A Feira do Livro,

A maior crise da humanidade

Autor de ‘O decênio decisivo’, Luiz Marques acredita que precisamos superar o capitalismo para sobreviver ao aquecimento global

08jun2023 | Edição #70

"A maior crise com a qual a humanidade já se deparou". Foi assim que Luiz Marques, convidado da mesa "Distopias Climáticas" d’A Feira do Livro, definiu a mudança climática pela qual o mundo tem passado. O autor de O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência, livro recém-publicado pela Editora Elefante, conversou sobre o tema com o jornalista Bernardo Esteves, especializado na cobertura de temas ambientais.

Professor livre-docente aposentado da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Luiz Marques trocou há quinze anos uma carreira como pesquisador e professor de história da arte pelo tema das ameaças climáticas. E o que levou um ex-curador-chefe do Masp (Museu de Arte de São Paulo) a fazer essa mudança drástica?

"A resposta curta que eu poderia dar é: por que outras pessoas ainda não estão fazendo isso? Por que meus colegas na história da arte não estão fazendo isso?", respondeu Marques. "Nada contra a história da arte, claro, mas estamos diante da maior crise com a qual a humanidade já se deparou. O que me intriga é que se esteja estudando questões menores do que isso, porque essa é a maior questão que temos hoje", completou.

Em seu livro, que reúne uma grande quantidade de dados sobre os impactos das mudanças climáticas, o professor e pesquisador argumenta que o momento atual é crucial para decidirmos coletivamente o que fazer para sobrevivermos como espécie.

"Nós já sabemos que, mesmo que a gente não emita mais nenhuma molécula de gases de efeito estufa a partir de hoje, a temperatura ainda se elevaria. Não se sabe exatamente quanto, mas sabemos que teríamos um aquecimento", explicou Marques. Isso se deve ao fato de que o próprio sistema de aquecimento passa a se retroalimentar, gerando mais aquecimento.

O autor dá o exemplo do derretimento das calotas polares, que atuam como uma espécie de espelho, devolvendo para o espaço 90% da energia solar recebida. "Quando o aquecimento começa a diminuir a superfície de gelo, ela dá lugar a superfícies escuras, como o próprio oceano, e aquelas superfícies que ajudavam a desacelerar o aquecimento começam a acelerá-lo."

Marques não vê uma saída para essa crise dentro do sistema econômico capitalista. E aponta que, além da produção e consumo de combustíveis fósseis, outro grande responsável pelas mudanças climáticas é o sistema alimentar globalizado – a produção agrícola em grandes extensões de terra, voltada para exportação, as corporações agroquímicas, que controlam sementes, agrotóxicos, maquinários, e as grandes multinacionais alimentícias – responsável por mais de um terço das emissões mundiais de gases de efeito estufa.

"Precisamos pensar que temos uma economia globalizada que é capitalista, e isso inclui países como China e Rússia. E o sistema econômico globalizado impede qualquer possibilidade de sairmos dessa crise", apontou. "Temos que sair do sistema alimentar globalizado – fazendeiros, corporações, agroquímicas que controlam todo esse sistema. O fazendeiro é a vanguarda de um sistema que é altamente destrutivo, mas é só a linha de frente. Esse sistema tem que ser desmontado", completou.

Como alimentar o mundo?

E qual, então, seria a alternativa para alimentar a população mundial?

"O exemplo positivo é o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), que produz alimentos orgânicos, em cooperativas, para atender demandas mais locais, como merenda escolar, sem pretensão de participar do sistema alimentar global", explicou Marques. "É esse o modelo positivo, está diante dos nossos olhos, e a CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito instalada na Câmara dos Deputados, sob controle da bancada ruralista] está querendo criminalizar isso. Por quê? Porque são eles os criminosos", sentenciou.

