Flip, Literatura Negra,

Voz do morro

Geovani Martins descreve como foi viver na Rocinha após chegada de UPP

01nov2022

Sentia o suor escorrer pelas costelas quando Geovani Martins chegou à saída A do metrô São Conrado/Rocinha, vestindo bermuda e uma camiseta estampada com flores — combinação adequada aos mais de trinta graus que fazia no primeiro dia quente no Rio, após um setembro frio e chuvoso. Com um ar fresco de quem acabara de sair do banho, Geovani vinha a pé, de casa, um prédio a cinco minutos de caminhada, do outro lado da avenida, no bairro de São Conrado, endereço estratégico. “Sou feliz de estar próximo e sentir que moro na Rocinha sem viver aqui, pois não ignoro os problemas que existem — e são muitos”, diz ele.

O vaivém de moradores, trabalhadores, adolescentes de uniforme escolar, mulheres empurrando carrinhos de bebê e turistas estrangeiros estava intenso naquele início de tarde de terça-feira, véspera do feriado de Nossa Senhora Aparecida. Para Geovani, por atrair gente de todo canto, a maior favela do país é também a mais cosmopolita. Misturados ao fluxo rumo à Via Ápia, atravessamos o Mercado Popular da Rocinha entre as dezenas de boxes que vendem de camisetas de times de futebol a equipamentos eletrônicos. No caminho até o Trapiá Restaurante e Pizzaria, onde Geovani costuma almoçar, passamos por salões de beleza, mercados, docerias, lojas de móveis e de roupas, desviando dos mototáxis. De alto-falantes, uma algazarra de vozes bradando promoções misturava-se aos gritos de torcedores num boteco onde a TV exibia um jogo da liga europeia e ao som dos escapamentos das motocas.

“Tinha pensado em pedir um café, mas, com esse calor, a vontade é de tomar uma cerveja”, diz Geovani, chamando a atendente até a mesa de canto do restaurante por quilo. O chope desceu geladinho, embalando o início de um papo de duas horas em que o autor de O sol na cabeça, de 2018, contou por que fez da Rocinha a protagonista de seu segundo livro. No romance Via Ápia (Companhia das Letras), ele narra a história de Wesley, Washington, Murilo, Douglas e Biel, amigos cujas trajetórias são transformadas pela chegada da Unidade de Polícia Pacificadora. A trama é inspirada nos quatro anos em que Geovani residiu ali, de 2011 a 2014, período em que viveu a tensão pré-instalação da UPP e suas consequências no dia a dia.

No tempo em que esteve na Rocinha, o escritor morou na Via Ápia e em bairros como Cachopa, Portão Vermelho e Paula Brito. Na Travessa Kátia, uma viela que corta a Via Ápia, alugou um apartamento num predinho espremido entre uma boate e uma igreja evangélica. “Quando a UPP chegou, a boate virou um restaurante que manteve a decoração: no meio das mesas, tinha um mastro de pole dance”, diverte-se, apontando para a fachada do clube. Como todos os outros moradores, Geovani tomou inúmeras duras da polícia dentro da favela e teve sua casa invadida pelo menos três vezes.

Anos depois, entendeu que as violências que sofreu e testemunhou compõem uma política de segurança pública que, para ele, faz o combate ao tráfico de drogas ser mais letal que o uso de entorpecentes. “A gente vivia um período de paz até a chegada da UPP e a volta dos conflitos armados. Os caras pacificaram com tiro.” Com os capítulos esquematizados como um diário, Geovani cobre o período de julho de 2011 a outubro de 2013, desencadeando os acontecimentos sob a perspectiva de cada um dos rapazes — personagens criados a partir de suas próprias experiências e de amigos. “O Zoio está no livro”, diz Geovani, referindo-se ao homem alto, meio curvado e olhar estrábico que pede dinheiro parado em frente à mesa. “Antes, o Zoio pedia um real. Agora inflacionou, tá pedindo cinco.”

