Literatura,

Decifrando um poeta multipartido

Richard Zenith conta como um acaso o tornou especialista na vida e obra de Fernando Pessoa, após aprender português no Brasil

19maio2023

Richard Zenith é um dos maiores especialistas na obra e vida de Fernando Pessoa (1888-1935). Uma frase assim sumária talvez não dê conta do montante de seu esforço e sua dedicação ao extraordinário poeta português multipartido em heterônimos.

Traduziu-o para a língua inglesa — Fernando Pessoa & Co. (Grove, 1999; prêmio pen de tradução de poesia) e A Little Larger Than the Entire Universe (Penguin Classics, 2006) — e organizou Heróstrato e a busca da imortalidade (Assírio & Alvim, 2000), Obra essencial de Fernando Pessoa (sete volumes; Assírio & Alvim, 2006-2007), Fernando Pessoa: o editor, o escritor e os seus leitores (Fundação Calouste Gulbenkian, 2012), Livro do desassossego (Assírio & Alvim, 1998), Correspondência amorosa completa, 1919-1935 (Capivara, 2013), Escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal (Assírio & Alvim, 2014) e A educação do estoico: o único manuscrito do Barão de Teive (Assírio & Alvim, 2018). Alcançou o zênite com o monumental Pessoa: uma biografia (Companhia das Letras, 2022).

Cidadão português, Zenith nasceu em Washington, em 1956, e vive, desde 1987, entre Lisboa e a Carrapateira, “uma aldeia de pescadores numa zona do Algarve ainda agreste”. Além de trovadores portugueses, Luís de Camões e Sophia de Mello Breyner Andresen, traduziu João Cabral de Melo Neto (Education by Stone, Archipelago Books, 2005) e Carlos Drummond de Andrade (Multitudinous Heart, Farrar, Straus and Giroux, 2015). Em 2012, recebeu o Prêmio Pessoa, concedido a quem contribui para as artes, literatura e ciências de Portugal. Neste mês de junho, Zenith estará em São Paulo, para participar d’A Feira do Livro.

Nesta entrevista, ele conta como aprendeu português, comenta sua relação com escritores brasileiros e as dificuldades e recompensas na pesquisa literária e, claro, de beca fala à beça de Pessoa, revelando aspectos sobre seu processo de trabalho e fatos que ficaram de fora de seus livros. 

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Você aprendeu português em Florianópolis há quarenta anos. Como veio parar no Brasil?
Eu tinha 22 anos e tencionava ir para o Brasil, sem saber muito bem por quê, quando soube de um programa de intercâmbio de professores de língua entre a Universidade da Virgínia, onde eu estudava, e a Universidade Federal de Santa Catarina. Fui aceito como professor de inglês e fiquei em Florianópolis durante um ano. Depois de um par de anos em Nova York, voltei a Florianópolis, por mais dois anos.

Qual é a sua relação com autoras e autores brasileiros?
João Cabral revelou-me uma maneira nova de conceber e fazer poesia, como uma espécie de engenharia verbal, inspirando-me a escrever os meus próprios versos (publicados dispersamente). Drummond espanta-me pela maneira com que configura emoções e transforma autobiografia em arte. Na prosa, Machado de Assis e João Guimarães Rosa foram os escritores que mais me impressionaram. Também traduzi muita poesia de Ferreira Gullar [publicada em revistas e em Brazilian Poetry 1950-1980, Wesleyan University Press, 1983]. E fui lendo e apreciando muitos outros autores: Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Jorge Amado, Rubem Fonseca, Hilda Hilst…

Eu precisava conviver com Pessoa, sua obra e seus demônios, para poder senti-lo

Continua em contato com a literatura e a poesia brasileiras?
Estou totalmente desatualizado. Durante os anos que dediquei à biografia de Pessoa, praticamente tudo que eu lia estava relacionado com essa tarefa.

Quais são suas expectativas sobre sua vinda ao Brasil para A Feira?
Cada vez que viajo para o Brasil, sinto um pouco como se estivesse a voltar ao berço, por ser aí que aprendi
o português e por certas pessoas e experiências que me marcaram indelevelmente. Não tenho expectativas específicas para essa viagem, mas sei que vou adorar conhecer pessoas novas e trocar impressões, ideias e sorrisos com elas. Uma pessoa da minha editora em Portugal esteve n’A Feira do Livro em 2022 e ficou encantada.

Qual língua é sua pátria?
Inglês, português, italiano, espanhol e francês — nessa ordem. E cada uma dessas línguas é realmente uma pátria. Penso e sinto de uma maneira ligeiramente diferente, dependendo da língua em que o faço. Suponho que é assim para todos que falam mais de uma língua.