Outro "culpado" pela inércia mundial em lidar com a crise climática, para Marques, é a ideia de soberania nacional absoluta e a forma como atuam Estados produtores de combustíveis fósseis, que não se comportam de forma muito diferente das corporações que tomam decisões visando lucro e crescimento econômico.

"É o caso do Brasil, da Arábia Saudita. Aquilo que está debaixo da terra é um ativo do Estado. Um governante vai se desfazer desse ativo em prol da humanidade? É preciso uma mudança muito forte de paradigma, é preciso que os Estados se democratizem radicalmente no sentido de não estarem nas mãos de tecnocratas que vão pensar de acordo com uma lógica da produção econômica", argumentou.

Cooperação internacional

Para o autor, também é preciso um nível de cooperação internacional que só seria possível se órgãos como a ONU (Organização das Nações Unidas) tivessem poder decisório e pudessem obrigar Estados a tomarem medidas contra a mudança climática.

"É uma situação que só pode ser resolvida se a gente superar essa ideia da soberania nacional absoluta dos Estados. Porque os problemas são globais. Isso supõe um nível de cooperação que estamos muito longe de ter. Porque os países que estão decidindo o futuro da humanidade são cinco países que compõem o Conselho de Segurança da ONU, que têm poder de veto sobre as decisões. Enquanto houver esse conselho, a ONU é um simulacro", argumenta.

Em relação às críticas à atuação do governo Lula (PT) em relação a pautas ambientais e medidas para deter as mudanças climáticas, Marques apresentou outra perspectiva: "Depende da gente, não é o Lula que vai resolver esse problema".

"A gente tá um pouco iludido com a ideia de que o problema é do Lula. O Lula tem duas limitações: uma é a articulação política, a composição de forças no Congresso. A outra é que o Lula é um homem do século 20, ele vem do sindicalismo, então o que ele quer é pôr picanha na mesa de todo mundo, que é exatamente o oposto do que a gente precisa". E completou: "Mas o Lula é um homem muito antenado com o zeitgeist, ele pega isso, e é muito capaz de se adaptar. O problema é que a sociedade está muito inerte. Depende da gente, e depender da gente é chato. Mas se não tomar a iniciativa e se engajar individualmente nisso, não é o Lula que vai resolver. É a gente".

Ainda que aponte situações e perspectivas que podem parecer catastróficas, Marques mantém certo otimismo e tem propostas para superar a crise climática.

"O subtítulo do livro é 'propostas para uma política de sobrevivência' e não 'para uma política de desenvolvimento' porque a gente não vai se desenvolver, a gente vai diminuir. Está muito próximo o momento em que a economia vai começar a decrescer na marra porque não vai mais ter as condições para o crescimento. E nós podemos decrescer na marra ou podemos nos preparar para isso", diz.

Algumas medidas para essa preparação, na visão de Marques, são: diminuição da desigualdade, respeito aos direitos da natureza, diminuição do consumo de carne, cooperação global e garantia dos direitos das mulheres.

"A desigualdade faz com que um número muito pequeno de pessoas possa interferir nas decisões políticas. Temos que ter a renda mínima, mas temos que ter também a renda máxima, temos que ter um teto, algo que já existiu em estados de bem estar social europeus nos anos 60 e desapareceu com o neoliberalismo. Temos que entender que vivemos num concerto de espécies e temos que estender para outras espécies o status de sujeitos de direito. A ideia de direitos da natureza é uma questão de evolução do direito", explicou.

"Se as mulheres, auxiliadas pelos homens, conquistarem seus direitos reprodutivos, o aborto, teremos uma virada na transição demográfica. Isso está provado em países onde as mulheres têm esses direitos. Hoje temos 8 bilhões de pessoas, é gente demais. Temos que transitar para uma população que seja mais adequada a essa organização de uma política de sobrevivência. A questão dos direitos das mulheres é fundamental para desacelerar essa crise climatica", concluiu.

A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Natalia Engler

É jornalista e pesquisadora de comunicação e gênero.

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.