Potência narrativa

A vibrante construção desse universo, de suas gírias e de sua arquitetura fizeram de O sol na cabeça um marco literário. “Na Rocinha, compreendi que essas narrativas têm potência e que escrever na linguagem do dia a dia e sobre essa paisagem é relevante para a literatura. Foi assim que chamei a atenção de outras pessoas e consegui publicar meu primeiro livro”, diz ele. O autor está na programação principal da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), onde participa de uma conversa com a estadunidense Ladee Hubbard, sobre escritores que se “apropriam de elementos presentes para reinventar gêneros e ressignificar acontecimentos, colocando genealogias em choque e questionando o presente”, segundo o site da Flip.

Geovani tem engatilhadas outras duas publicações: um livro de contos e outro reunindo três reportagens sobre maconha, realizadas em cidades onde o consumo deve se tornar legal, como Berlim, e que traz ainda discussões sobre o acesso a ela no Brasil. Ele também trabalha na versão de O sol na cabeça para a TV. “Minha escrita é muito influenciada pelo cinema e pela televisão, que foi a babá da minha geração, nos anos 90. Sempre imagino meu narrador como uma câmera dos filmes dos [irmãos] Dardenne, colada ao ombro do protagonista, revelando sempre em primeiro plano o que ele está vendo, como se fosse o olho do personagem.”


Os nigerianos Chinua Achebe e Chimamanda Ngozi Adichie são inspirações

Como era o panorama editorial para a literatura feita por pessoas negras, periféricas ou não, quando O sol na cabeça foi lançado, em 2018?
Estávamos vivendo a mudança do que seria a atual cena da literatura brasileira. Em 2013, publiquei pela primeira vez, na antologia Narrativas curtas, lançada pela Festa Literária das Periferias [Flup], e estava eufórico pois descobri que era possível ser escritor. E tomei um banho de água fria ao conhecer a pesquisadora Regina Dalcastagnè, que apresentou um trabalho mostrando que, até 2011, existiam no Brasil uns dez romances escritos por autores negros e uns quinze personagens negros. Pensei: “Caralho, é isso mesmo que eu quero fazer? Vou ser o 11º?”. E aí eu publiquei em 2014, na revista Setor x; e em 2015 novamente na coletânea da Flup. Até 2016, participei de diversas publicações e comecei a ganhar cachês. Em 2018, meu livro comprovou a potência dessa escrita, mas, para O sol na cabeça acontecer, muita gente batalhou. De editoras pequenas a eventos como a Flup. Não me senti sozinho como talvez o Paulo Lins, quando saiu Cidade de Deus, tá ligado? O sol na cabeça foi um marco para o que vemos hoje dentro das editoras, mas também na mídia. A maioria dos jornalistas que me entrevistam agora é de negros. Uma realidade bem diferente da de 2018.

Quando lançou O sol na cabeça, a crítica destacou sua habilidade de transitar entre a linguagem coloquial e a culta, e a maneira como deu voz a personagens da periferia. Como analisa esses comentários?
Após publicar O sol na cabeça, consegui estabelecer um novo cânone de referências literárias. Instintivamente, sempre acreditei que a linguagem oral está à frente da escrita. Em uma perspectiva afrocentrada, é natural valorizar a oralidade. A maioria das histórias africanas foi mantida dessa forma, e o griô [contador] é importante em várias culturas. Até a música brasileira é uma crônica, seja no rap, no funk ou no samba. Isso explica a identificação com meus textos. Hoje, sou bastante influenciado por autores africanos.

Quem são esses autores?
A principal inspiração é o nigeriano Chinua Achebe. O mundo se despedaça e A flecha de Deus são referências para Via Ápia. A vida em espiral, do senegalês Abasse Ndione, que é sobre cinco amigos, também me influenciou. Além deles, usei muito a estrutura de Meio sol amarelo, da Chimamanda [Ngozi Adichie], com três personagens, cada capítulo dedicado a um deles, e perspectivas que se cruzam. Com esses autores, senti finalmente ter encontrado minha galera.

