Literatura infantojuvenil,

Traduzindo bell hooks

Nina Rizzi compartilha como foi sua experiência vertendo para o português três livros infantojuvenis da pensadora norte-americana

10fev2023

A Boitatá [selo da Boitempo] lançou nos últimos anos algumas obras infantojuvenis de bell hooks. Nina Rizzi traduziu três deles, Meu crespo é de rainha, Minha dança tem história e A pele que eu tenho. Ranheta ruge rosna, o mais recente, foi traduzido por Stephanie Borges. Historiadora, poeta e professora, Rizzi também traduziu o livro biográfico infantil Nina, sobre Nina Simone, resenhado por Renata Penzani na Quatro Cinco Um, e lançou ano passado seu primeiro livro infantil, A melhor mãe do mundo. O poema ilustrado narra o dia em que uma criança visita a mãe e foi votado um dos melhores infantis de 2022 pelos colaboradores da revista, também resenhado por Renata Penzani

Esse é o terceiro livro da bell hooks que você traduz para a Boitatá. Como começou esse trabalho?
A Thaisa Burani era editora na Boitatá e me convidou para traduzir o Meu crespo é de rainha. Fiquei surpresa, porque embora eu já traduzisse e estivesse fazendo mestrado de tradução, eu ainda não tinha feito uma tradução comercial. Fiquei tão feliz! Eu já era leitora de bell hooks e estava pesquisando sobre cabelo na época. Eles queriam uma poeta para traduzir, porque os três livros são poemas, com rima, com jogo lúdico. Tem algo muito especial na bell hooks: mesmo se você ler os livros literalmente, o jogo lúdico funciona tanto na sua cultura de origem quanto para a gente.

Foi diferente de vários outros livros infantis que traduzi depois, que você percebe que tem uma coisa cultural marcada de como a criança lida com a linguagem. Por exemplo, aqui no Brasil, a gente prioriza mais as rimas, o jogo lúdico, o jogo de palavras nos livros infantis. Enquanto muitos livros em inglês, dos Estados Unidos, priorizam mais a repetição. Então, achei muito legal a linguagem dela ser tão próxima da nossa. Isso não significa que os livros foram traduzidos literalmente, porque, como tem a rima, a gente precisa criar. Amo traduzir livros infantis, justamente por isso. Você pode se colocar de maneira mais criativa dentro da tradução e brincar com a linguagem. Não desviar, mas a partir do que já existe, criar com nossa língua, fazer esse jogo de aproximação e distanciamento.

E a tradução dos outros livros de bell hooks?
Com o segundo, Minha dança tem história, eu fiz a tradução praticamente de uma vez, revisei, claro, mas foi muito fluido, acho até por conta da dança. Muito curioso como a dança dentro do texto moveu o outro texto, o segundo texto, o segundo original. Talvez o do b-boy seja o meu preferido, porque ele trabalha com essas batidas de B que dissimula o beat, a batida. Essa fluidez do corpo da criança passa para o texto, é muito inteligente. Achei legal até a própria palavra, "b-boy", que mantive, só coloquei um “i” — "bi" / "bói". Gosto dessa fluidez, esse bibói nosso tem uma música talvez mais sambada, tem uma ginga mais brasileira. Achei divertido.


Ilustrações de Chris Raschka [Divulgação] 

Gostou mais de algum dos livros?
É difícil falar de um preferido porque cada um deles toca num lugar diferente. O primeiro rende uma discussão muito grande, porque falar do cabelo é falar da própria história, de como as mulheres não só se relacionam com o cabelo, mas entre elas também. Todos contam uma história: o cabelo conta história, a dança [tema do segundo livro] conta uma história, a pele [tema do terceiro] conta outra história. Achei o sobre a pele o mais diferente dos três na linguagem, embora mantenha a característica da bell hooks, das rimas. Adoro esse livro porque ele se direciona às crianças de uma maneira tão especial para falar da pele, e essa coisa de que são muitas camadas.

