História, Páginas da Independência,

Independências: a história é essa

Minissérie de Luiz Fernando Carvalho mostra na TV aberta novas narrativas sobre o país e nosso presente repleto de passado

07set2022

Antes da estreia para convidados da minissérie Independências, de Luiz Fernando Carvalho, o diretor carioca passou o dia em entrevistas para a imprensa no bar envidraçado do cinema. Durante uma delas, para esta revista dos livros, as primeiras cenas surgiram na tela, para testes de som e imagem, e o garçom atrás do balcão imediatamente começou a tirar fotos com o celular. “Está vendo o garçom atrás do balcão?”, Carvalho perguntou a esta repórter. “Talvez ele esteja vendo pela primeira vez seus ancestrais falarem”, concluiu. 

É disso que se trata. A minissérie, um projeto da TV Cultura desenvolvido por Carvalho em parceria com o dramaturgo Luís Alberto Abreu e uma equipe com colaboradores com nomes como Kaká Werá Djecupé, Ynaê Lopes dos Santos, Cidinha da Silva e Tiganá Santana, quer revistar a história do país a partir de e junto com saberes, culturas e personagens postos à margem da história oficial. Uma tentativa de levar para a TV aberta uma teledramaturgia anticolonialista, montada de forma fragmentária, com uma diversidade enorme de referências, protagonistas, línguas — a narradora do primeiro capítulo fala em uma língua africana, quimbundo (legendada). “Essa é a missão da TV aberta, não só a pública: ajudar na formação do cidadão. Dar cidadania é um ato perigoso, assusta, mas a gente tem que continuar insistindo”, diz Carvalho. 

Que história de independência é essa que a minissérie está contando?
Que história é essa que nos contaram, que está escritas nos livros? Sempre nos foi contada uma história cheia de leva e traz, toma lá, dá cá, cheia de circunstâncias que privilegiaram a classe dominante, a cultura branca eurocêntrica e que abriu mão de forma muito violenta de todas as outras culturas e saberes que não se adequassem a esse modelo. A história do Brasil é riquíssima, as potências estão todas aí. Nós não estamos mortos, não estamos falidos, sem perspectivas. Há potencialidades, há vida, mas falta consciência, educação para aprender a enxergar a potência, a poética, o sensível que é mais delicado. 

Há um esforço enorme do mercado mais “hard” que insiste em perpetuar mitos inventados. Um desses mitos é a ideia da independência, de uma nação, a ideia de que todo o processo civilizatório do país se deu de uma forma romanceada. “Ah, tão lindo o amor do fazendeiro escravocrata com a escravizada”. Não, não, não. Foi tudo muito cruel e sangrento. Então, apesar de o nome ser Independências, o arco histórico da minissérie não é focalizado no Sete de Setembro, até porque eu duvido dessa data. Propus à TV Cultura, e eles aceitaram na mesma hora, que se fizesse uma aproximação dessa aurora do século 19, que começaria com a fuga da família real para o Brasil e findaria com a morte de d. Pedro 1, já de volta a Portugal. É este período que a minissérie atravessa, e a Independência é um ponto dessa trajetória. Há ali uma série de acontecimentos fundantes, no meu modo de ver, que determinam muito do nosso comportamento social, cultural, moral, ético (ou não) de hoje.

Não estou fazendo um filme de época, é uma série sobre o presente. É uma notícia trágica que tenho que te dar: nosso presente está repleto de passado, essa é a moral da história. O Sete de Setembro é uma falácia.

Quais são essas determinantes?
Por exemplo, a desigualdade, a ideia de que o mundo está pronto, posto e acabado, que é imexível. É a ideia iluminista: por aqui que se caminha, quem andar fora disso pode ser esquecido, exterminado, sacrificado, apagado. Toda essa “tecnologia” iluminista vem sendo reatualizada até os tempos de hoje, e foi muito fundamental para estruturar esse universo imperialista, colonialista, que não diz respeito só ao Brasil, evidentemente. Talvez essa seja a entrelinha da série: podermos nos tornar independentes dessa moldura mental do iluminismo que produziu o capitalismo, o neoliberalismo, o autoritarismo. Tudo vem daí, é tudo filhote dessa moldura mental chamada iluminismo. 

Então Independências fala também do Brasil de hoje?
Há um triste espelhamento entre o Brasil do século 19 e o do século 21. Isso faz com que você olhe aquelas imagens da minissérie e diga: “Mas as imagens são do Brasil de hoje, a maquiagem, o figurino, é de hoje, moderno”. Não estou fazendo um filme de época, é uma série sobre o presente. É uma notícia trágica que tenho que te dar: nosso presente está repleto de passado, essa é a moral da história. O Sete de Setembro é uma falácia. O que aconteceu no meio desse percurso? Levantes, heroínas como Maria Felipa, figuras muito mais bem preparadas, acontecimentos muito mais importantes do que esse gesto único na beira do riacho, representado naquela fake news a óleo.

