Literatura israelense,

Trama fantástica

Leigh Bardugo fala de livro que inspirou a série ‘Sombra e ossos’, sucesso da Netflix, e dos novos romances que chegam em breve ao Brasil

01jan2022 | Edição #53

Presença constante na lista dos autores mais vendidos em todo o mundo, Leigh Bardugo é um dos grandes nomes da literatura fantástica da atualidade. Nascida em Jerusalém e criada em Los Angeles, chegou a trabalhar com efeitos especiais e maquiagem antes de se dedicar aos livros. Quem a conheceu graças à série Sombra e ossos, sucesso da Netflix, pode achar que ela é um fenômeno recente, mas a autora já conta com dez anos de carreira, período no qual arregimentou uma legião de fãs, principalmente entre o público jovem adulto. O Grishaverso, universo ficcional onde a magia é estudada em pé de igualdade com a ciência e algumas pessoas nascem com um dom mágico, serve de ambientação para a maioria das suas obras. Dos onze livros publicados até agora, nove se passam no Grishaverso. 

Ao contrário do que possa parecer para quem desconhece esse nicho do mercado, o recorte etário não impede Leigh Bardugo de falar de temas importantes e sensíveis. Tensão política entre nações, tráfico humano, alistamento obrigatório, assédio sexual, fanatismo religioso e desigualdade social são apenas alguns deles. Entre boas doses de romance, magia e aventura, a autora sabe dar o seu recado. 

Usando os trunfos da literatura fantástica, Bardugo fala também por meio da ausência: no Grishaverso personagens lgbtqia+ não são vítimas de perseguições. Lá, os preconceitos são outros. Seus Grishas, os magos em questão, podem ser vistos como máquinas de combate, parar nas mãos de comerciantes gananciosos ou ser caçados até à morte; tudo depende da nação onde venham a nascer.

Embora tenha acabado de conquistar espaço na televisão, na literatura o Grishaverso se aproxima do seu grand finale com o lançamento de King of Scars. Primeira parte de uma duologia, o romance chega ao Brasil em fevereiro pela editora Planeta e será seguido por Rule of Wolves

Com uma rotina incansável de trabalho, Leigh Bardugo conversou por e-mail com a Quatro Cinco Um. Na entrevista a seguir, ela fala da longa relação com seus personagens, comenta curiosidades do seu processo criativo e dá pistas sobre o futuro do Grishaverso. Afinal, na fantasia sempre há uma porta aberta depois do fim.

É comum termos em livros de fantasia a ideia de que a magia sempre cobra um preço dos seus praticantes. Ao construir o Grishaverso você tomou a decisão de subverter essa lógica. Quando Grishas usam seus dons, eles ficam mais bonitos e mais fortes. Quando descobrem sua verdade interior e se tornam justamente quem deveriam ser é que a mágica acontece. Como foi para você construir tramas — mesmo a de personagens sem relação com magia, como Inej e Kaz — ao redor dessa mensagem?
Bom, é um tanto quanto complexo, não é? Existe muita alegria em descobrir algo que somos capazes de fazer bem, mas nem sempre isso equivale a descobrir algo que amamos fazer. A Inej é uma assassina e espiã brilhante, mas ela não ama ser essas coisas. A sua jornada passa por um caminho diferente. Inej quer encontrar um jeito de usar suas habilidades para alcançar o objetivo maior no qual acredita: caçar escravistas e tornar o mundo um lugar mais seguro e mais justo. Kaz é um ladrão e trapaceiro talentoso, mas quem ele poderia ter se tornado se tivesse a oportunidade de simplesmente ser um garoto que adora truques de mágica? Nikolai é um corsário excelente, mas ele nasceu príncipe de uma nação que precisa desesperadamente de um líder. Então, de certa forma, acredito que o coração dessas histórias diga respeito a encontrar um jeito de ser quem você é, mesmo quando o mundo deseja algo diferente.

A primeira temporada da série de TV Sombra e ossos foi primorosa: tivemos grandes atuações, momentos memoráveis e Milo, a cabra, uma estrela em ascensão! Para a segunda temporada existe certa expectativa por parte dos fãs em torno da chegada de Nikolai Lantsov. Um jovem Nikolai sem ideia do que o futuro trará nos livros King of Scars e Rule of Wolves. Como foi lidar com dois momentos tão distintos do arco desse personagem? 
Um viva para Milo! Não tenho palavras para expressar quanto estou animada de ver Nikolai chegar à tela. Felizmente, eu já havia terminado de escrever Rule of Wolves bem antes de começarmos a planejar a segunda temporada, então pude deixar essas histórias e esses arcos de personagem separados na cabeça. Por outro lado, durante a escolha do elenco, foi importante manter o futuro do Nikolai em mente, porque precisávamos garantir que encontraríamos um ator capaz não só de ser o corsário confiante e espirituoso, mas também o príncipe que carrega um demônio dentro de si. 

