Literatura brasileira,

A festa que refunda o mundo todos os dias

A Festa Literária das Periferias retorna este ano discutindo a presença negra nos cem anos da Semana de Arte Moderna

08fev2022 | Edição #54

A Festa Literária das Periferias (Flup) deixou de ser uma alternativa para quem não podia ir à Festa Literária de Paraty (Flip) para se tornar um dos maiores festivais literários da América Latina nos últimos anos. Comemorando onze anos de existência, a Flup mostrou, ao longo da sua história, que cada ladeira de favela, cada viela, cada canto muitas vezes esquecido pelo governo são a própria literatura. Trouxe para os holofotes autores negros que fazem parte da própria história do evento, como Carolina Maria de Jesus, Ruth Guimarães, Cidinha da Silva, Conceição Evaristo e Geovani Martins. 

Não apenas a caneta, mas as páginas do encontro de Ecio Salles e Julio Ludemir, criadores do festival, também são pretas, nas tendas e nos botecos dos lugares onde se passam as rodas de rima são livros, o passinho do funk um poema, as batidas do baque das escolas de samba soam como a métrica de Letieres Leite, os saraus verdadeiras universidades.

A edição deste ano começa dia 11 e vai até dia 18 de fevereiro no Muhcab (Museu da História e Cultura Afrobrasileira) e no MAR (Museu de Arte do Rio), localizados na Pequena África da região portuária carioca, com direção de Dani Bernardino (apresentadora e porta-voz) e Julio Ludemir. É um dos primeiros eventos literários a acontecer presencialmente no país desde que a pandemia de Covid-19 assolou o Brasil e o mundo. 

Na programação deste ano, a Flup traz novos olhares sobre o centenário da Semana de Arte Moderna, celebrando os modernismos negros, homenageando Lima Barreto, Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga e Josephine Baker, com mesas, debates, dança, shows e performances. 

À Quatro Cinco Um, Julio Ludemir falou sobre os destaques da programação e como a resistência cultural das periferias não será destruída por falta de investimento governamental e o protagonismo negro no mercado editorial.

O que diferencia a Flup dos outros festivais literários do Brasil?
Tudo difere, desde os conteúdos até a forma. A expressão musical, o stand-up, tudo isso demonstra que a periferia vai muito além do território. Um corpo trans, um corpo negro, um corpo jovem, é um corpo periférico. Ao encampar a narrativa territorial precisamos encampar esses corpos, com sua fé.

No primeiro ano da Flup, eu e Ecio [Salles] fomos reconhecidos por uma atendente de um café que morava no Morro dos Prazeres, e ela disse: "O morro inteiro desceu pra ver a Flup, por causa da batalha do passinho, tinha um espetáculo que envolvia os moradores". A concepção clássica de festival literário não dá conta disso, tudo isso produz sentido nesses lugares. O que o Rennan da Penha e a Teresa Cristina têm a ver com literatura? Tem tudo, é um festival de literaturas, ideias e comportamento.

Como está sendo organizar um evento que reúne milhares de pessoas depois de duas edições on-line por conta da pandemia de Covid-19?
Esse governo travou todas as leis de incentivo, estamos num momento em que a cultura é criminalizada. Há um cansaço com a pandemia e existe a necessidade de produzir um pensamento crítico. A cultura foi o último setor a poder retomar por conta das questões sanitárias. 

Nesta edição a Flup celebra o modernismo negro, em meio às comemorações dos cem anos da Semana de 22. Por que fazer esse recorte trazendo, além de Mário de Andrade, Lima Barreto, Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, entre outros?
O grande debate do modernismo é a identidade nacional, Macunaíma, Villa-Lobos e “O Trenzinho do Caipira”, “Abaporu” e o olhar de uma elite paulista que não resistiria ao debate hoje em dia. Nada mais Pixinguinha, nada mais Lima Barreto, nada mais Chiquinha Gonzaga que a tradição dessas pessoas, que não podem ficar num campo do exótico. A bateria, o banjo e o sax são trazidos da experiência diaspórica dos Batutas na França, todos os signos da vanguarda francesa são expropriados de tesouros africanos. Todos os referenciais negros e africanos, o Donga não americanizou nossa música, mas se espelhou no jazz.

O Lima Barreto não era pré-moderno, Triste fim de Policarpo Quaresma discute nossa identidade, ele morreu há cem anos, e foi renegado pelo modernismo.

O que você destaca na programação?
O congolês Alain Mabanckou [autor convidado que participa da mesa Fluxos transatlânticos com Kim Butler e Luciana Diogo, na noite do dia 11 de fevereiro], um encontro de cem ogans homenageando Ogan Bangbala, que tem 102 anos [que vai ocorrer na noite do dia 16 de fevereiro]. São ao todo quinhentas pessoas envolvidas numa programação de oito dias, entre o MUHCAB e o MAR. Duas exposições, shows como Leci Brandão, Amaro Freitas, Samba do Trabalhador, Teresa Cristina, entre outros artistas.

A Flup forma gerações de criadores na literatura, no audiovisual, na cultura como um todo, funcionando como um mecanismo de reparação histórica também para pessoas negras e periféricas. Como vocês se sonham para além de 2022?
Sou otimista. Nós sabemos como opera a cultura, a economia, a educação. Acima de tudo, os investimentos de governos populares resultaram numa geração que tem muito mais a cara do Brasil, negra, indígena e também jovem. Isso é indestrutível. O governo que está aí prejudicou a formação de novos Raull Santiagos [ativista social e midiativista no Coletivo Papo Reto, formado por jovens moradores dos Complexos do Alemão e Penha] e novas, Yasmin Thaynás [cineasta e roteirista]. Mas essa resistência não será destruída. Um exemplo é a ideia do Gabinete do Amor [iniciativa do PerifaConnection para qualificar o debate progressista nas eleições deste ano]. Quem fez as campanhas dos Black Lives Matter nos Estados Unidos foi uma juventude periférica indestrutível. Este ano o protagonismo é desse grupo.

Você sente uma mudança no mercado editorial em torno da recepção de “autores não hegemônicos”, para incluir autores não brancos, não europeus e vindo das periferias? Como a Flup vê esse movimento do mercado editorial?
O mercado editorial é uma coisa complexa, é Djamila Ribeiro, Sérgio Vaz, influencers… de que mercado estamos falando? Um dos momentos mais relevantes dos últimos tempos foi o livro do Lázaro [Ramos], Na minha pele [que saiu pela Companhia das Letras, em 2017]. Foi um Exu que permitiu que viesse o Geovani [Martins], Majur, que uma narrativa tida como periférica ganhasse  centralidade. Há também uma novidade pautada em resgates, por exemplo da Conceição Evaristo, uma formação de novos leitores e autores. Um conjunto dialético que atua na mudança da indústria editorial. A Companhia das Letras publicava uma turma branca porque era o que dava dinheiro, para uma esquerda branca essa trilha foi seguida enquanto isso deu dinheiro. A Globo não está interessada em diversidade porque é boazinha, mas porque essas vozes são ouvidas. 

A gente produz curadoria para o público, que é fruto daquele investimento indestrutível. Se não lidarmos com essas vozes críticas, a Flup acaba, a Globo acaba, o mercado das artes plásticas acaba. Antes negros só eram enxergados na música, agora estão em todas as manifestações. Há um mundo em transe.  

Quem escreveu esse texto

Jefferson Barbosa

É editor do PerifaConnection, integrante do Voz da Baixada e atualmente escreve um ensaio biográfico sobre Mãe Beata de Yemanjá.

Matéria publicada na edição impressa #54 em outubro de 2021.