Em O sol na cabeça, cada conto é “falado” na língua da quebrada de seu protagonista. Como você concebeu os sotaques de Via Ápia?
A Rocinha talvez seja o lugar que mais recebe pessoas do Brasil inteiro. Aqui tem gente do Nordeste, do Norte, e é uma das poucas favelas com muitos migrantes do Sul. Tudo isso acaba desaguando na língua que se fala, com influências da cidade, da facção, do funk etc. Para escrever Via Ápia, ouvi funks que tocavam entre 2011 e 2013, pois tinha medo de minha memória me trair. Apareceram muitas gírias novas e era sedutor usá-las. Essas músicas também me deram uma noção da vida cultural, dos temas e do humor da época.


Em 2018, o autor assinou um contrato para um romance e já queria escrever sobre a Rocinha

Como concebeu o romance Via Ápia?
Pouco antes de publicar O sol na cabeça, assinei o contrato de um romance com a Companhia [das Letras]. Era início de 2018 e eu já queria escrever sobre a Rocinha. Sempre frequentei a casa dos amigos da escola que moravam aqui, mas só me mudei pra cá em 2011, justamente quando a UPP chegou. Vivi a expectativa da chegada, a implantação e o período de atuação até 2014. Essas histórias estavam todas na minha cabeça, eu só não sabia bem o que fazer com elas. Passados quatro anos, consegui olhar para essa época de uma forma fria e analítica e entendi que foi o começo de uma porrada de coisas que vinham acontecendo na segurança pública do Rio, como as intervenções militares na Rocinha, em 2017, e o aumento de praticamente 1.000% da letalidade policial. Quando analisei esse contexto, entendi que esse seria meu próximo livro.


Todos os personagens do romance são ‘100% Geovani. Até os de que eu não gosto’

Sobre a chegada da UPP, em um trecho do livro você descreve que estava “tudo igual mas diferente”…
Em 2011, a Rocinha estava havia seis anos sem ter praticamente nenhuma troca de tiros. Eu não tinha chave, a porta de casa ficava aberta. Às vezes, eu chegava e encontrava amigos me esperando. A UPP criou uma tensão: as crianças, os velhos, os adultos, os adolescentes, todo mundo só falava disso. Para o morador da favela, a imagem do policial está ligada à morte, à prisão, à invasão. Toda vez que eu ia comprar pão, tinha de passar em frente a uma UPP. Não foi feito nenhum trabalho de mudança da figura do policial e tampouco uma preparação para eles conviverem com a gente. Se você ia ao outro lado da favela, os caras te paravam para perguntar o que você estava fazendo ali, como se não pudesse ter amigos em outros bairros da Rocinha. Para eles, todo mundo é bandido. Em muitas das duras que eu tomei, o policial falava “porra, mas também tu me viu, tomou um susto e quer que eu não te pare?”. Mas se sempre que eu via os caras era um problema, como não ia me assustar? Minha casa foi invadida pela polícia pelo menos três vezes.

Assim como os protagonistas de Via Ápia, você trabalhou na praia, como garçom de bufê infantil, atendente de lanchonete etc. Quanto de você tem nesses personagens?
Todos eles são 100% Geovani. Até os de que eu não gosto. A única coisa que eu tenho para entender o mundo é minha visão. A gente vai lendo, usando drogas, fazendo exercícios que podem abrir a percepção e levam a gente a olhar o mundo de outra forma, mas é sempre com o nosso repertório. Também não tenho nenhum pudor de me apropriar de histórias da minha mãe, dos meus amigos, de inimigos ou de pessoas que não conheço. Eu as transformo, troco os nomes, invento outro final.