O que a literatura e a poesia significam para você?
Poder sentir e sonhar sem limites. Lendo ou escrevendo, somos sempre jovens, tudo continua sendo possível.

O que o atrai na literatura lusófona?
Não consigo identificar uma particularidade na literatura lusófona que me atraia em especial. Posso dizer, no entanto, que a própria língua portuguesa me seduz por razões não apenas sentimentais. Talvez os linguistas discordem de mim, mas penso que o português tem uma grande plasticidade, parece-me que é mais flexível, menos rígido do que outras línguas latinas. Essa constatação, se for verdade, sugere que a literatura lusófona, comparada com outras literaturas, deveria ter uma maior variedade de estilos expressivos, mas não sei se é realmente assim.

O que o atraiu e fez dedicar tanto tempo e esforço a Pessoa? Como foi seu primeiro contato com ele?
Foi nos Estados Unidos que descobri Pessoa, mas comecei a lê-lo atentamente no Brasil. Ainda tenho livros da sua poesia que adquiri em Florianópolis, por volta de 1980. Pessoa tem o dom de exprimir ideias complexas e sentimentos profundos em palavras simples. Atrai-me também a dramaticidade da sua obra, que decorre no palco de seu próprio ser. Pessoa, o mais impessoal dos poetas, é também o mais íntimo.

João Cabral revelou-me uma maneira nova de fazer poesia, inspirando-me a escrever

O meu trabalho sobre ele desenvolveu-se quase por acaso. Comecei por traduzir o Livro do desassossego para o inglês. Uma vez que já havia duas edições da obra em português, muito diferentes entre si, fiz uma aturada pesquisa no arquivo de Pessoa para descobrir quais trechos certamente pertenciam ao Livro e quais outros lhe pertenciam apenas conjecturalmente. Por eu ter adquirido essa familiaridade com os originais, fui mais tarde convidado a organizar a edição da editora Assírio & Alvim. Passei a organizar outras edições, da poesia e da prosa, ao mesmo tempo que traduzia mais Pessoa para o inglês. Embora eu gostasse muito da poesia de Pessoa, nunca imaginei que esse autor acabaria por dominar a minha vida profissional quando cheguei a Lisboa, em agosto de 1987, com uma bolsa para traduzir as cantigas medievais galego-portuguesas.

Durante esse trabalho monumental, sentiu-se vivendo as vidas de Pessoa? O biógrafo pode ser, como o poeta, um fingidor?
Na Universidade de Coimbra fiz uma palestra intitulada, precisamente, “O biógrafo é um fingidor?”. Com efeito, não basta apresentar fatos como faz uma enciclopédia; o biógrafo tem de dar vida aos fatos, encenando-os ou pelos menos os combinando de modo que fiquem transfigurados, palpáveis, tangíveis.

Também achei importante contextualizar a vida do biografado, retratando os lugares e os anos em que essa vida passou. No entanto, muitas outras pessoas, mesmo escritores, viveram nos mesmos lugares e na mesma época. Por que Pessoa era quem era? Como era ele por dentro? A determinada altura, comecei a escrever na primeira pessoa, como se fosse o espírito do Pessoa que, num além qualquer, recordava a sua vida. Foi uma tentativa de penetrar o sujeito da minha biografia, mas tal ponto de vista narrativo, é claro, não seria viável sem uma boa dose de ficção.

Levei anos a fazer esse livro em parte porque precisava “conviver” com Pessoa, sua obra e seus demônios, para poder senti-lo — não ouso dizer “compreendê-lo”. Assumi o papel de um psicanalista, não por pretender psicanalisar Pessoa, e sim por estar aí a ouvir, ouvir com muita atenção.

Quais foram a maior dificuldade e a maior satisfação na pesquisa e escrita da biografia de Pessoa?
A pesquisa foi árdua e demorada, pois passei um sem-fim de horas a consultar documentos em bibliotecas, arquivos históricos e coleções privadas e transcrever dezenas de cartas inéditas trocadas entre os familiares de Pessoa — tudo isso para recolher pequenos fatos que, não sendo nenhum deles fundamental, no conjunto dão espessura e vida à narrativa.

A pesquisa foi, em última análise, um trabalho de detetive, difícil, mas divertido, revelando muitas surpresas. A escrita, contudo, foi de longe o aspecto mais duro dessa longa aventura e, também, o que deu mais satisfação, na medida em que eu conseguia realizar — depois de várias versões — uma cena bem contada, uma explicação bem delineada.  

