pelos militares durante os anos de exercício do poder: Atos Institucionais, Atos Complementares, Decretos-Leis, Decretos Secretos, Leis Especiais ajustadas para reprimir crimes contra a segurança nacional. 

Consumado o golpe de Estado, em 1964, os militares despenderam muito esforço para enquadrar seus atos em um arcabouço jurídico e construir um tipo de legalidade plantada no arbítrio — uma espécie de legalidade de exceção —, capaz de impor graves limites à autonomia dos demais poderes, punir opositores e dissidentes, desmobilizar a sociedade e limitar, em grau elevado, qualquer forma de participação política. 

Era da consolidação da ordem ditatorial que se tratava; e o AI-5 iria garantir que o uso de poderes discricionários pelo governo dos militares alcançaria seu ponto máximo. Suspendia a concessão de habeas corpus, abolia as franquias constitucionais de liberdade de expressão e reunião e permitia a prisão de qualquer cidadão por sessenta dias, dez deles em regime de incomunicabilidade. Assembleias Estaduais e Câmaras Municipais foram colocadas em recesso, sem limitação de prazo, e da noite para o dia três ministros do Supremo Tribunal Federal viram-se aposentados compulsoriamente — Vítor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva, Hermes Lima. Tem mais: o AI-5 assegurou ao governo executar demissões sumárias no serviço público, cassar mandatos parlamentares e direitos de cidadania, e determinar que o julgamento de crimes políticos fosse realizado por tribunais militares, sem possibilidade de recurso. 

Nas artes, o avanço foi voraz. Antes mesmo de Alberto Curi começar a leitura do texto do AI-5 diante das câmaras de televisão, os censores ocuparam as redações de jornais, rádios e televisão em todo o país. Era uma operação nacional, e não importava a orientação política, religiosa ou ideológica dos meios de comunicação — em Minas Gerais, por exemplo, um oficial do Exército acompanhado por cinco soldados armados de metralhadores invadiu, às duas da madrugada, as oficinas de O Diário, jornal da Arquidiocese de Belo Horizonte. 

O AI-5, que não gostava de deixar registros que permitissem aos historiadores do futuro controlar as suas ações, começou a prender gente antes mesmo de ser anunciado publicamente. Os dados continuam incompletos, mas o ato levou para a cadeia mais de uma centena de artistas, escritores, poetas e jornalistas durante os dez anos em que esteve em vigor — alguns foram mortos, como Antonio Benetazzo, artista plástico assassinado na tortura e sepultado clandestinamente no cemitério de Perus, em 1972. O balanço final é devastador: cerca de quinhentos filmes, 450 peças de teatro, duzentos livros, mais de quinhentas letras de música, além de uma dezena de capítulos e sinopses de telenovelas terminaram alvo de censura ou proibidas na íntegra; uma centena de revistas foi simplesmente retirada de circulação.

Arte

Um dia, essa história ia dar no jornal, previu Chico Buarque, nos versos do “Hino da repressão”, composto em 1985. Deu. Meio século depois, o Instituto Tomie Ohtake publicou o livro AI-5 50 anos — Ainda não terminou de acabar, organizado por Paulo Miyada. Publicado um ano depois da exposição aberta em 4 de setembro de 2018, o livro é resultado de um trabalho notável, que busca oferecer ao leitor um novo canal de acesso à arte realizada durante a ditadura militar brasileira (1964-85), com especial ênfase aos anos que se seguiram à edição do AI-5. 

A equipe curatorial coordenada por Miyada construiu uma narrativa fundada nas artes visuais, repleta de imagens das obras e sustentada tanto nos textos produzidos por seus integrantes, quanto pelos depoimentos colhidos dos artistas. A amplitude da pesquisa, por sua vez, permitiu à narrativa se alastrar por diferentes campos da produção artística brasileira: teatro, canção popular, literatura, poesia, ensaio. 

Mas de onde vem a potência dessa narrativa? Da seleção das obras e de sua impressionante visibilidade, é claro. Visto com mais vagar, porém, o leitor provavelmente vai perceber que a força narrativa tem também sua origem em uma urgência: nos tempos que correm é premente motivar os brasileiros a enfrentarem seu passado doloroso e recente, marcado pelo trauma, pela brutalidade, pela frustração. A exposição encerrou-se no dia 4 de novembro de 2018 — uma semana após o término das eleições presidenciais e de uma campanha eleitoral sublinhada pela tentativa inédita de fraudar a historia do país e reescrever, de forma heroica e nacionalista, os 21 anos de ditadura militar. 