O tema central de Via Ápia é a guerra às drogas e como isso é mais nocivo do que o consumo

Qual a função de cada um dos personagens em Via Ápia?
Com os irmãos Wesley e Washington, trato do tema central do romance, a guerra às drogas, e de como esse combate é mais nocivo do que o consumo. O Washington também reflete meus questionamentos sobre uma masculinidade que descobre ser possível se relacionar com as meninas não apenas sexualmente. O Murilo [um soldado] remete a como o Estado, o Exército e a Aeronáutica cooptam esses jovens e os colocam para trabalhar para eles, até para exterminar seus pares. O Douglas é um artista que vislumbra um futuro e luta por isso, ao mesmo tempo que só quer saber dele mesmo. Já o Biel representa aqueles que crescem com vergonha do lugar onde nasceram. Por ele ser o único branco, tem a possibilidade de criar uma nova personalidade. Me interessava cruzar essas perspectivas e mostrar como são afetadas pela UPP.

Geovani não tem pudor de se apropriar de histórias da mãe, de amigos ou mesmo inimigos

Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden concedeu perdão aos presos por porte de maconha e em alguns estados o consumo é permitido. O que pensa do combate e da legalização das drogas no Brasil?
Nos Estados Unidos, há dois tipos de legalização. Em Nova York, a maconha está descriminalizada desde 2019, e a bancada política negra lutou para que pessoas presas por tráfico ou cuja vida foi prejudicada por isso tivessem alguma prioridade nesses negócios, o que não ocorreu na Califórnia, onde muita gente que lucrava com presídio e detenção agora ganha dinheiro vendendo droga. São dois exemplos diferentes no mesmo país que nos ajudam a refletir. No Brasil, muita gente ganha grana, da polícia à indústria farmacêutica e a políticos que emprestam seus helicópteros. Além disso, a proibição das drogas é a justificativa para o genocídio negro. A legalização significa ter de encontrar outras formas de coação a esses corpos. Precisamos de uma reformulação política para uma liberação que seja social. Eu tinha esperança de que a partir do ano que vem, com a eleição de Lula, a gente avançasse nessa discussão, mas, com os deputados e senadores eleitos, fiquei desanimado.

Em 2018, Mano Brown fez um discurso criticando a esquerda pela falta de diálogo e de construção de políticas públicas para os mais pobres, que viralizou novamente nesta eleição. Alguma coisa mudou?
Uma das provas de que o Mano Brown não foi ouvido é o esforço desesperado e constrangedor para provar que o Lula é cristão, algo que devia estar superado. Via Ápia fala um pouco sobre como esses “Brasis” não se comunicam. Me incomoda que para essa esquerda branca parece que o país ficou ruim a partir de 2018, que os militares só voltaram depois disso, mas eles estavam cooptando garotos como o [personagem] Murilo desde os anos 90. A extrema direita se apropriou do discurso contra o sistema, e eu, enquanto esquerda, tenho de defender instituições que nunca funcionaram? O [historiador e escritor] Luiz Antonio Simas diz que o Brasil não precisa parar de dar errado porque ele deu certo. O que a gente vê hoje é um projeto criado há quinhentos anos. Precisamos começar a dar errado para construir um novo país.

O Brasil voltou ao mapa da fome após décadas. Como sua geração está vivendo este momento?
Quando eu era criança, nos anos 90, lembro de meus irmãos reclamando que a gente só comia frango; era o que dava para comprar. Hoje, pessoas no mesmo trabalho que minha mãe tinha naquela época vivem muito pior. Tenho muitos amigos deprimidos, que a gente chama para sair e não vão, porque não têm um centavo. Há uma galera de 22, 23 anos que deveria estar querendo curtir e tá fodida, sem nenhuma perspectiva de futuro. Precisamos de lucidez para entender que não vivíamos nenhum conto de fadas, mas não tínhamos noção de que podia piorar tanto.

O livro fala um pouco sobre esses ‘Brasis’ que não se comunicam

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.