Literatura infantojuvenil,

A biógrafa dos bichos

Escritora octogenária parte da história de animais para estimular outras leituras da experiência humana

26maio2022

Um texugo que solta um “pum fedido” para se comunicar, uma criatura que rola estrume para fertilizar a terra, uma gralha que arrota depois de comer insetos demais, cachorros trufeiros fascinantes, um gato chamado Bacon. Essas são algumas das criaturas que a escritora Ina Ouang traz para suas narrativas.

A artista plástica e escritora nasceu na China, em 1941, e veio para o Brasil ainda criança. Sua carreira literária começou bem mais tarde, septuagenária, em 2018. Aos oitenta anos e com uma visão amadurecida da experiência humana, ela materializa isso em seus livros, entre os quais os lançamentos recentes Falando de bichosA viagem do Xiao-Xiao, publicados pela Folha da Relva, que também contam com bichos, viagens e história. Em entrevista à Quatro Cinco Um, Ina Ouang falou sobre criaturas, criações e culturas. 


A autora Ina Ouang (Acervo pessoal)
 

Como você começou a escrever e ilustrar?
Eu sou o próprio exemplo de antes tarde do que nunca. Toda a minha vida eu li muito e sempre fiquei fascinada pelo que os outros escreviam. Eu sou artista plástica e nunca pensei em me aventurar a escrever, mas descobri que tenho uma espécie de problema físico, uma degenerescência neurológica lenta. Eu estava começando a perder um pouco da minha coordenação física, e a pintura é muito física. Emocionalmente, você tenta se expressar, e essa expressão, se ela não é combinada com bastante esforço físico, não fica aquilo que a gente pretende. Uma das coisas que acontecem é que a idade não é necessariamente triste, mas eu confesso que ela é cansativa. Começa a ter uma incompatibilidade entre a sua vontade e a falta de colaboração do seu corpo. À medida que o tempo foi passando e eu fui ficando com menos coragem e muito mais rugas, comecei a observar, inclusive pelo meu próprio problema, a prepotência dos seres humanos. 

Veja bem, se falta inteligência, ele é burro; se falta habilidade, é uma tartaruga; se falta caráter, é uma raposa; as mulheres são as galinhas. Aquilo foi me dando uma certa aflição. Isso é muito prepotente, transpor os nossos defeitos em cima dos pobres animais. Se você pergunta para o animal: “Quem é você?”, vai me responder: “Eu sou uma criatura da natureza”; “Por que você está aqui?”, “Para conviver com a natureza em que eu nasci”. Eu comecei a colocar esse diálogo da minha leitura da vida através dos animais. Em vez de impor, eu achava que nós devíamos interagir com essa realidade.

Como surgiu a ideia para o seu primeiro livro infantojuvenil?
O primeiro que comecei a escrever foi em 2018, O rola-bosta. Isso foi uma viagem que eu fiz para a África do Sul e eu vi, no meio daqueles animais maravilhosos num safári fotográfico, esse inseto incrível que estava rolando, pegando um estrume, um esterco, e rolando numa bola. Eu perguntei para o guia, e ele explicou que é um bicho tremendamente importante, porque na cadeia ecológica ele desempenha a função de fertilizar a terra com essa bola de esterco na qual ele rola. Ele enrola essa bola, enterra, e a fêmea coloca o ovo dentro e o desenvolve ali. Está aí um bichinho que nasceu no cocô, come cocô, cresceu no cocô e sai desempenhando essa única função que é a continuidade na vida através do cocô. Não sei por que a gente pode falar cocô, mas não pode falar bosta.

Então é recente também?
Essa produção toda é recente, ela trata de 2018 para 2020. Aí que eu comecei a descobrir que eu não somente gostava de ouvir histórias, como de contar histórias. E, através dos meus bichos, eu achei uma maneira incrível de informar. Além dos personagens, eu sempre conto a vida. Eu sou uma biógrafa de bichos, eu conto a história deles, e através da interação deles com o ser humano você descobre uma visão nova do ser humano, visto através do bicho.

Como é o seu processo de escrita? 
Escrever é um processo difícil. Esse negócio de achar que um autor senta e produz não é verdade. A única coisa espontânea é a ideia. Ela surge muitas vezes por vários fatores. Então, por exemplo, Falando de bichos surgiu quando eu passei férias na França, onde nós temos uma casinha muito simples de campo, e, para não perder contato com os meus netos, eu comecei a escrever contos sobre os bichos que eu via na mata de lá — esquilos, porcos selvagens, pássaros. Depois aquilo evoluiu, tive uma menção honrosa num desses concursos de conto e eu falei: "Ah, quem sabe eu posso juntar tudo e fazer uma coletânea?", e a partir dessa coletânea surgiu Falando de bichos.


 

Você também ilustra seus livros?
Sim. Sou aquarelista, a minha formação é em desenho, aquarela e pintura. Agora, o mais difícil foi transpor do papel para a máquina. Hoje, por conta da dificuldade que tenho de coordenação, entrei em uma escola de computação e descobri os aplicativos de ilustração, assim posso juntar as minhas habilidades em artes plásticas com a ilustração. Trabalho com um parceiro, o Oswaldo Piva. Ele é meu instrutor e me ajuda muito, faz a diagramação, toda a parte gráfica. Eu escrevo o texto, faço a pesquisa, pesquiso também o tipo de imagens que nós vamos trabalhar. Aí nós transpomos para os aplicativos. A aprendizagem foi tardia e intensa. É muita vontade de chegar até lá.


Ilustrações de Ina Ouang
 

Quais foram outras inspirações?
Os meus netos foram inspiradores. Aquele senso de realidade. Eu tenho um neto, que hoje tem vinte anos e é autista. Ele é o ser mais especial. Quando você tem uma criança normal, você ensina; quando a criança tem algum problema, ela é que ensina você. Eu lia muito para ele e uma vez eu perguntei, “Max, o que é um livro?”, e ele disse, “É para ouvir”. Essa avaliação tem muito valor, porque as pessoas leem, mas na verdade estão escutando uma história contada por outras pessoas. 

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Beatriz Muylaert

Jornalista e editora da Quatro Cinco Um.