Às vezes, as pessoas dizem "me faltam palavras para dizer as coisas". Eu sempre penso o contrário, sobram palavras. Então, traduzir é muito legal porque você tem opções diferentes, maneiras diferentes de dizer a mesma coisa. Outra coisa bacana é que embora ela reitere a cada página que "minha pele não me define", não quer dizer que ela não tenha uma história. Ela revela um pouco da identidade, mas não tudo da personalidade.

A bell hooks trata de temas difíceis, como racismo. Como ela traz isso para as crianças? 
A bell hooks trata disso tudo com a mesma naturalidade das crianças. Ela se entende, ela se coloca como criança no texto para falar com as crianças nessa linguagem. Você vai ter uma conversa com uma criança, você não fala em pé, você se agacha ou se senta para ficar no mesmo tamanho. Parece que ela trata de igual para igual. E você se colocar no nível da criança não significa que você está deixando um saber. Pelo contrário, porque as crianças têm um saber ancestral, um saber só delas que a gente vai perdendo. Então, ela retoma esse saber junto com as crianças.

Outra coisa bem bacana é que os livros dela são positivos, partem da positividade. Quando vai falar sobre pele, ela não traz um episódio racista. Quando fala de cabelo, não traz microagressões, ela faz uma dobra na linguagem. Ela parte da verdade, digamos assim, do que é natural, para conversar na mesma altura das crianças. Então as crianças estão preparadas para essa conversa, e ela conversa sem didatismo, sem ser professoral. E isso é bárbaro.
 


Ilustrações de Chris Raschka [Divulgação] 

Como você vê as ilustrações do Chris Raschka para esses livros?
Ele vai fazendo uma espécie de colcha de retalhos em alguns momentos, é muito bonito. Eu não conheço a história de amizade entre eles, mas certamente há uma amizade, mesmo que literária, uma amizade de trabalho. Ela escreve e ele ilustra a partir do que está escrito. A gente que vai traduzir, traduz não só o texto escrito, mas as imagens. Nessa criação, às vezes você não pode ser literal, não há como, e a ilustração ajuda muito, vão surgindo outras possibilidades. 

O que ficou dessas traduções?
Esse negócio da bell hooks vai sempre me acompanhar, essa perspectiva da alegria. A alegria não é uma alienação. Eu não vejo isso assim, bell hooks acho que também não via. E Elza Soares [sobre quem Nina Rizzi está escrevendo um livro] também não. Estar alegre no mundo, ou se colocar com alegria, com erotismo, para usar o termo da bell hooks, é uma maneira de contrapor. A história da Elza Soares é uma história que pode ser contada por um viés triste, de desgraça — pois perde um filho para a fome, perde cinco filhos, um filho é atropelado, sofre violência doméstica, tem sua casa metralhada na ditadura militar, tem uma filha sequestrada que só encontra vinte anos depois. Mas ela não é isso, essas desgraças não a definem. Assim como o sequestro dos povos africanos não define a história do povo africano. A história de dominação masculina sobre as mulheres também não nos define. Não é nossa pele que nos define. São outras coisas também. Que é uma maneira meio afrofuturista de ver as coisas. Pensar um futuro onde nós estamos vivas, onde nós estamos presentes, onde nós podemos ser o que quisermos. E esse futuro é agora! É uma história de luta, mas também de celebração. Não só porque a gente existe, mas porque a gente está fazendo um monte de coisa massa e importante.

Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças?
Lendo, né? A leitura não é algo que se faz em locais específicos. Não é algo para se fazer na escola. Quer dizer, é algo também para se fazer na escola, é algo para fazer também em casa, no silêncio, à noite antes de dormir, na cama, mas é algo também para se fazer numa festa de aniversário com toda a comunidade junto. É algo para se fazer a qualquer momento, dá para se fazer no ônibus. Não tem como eu querer que minha filha leia, incentivá-la a ler, se ela nunca me vê lendo. E as crianças na escola também. Acho que dentro da escola é preciso ter políticas alegres para a leitura.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).