Dito isso, estou tentando dar um pouco mais de espaço para a série. Ela merece a chance de se tornar algo único por si só. Sem falar que, se eu quiser ter tempo de escrever mais livros, preciso reservar espaço para tal.

Tenho para mim que nós, autores, mudamos um pouco a cada livro escrito. Ganhamos novas ferramentas, perdemos antigas convicções. Entre a publicação da duologia de Six of Crows e o retorno ao Grishaverso com King of Scars e Rule of Wolves, você publicou Nona casa (Planeta), uma história mais voltada para o público adulto. Escrever esse livro fez você voltar com um olhar diferente ao Grishaverso?
Você tem toda a razão. Cada livro muda e desafia a gente de maneiras novas. Acho que realmente buscamos isso como autores. Não queremos só escrever a mesma história de novo e de novo, então encontramos jeitos que nos levem a desbravar territórios inexplorados. Eu adorei escrever Nona casa e acho que isso me ajudou a retornar ao Grishaverso com energia e inspiração renovadas. Além disso, escrevi Rule of Wolves enquanto estávamos em quarentena, no meio da pandemia, e sou grata pela oportunidade de escapar para Ravka todo dia e poder passar tempo com personagens tão familiares.

Falando em personagens familiares, o livro Sombra e ossos foi publicado originalmente em 2012 e Rule of Wolves em 2021 — uma jornada de quase dez anos. Foi instintivo para você entender em que ponto da vida seus personagens estavam em cada livro, como tinham evoluído com o tempo? Ou algum deles a surpreendeu pelo caminho? 
Acho que fico mais surpresa pela forma como passei a gostar dos próprios personagens, sejam os heróis ou os vilões. Monto uma escaleta de todos os meus livros porque não consigo escrever sem saber para onde estou indo e como quero que a história termine. Mas deixo muito espaço para explorar no processo de criação do manuscrito, e é aí que realmente conheço os personagens. É nesses momentos que eles me contam suas histórias. Quando perguntei a Nikolai por que ele se tornou Sturmhond, por que motivo ele queria a coroa, eu não tinha uma resposta. Então eu precisava que ele me contasse. E foi assim que conheci Dominik e construí a história do relacionamento complexo de Nikolai com seu país. Esse percurso foi verdade para cada personagem e é o que mantém interessante o processo de levar o livro desde o planejamento até o manuscrito.

O mundo dos Grishas é encantador e complexo. A trilogia Grisha e a duologia Six of Crows têm seus próprios núcleos de personagens e identidades distintas entre si. Em King of Scars vemos alguns desses personagens atuando juntos em uma história maior. Como foi a experiência de misturar os dois núcleos e ainda encontrar a identidade única que você queria para os novos livros? 
Acho que a duologia King of Scars/Rule of Wolves é o mais próximo que já escrevi de uma fantasia épica tradicional. O livro fala de magias poderosas e das verdadeiras raízes do poder dentro do Grishaverso. Por isso, fez sentido para mim criar a ambientação reunindo todos os personagens. Mas admito que, quando comecei a escrever Sombra e ossos, não tinha um planejamento grandioso para esses livros. Meu único objetivo era terminar meu primeiro romance. Depois disso, terminar minha primeira trilogia. Foi só quando estava aplicada a fundo no Crooked Kingdom é que comecei a vislumbrar a forma do que estava por vir e como gostaria que tudo terminasse — pelo menos por enquanto.

Bem, chegamos ao fim da entrevista. Antes de encerrarmos, quero aproveitar o gancho e fazer a pergunta inescapável. Li faz uns meses que Rule of Wolves seria o último livro do Grishaverso e ele de fato tem a aura de conclusão de uma grande história. Mas na reta final você planta a possibilidade de uma futura aventura para os Corvos. Podemos ter esperança quanto a isso? Talvez com alguns novos personagens para completar a equipe?
Sinceramente, não sei. Quando decidi escrever Rule of Wolves eu tinha toda a intenção de escrever um terceiro livro de Six of Crows. Sei até o título dele. Porém, quando Rule of Wolves saiu e a série estreou, precisei refletir e pensar com honestidade sobre como eu me sentia a respeito disso. Esses personagens são importantes para mim e eu não queria continuar a história deles até estar verdadeiramente pronta. Neste instante, isso significa parar para trabalhar em outros projetos e explorar mundos diferentes. Mas eu tenho uma história em mente para os Corvos, e espero um dia ter a chance de contá-la.

Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Eric Novello

Escritor e tradutor, publicou Ninguém nasce herói (Seguinte).

Matéria publicada na edição impressa #53 em outubro de 2021.