Não há como escapar da constatação: a potência narrativa do livro está igualmente ajustada à definição de coragem como a mais antiga das virtudes políticas. Significa, nesse contexto, a disposição de Miyadae sua equipe em fazer ostentação pública daquilo que Hannah Arendt definiu por “verdade factual”: expor os fatos que não podem ser modificados pela vontade de quem ocupa o poder, nem podem ser demovidos a não ser por força de mentiras cabais — por essa razão, seu contrário não é o erro, nem a ilusão, nem a opinião, nem a versão e sim a falsidade deliberada, a mentira. Não por acaso, o livro se inicia com duas obras de Samuel Szpigel — Direita, Volver! Baionetas— um arquiteto e artista que posicionou no centro do seu trabalho o desafio ético de oferecer resposta direta e imediata à história do seu tempo.

Os autores de AI-5 50 anos apostaram em uma forma própria de escrita da história — “não tenho nada a dizer; somente a mostrar”. E, como imaginou Walter Benjamin, essa é uma escrita de natureza visual e espacial. Mostrar por meio do acesso às imagens das obras selecionadas para a composição do livro permite intensificar o dado do passado que entra na narrativa, não para provocar uma expansão descritiva do enredo, mas com a pretensão de enunciar algo inteligível para compreensão do nosso próprio presente. 

Berço esplêndido, instalação de Carlos Vergara, por exemplo, rompe com as convenções dos formatos tradicionais de pintura e de escultura e cria uma espécie de velório para um país gigante que sonha sua grandeza não realizada, enquanto permanece “deitado eternamente em berço esplêndido”. Entre o sonho de grandeza batizado pela ditadura militar “Brasil Grande Potência” e a incapacidade de ser grande, diz Vergara, existe um país prostrado. E arremata: PENSE. 

Contudo, mostrar significa também revelar algo que, em determinado momento, as diferentes forças políticas no interior da sociedade brasileira colaboraram ou conspiraram para esconder. Afinal, os fatos não necessariamente coincidem com aquilo que o poder está disposto a assumir em público, e existem histórias que não se quer divulgar — ou se deseja esquecer. Os artistas selecionados  escolheram meios muito distintos de linguagem e expressão estética, mas compartilharam tanto da tentativa de definir uma forma artística particularmente inovadora, quanto do empenho em devassar o mundo do segredo, do censurado, do impublicável; todos eles assinaram obras que insistem em contestar, perturbar e comprometer a coerência e a veracidade da versão oficial dos fatos colocada em curso pelos militares. Alguns artistas agiram à moda de um sabotador de versões, alguém capaz de extrair da realidade política do país um conjunto de informações e através delas proceder a uma ostentação de fatos que contestavam a versão dos acontecimentos apresentada pelas autoridades.

Foi o caso de Cildo Meireles. Em 1970, ele subverteu os circuitos de consumo e criou algo próximo a uma arte de guerrilha. Imprimia, com tinta branca vitrificada, palavras de ordem em rótulos de garrafas de Coca-Cola — “Abaixo a ditadura!” — que eram, em seguida, devolvidas à circulação — era primeira fase da série Inserções em circuitos ideológicos

Achou pouco. Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado sob tortura na sede do CODI-DOI paulista. Os militares não tinham como fazer o corpo desaparecer — a redação inteira da TV Cultura sabia que seu diretor compareceu espontaneamente ao DOI. Sem alternativa, construíram a versão do suicídio: em nota oficial emitida pelo comandante do 2o. Exército, o país foi informado de que Herzog teria se enforcado na cela, usando uma tira de pano — que ele não possuía —, com os pés no chão e as pernas curvadas. 

Poucas semanas após o assassinato de Herzog, Cildo Meireles criou o Projeto Cédula: carimbou milhares de cédulas de 1 cruzeiro com a pergunta “Quem matou Herzog?” e devolveu tudo ao seu sistema original de circulação. Em 2013, “Cadê Amarildo?” voltou à cena em cédulas de Real para denunciar o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, torturado e morto por policiais militares dentro da Unidade Pacificadora da Rocinha, no Rio de Janeiro. Existe algo no nosso passado que não passou, sublinha o artista; tal como o AI-5 que ainda não terminou de acabar, confirmam os autores do livro.