Onde os criadores da minissérie foram buscar outras narrativas?
Estamos diante de um caleidoscópio e de uma linguagem visual híbrida. Talvez seja uma linguagem que encontre o rumo na dificuldade de compreensão para um público que está muito adestrado em uma linguagem naturalista, novelesca. Sinto muito. 

O que é essa linguagem híbrida?
É no sentido de um vocabulário sintético das imagens, da montagem, da iluminação. A ideia da pureza não me interessa, é uma linguagem impura, mistura muitas referências, desde Goya, passando por Andy Warhol, chegando a videoarte, ópera, circo, teatro, televisão. Não é para ser bonito, bonito é comercial de geladeira, isso aqui é outra coisa. E esse é um projeto colaborativo, não fiz nada sozinho. 

O corpo de escritores passa pela dramaturgia do [Luís Alberto] Abreu, mas também por um conjunto de colaboradores de vários segmentos do pensamento brasileiro. O elenco é formado como se fosse uma cosmologia de várias origens, pessoas mais experientes, menos experientes, de teatro, circo, dança, música, gente da África, de Portugal, da Bahia, do Maranhão, do Rio, de São Paulo, indígenas. Há pessoas de vários lugares e de várias línguas.

Isso gerou uma nova narrativa?
Não tenho essa pretensão. Na verdade, é uma grande crítica sobre a minha condição, a branquitude, os meus privilégios. Estou falando da herança que recebi e fazendo uma crítica a ela. Estou me aproximando de potências sem o objetivo de chegar a lugar nenhum. Eu sai de um lugar que me colocaram, colocaram o país, que me parece estar muito além desse quadradinho. E só agora, infelizmente com muito atraso, estamos começando a perceber essa quantidade de equívocos históricos. O que me interessa é refazer o caminho e perceber, opa, essa pessoa foi apagada, traz ela, opa, essa pessoa foi executada, renasce ela. Apontar as potências que estão aí, não são passado, são como arquétipos ao alcance da mão. Poderia ficar quieto, fazer uma reconstituição de época romantizada, linda e tal, mas fiquei me perguntando: Dom Pedro é meu herói? Não é. Então, se não foi ele, quem era? 

Quem era e quem são?
Muitos: Maria Felipa, Frei Caneca, tem muitos e não param de brotar, pessoas submersas que agora estão aparecendo. A historiografia não vai dar conta imediatamente dessa quantidade de pessoas que estão aparecendo.

As representações artísticas estão dando conta?
Há uma crise na representação do país. Tem uma hegemonia do mercado barra pesada, que tem de ser combatida pelos artistas genuínos. Eles são os caras que precisam produzir essa contracorrente. É chumbo grosso o que vem para cima da gente. Você tem corporações de entretenimento ocupando telas, e você tem que pensar o país e produzir uma forma nova, capaz de desconstruir certas verdades tidas como absolutas por esse mercado hegemônico. Então a função do artista não é repetir, é realmente contestar, mas se preparar para isso como alguém se prepara para uma guerrilha, porque não vai ser aberta uma porta para você, só uma fresta, e você tem que alargar essa fresta e entrar nela com seu pensamento. Eu vejo com otimismo novos artistas surgindo, em muitos campos, mas não é fácil, tem muito sangue e suor aí. 

Quais livros foram usados para a construção de Independências?
Nossa, vou mandar uma lista, essa pergunta tem que ser respondida corretamente. As leituras transformaram não só a mim, mas o elenco todo. No galpão onde trabalhávamos tinha uma mesa com vários livros, as pessoas — atores, roteiristas, equipe técnica, produção, todos — pegavam o que queriam ler. 

Os livros de Independências
Performances do tempo espiralar, de Leda Maria Martins (Cobogó)
A inconstância da alma selvagem, de Eduardo Viveiros de Castro (Ubu)
Racismo brasileiro: uma história da formação do país, de Ynaê Lopes dos Santos (Todavia)
Enciclopédia negra, de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz (Companhia das Letras)
1822 , de Laurentino Gomes (Globo Livros)
Uma história feita por mãos negras, de Beatriz Nascimento (Zahar)
Correspondência entre Maria Graham e a Imperatriz Leopoldina, de Maria Graham (Garnier)
Por uma pedagogia decolonial na América Latina, de João Colares da Mota Neto (CRV)
O fim do império cognitivo, de Boaventura de Souza Santos (Autêntica)
A terra dos mil povos, de Kaká Werá (Peirópolis)
Cartas de uma Imperatriz, de D. Leopoldina (Estação Liberdade)
Pequeno manual antirracista, de Djamila Ribeiro (Companhia das Letras)
Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak (Companhia das Letras)

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, foi repórter da Folha de S.Paulo e escreve sobre dança para o jornal