Houve algum episódio curioso nos processos de pesquisa?
Houve uma carta inédita ainda na posse dos sobrinhos de Pessoa que me intrigava, mas a letra era difícil de decifrar. Foi uma carta espirituosa, escrita em inglês e datada: “Londres, 26 de fevereiro de 1906” — seis meses após o regresso definitivo de Pessoa a Lisboa, onde estudava no curso superior de Letras. O remetente, um colega da escola de Pessoa em Durban, tinha ido a Londres para estudar medicina. Recordava-se de vários amigos em comum e contava notícias sobre eles.

Percebi que Pessoa, ao contrário do que eu pensava, havia tido um círculo de amigos bastante próximos. Ao decifrar os nomes, porém, percebi que pelo menos dois dos amigos eram personagens inventadas pelo jovem poeta e que a carta fora assinada por G. Nabos, isto é, Gaudêncio Nabos, um heterônimo humorístico criado em Durban. É espantoso que Pessoa, com quase dezoito anos, tenha escrito uma carta de quatro páginas para si próprio em nome desse heterônimo — uma carta que relatava notícias sobre amigos imaginários.

O grande pensador e crítico Eduardo Lourenço insistia em que os heterônimos “eram” a sua poesia, não tinham nenhuma existência autônoma. Pode ser, mas então a poesia, para Pessoa, significava muito mais do que versos organizados em estrofes. Os heterônimos, aliás, podem ser vistos como o ato poético mais admirável de Pessoa.

Ficou algo fora do seu livro? Algo que não pôde incluir ou não coube?
Tenho um cemitério de passagens e pormenores que cortei do livro, mas não creio que façam falta. Eu poderia ter escrito mais sobre o esoterismo, a política e os interesses literários de Pessoa, sobre seus amigos mais próximos, e há vários conhecidos do poeta cujos nomes nem mencionei, para não me dispersar e carregar o livro com nomes que o leitor não iria reter.

Pessoa é adorado, com um séquito de devotos leitores. O que fascina tanto o leitor “comum”? E um suposto leitor “incomum”?
Pessoa leva-nos — sejamos leitores “comuns” ou “incomuns” — para paragens insólitas, ora maravilhosas, ora inquietantes, onde nunca estivemos, mas que lentamente vamos reconhecendo. Ou seja, leva-nos para regiões inexploradas de nós próprios.

A multiplicidade de pessoas no Pessoa seria condição “dialética” para o caráter elusivo do autor e da obra?
Certamente, mas seria também um método intuitivo para melhor representar-se e, ainda, para se inventar e expandir. Pessoa nunca parou de navegar, descobrir e crescer. 

E qual escritor(a) brasileiro(a) seria mais próximo(a) de Pessoa?
Carlos Drummond de Andrade, pela capacidade de encerrar tanta emoção, tanto sentimento, nos versos de um poema. Clarice Lispector, pela estranheza do seu universo literário.

Pela estrutura de fragmentos e colagens de referências, há obras parecem se acomodar melhor no hipertexto digital. Seria o caso de Pessoa?
Se não me engano, [a crítica literária] Leyla Perrone-Moisés foi a primeira pessoa a sugerir que o Livro do desassossego deveria, idealmente, ser publicado numa edição de folhas soltas — isso bem antes da nossa época digital. O Arquivo LdoD já realizou a sugestão da insigne crítica e pessoana. Não deve faltar muito para que a obra-caos de Pessoa constitua uma floresta de hiperlinks em que os estudiosos e os simples leitores podem se perder, esperemos que alegremente.

Seu trabalho é uma eloquente demonstração de amor a Pessoa. Qual síntese estimularia leitores a descobrir ou redescobrir sua obra?
Há um poema de João Cabral, “Fábula de um arquiteto”, que descreve, na primeira estrofe, uma arquitetura ideal, que consistiria unicamente na construção de portas de abrir,
na construção do aberto. Pessoa, com seus muitos projetos inacabados, é a versão literária dessa fábula. Deixou uma vasta obra que ficará para sempre aberta, convidando-nos a encontrar nela um abrigo — um que rejeita definições e conclusões. Pessoa ergueu uma casa para todos, feita de muitíssimas portas e dedicada à liberdade.

Alguns consideram Cesário Verde o melhor poeta português, ao lado de Pessoa. O que você acha? Ele poderia ser um futuro tema de seu interesse?
Quando conheci João Cabral, em 1985, aconselhou-me a leitura de O livro de Cesário Verde. Considero Camões e Pessoa os dois cúmulos da poesia portuguesa e Cesário Verde o terceiro ponto mais alto. Já traduzi para inglês seu poema maior, “O sentimento dum ocidental”. Talvez eu chegue a traduzir outros poemas dele, e depois… não sei. Lançou-me um desafio!

Quem escreveu esse texto

Carlos Adriano

Doutor em cinema pela USP, escreveu Peter Kubelka: a essência do cinema (2002) e dirigiu o filme A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998).