Imaginação

A faculdade de conhecimento na arte é a imaginação. A arte tem um modo original de dizer sobre os dilemas e as possibilidades de interpretação do país e oferece um lugar alternativo de intensa visibilidade para enxergarmos algo daquilo que se passa no mundo histórico. Não é que a arte consiga ver mais — mas acende a imaginação para conseguir ver mais intensamente. Permite enxergar aquilo que de algum modo já está acontecendo — ao nosso lado, e em algum ponto do passado. Miyadae sua equipe não tinham como saber disso à época, mas quando conceberam o livro AI-5 50 anos — Ainda não terminou de acabar, também realizaram um contundente exercício projetivo do Brasil. 

É o caso de conferir. Um ano depois da publicação do livro, na tarde do dia 31 de outubro de 2019, uma quinta-feira, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), afirmou, em entrevista ao canal da jornalista Leda Nagle no YouTube: “Se a esquerda radicalizar a esse ponto [como ocorreu em 1968] a gente vai precisar ter uma resposta. Uma resposta ela pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de plebiscito, como ocorreu na Itália, alguma resposta vai ter que ser dada, porque é uma guerra assimétrica, não é uma guerra onde você está vendo o seu oponente do outro lado e você tem que aniquilá-lo, como acontece nas guerras militares”. 

Não chegou a completar um mês, na noite de 25 de novembro de 2019, foi a vez do atual ministro da Economia, Paulo Guedes, declarar, durante uma entrevista coletiva, em Washington, ao comentar sobre as manifestações de protesto nos países vizinhos ao Brasil, na América Latina: “Levando o povo para a rua para quebrar tudo […]. Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”. 

Tanto o deputado da República quanto o Ministro de Estado pularam a parte da Constituição, pisaram no acelerador e acenaram aos jornalistas a sua disposição de passar de uma democracia para a ditadura pura e simples, utilizando a mesmíssima justificativa usada pelo governo do general Costa e Silva: em 1968, o AI-5 seria a única alternativa para manter a ordem no país depois de um ano de manifestações de protesto contra o arbítrio que levou os militares ao poder. 

Ficou por isso mesmo, mas faltou explicar o drible que Bolsonaro e Guedes estavam dando na verdade factual. Em 1968, era tudo teatro, esclareceu o ex-ministro da Economia e expoente do governo Costa e Silva, Antonio Delfim Netto, em agosto de 1986 e novembro de 1988, no decorrer de três depoimentos que concedeu ao jornalista Elio Gaspari, publicados no livro A ditadura envergonhada: “Naquela época do AI-5 havia muita tensão, mas no fundo era tudo teatro. Havia as passeatas, havia descontentamento militar, mas havia, sobretudo, teatro. Era um teatro para levar ao Ato. Aquela reunião [do Conselho de Segurança Nacional que chancelou a edição do AI-5] foi pura encenação […]. O que se preparava era uma ditadura mesmo. Tudo era feito para levar àquilo”. 

Convenhamos: Paulo Miyada e sua equipe de curadores acertaram em cheio. O AI-5 dificilmente irá se repetir no Brasil — ele ainda não terminou de acabar. Tem cara reconhecível e forma política nova. Por essa razão, o livro que eles organizaram também traz um alerta ao leitor: é preciso enfrentar o passado para dar forma ao que vemos e ouvimos hoje. Até mesmo porque a História é sempre pior — e melhor — do que conseguimos imaginar.

Referências bibliográficas
ALTMAN, Fábio. “13 de dezembro de 1968; o dia do AI-5”. Época, 13 de dezembro de 2010
ARENDT, Hannah. “Verdade e política”. In:_.Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1988
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte; São Paulo: Editora UFMG; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006
GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002
VENTURA, Zuenir. 1968; o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988
MUNTEAL FILHO et all. Tempo negro, temperatura sufocante; estado e sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio: Contraponto, 2008

Quem escreveu esse texto

Heloisa Murgel Starling

Historiadora, escreveu Ser republicano no Brasil Colônia (Companhia das Letras).