Estado repensado,

Pedro Abramovay

Coautor de ‘A democracia equilibrista’, advogado fala sobre os desafios dessa forma de governo

01jan2023 | Edição #65

O Brasil está em um esgarçamento político grande e tudo indica que esse quadro não vai sumir tão cedo. Nesse cenário, o conflito que vocês tratam no livro [A democracia equilibrista] entre o técnico e o político é exacerbado ou há a possibilidade de que ele seja mais mediado e diminua um pouco?
Uma parte importante que a gente discute é que esse é um falso conflito, muito mais discursivo do que real, porque, na verdade, o que você tem é um conflito entre visões políticas. Quase sempre, quando se fala de uma visão técnica, está se escondendo qual é a visão política por trás. Claro, é impossível fazer política sem bons quadros técnicos, sem uso de dados, evidências, mas isso sozinho não gera uma política pública, ela é gerada por decisões políticas, sempre. Isso é importante porque se a sociedade está dividida, se tem visões que são incompatíveis, as coisas não se resolvem com os técnicos sentados e propondo soluções técnicas, são resolvidas com política.

A grande dificuldade que temos hoje é falar para toda a sociedade, não só para um setor dela. Eu não sei se isso é possível no imediato. Nos Estados Unidos, na Europa, na Índia, no mundo inteiro não temos visto alguém que tenha conseguido fazer um discurso que consiga reunificar. Mas o que vai reunificar é a política é você conseguir entender [as demandas da sociedade] e conseguir propor soluções para as pessoas.

A eleição não pode ser um impeditivo para que se pense o Estado em torno de grandes missões

As democracias precisam entregar, não é? A democracia tem um valor intrínseco e, se estiver entregando tanto quanto o autoritarismo, a democracia é melhor, sem dúvidas. Agora, se só o autoritarismo estiver entregando melhorias de vida para as pessoas e a democracia não, ela não tem chance de sobreviver. Há hoje uma série de debates sobre como o Estado é capaz de fazer isso, como pode pensar no longo prazo. Não é possível que apenas a China tenha capacidade de pensar no longo prazo. As democracias têm que conseguir isso, a eleição não pode ser um impeditivo para que se tenha estratégias de longo prazo, para que se faça investimentos pensando nos próximos vinte anos e que se organize o Estado em torno de grandes missões, e não em torno da pequena política. O desafio é: como você, dentro da democracia, consegue olhar o papel do Estado e o desenvolvimento da sociedade para melhorar a vida das pessoas.

No pós-guerra a ideia era quase o contrário: dizia-se que o autoritarismo era mais imediatista e a democracia é que era capaz de pensar a longo prazo e, por isso, ela entregaria mais. Tem uma coisa que se inverteu aí, não?
A gente fala um pouco disso n’A democracia equilibrista. A democracia não foi formulada por burocratas, dentro do gabinete. Ela é produto do conflito entre a classe trabalhadora, os empresários, os agricultores, e se forma como produto do sufrágio universal. Na hora em que você coloca os trabalhadores para votar, o acordo se dá no Parlamento, na vida pública. A democracia, a coisa mais bem sucedida do ponto de vista político que a humanidade já produziu, perde tração justamente quando os trabalhadores perdem poder de barganha, após a mudança estruturante da economia no final dos anos 70, começo dos 80. Quando se acreditar ser possível gerir a economia por meio de um pensamento único, só com a visão técnica, a democracia fica mais imediatista, porque precisa entregar para a população pequenas coisas. Acho que é preciso recuperar a capacidade da democracia, do Parlamento, de criar grandes acordos. A dispersão dos interesses, com a economia mais fragmentada, com o mundo do trabalho mais fragmentado, torna esses acordos muito mais difíceis.

A tecnocracia seria uma manifestação político-administrativa de um ideário neoliberal?
No livro citamos um texto do [escritor George] Orwell criticando justamente a tecnocracia socialista. Havia um debate nos anos 50 de que o socialismo estava dando ao mundo uma revolução gerencial. Então, a tecnocracia pode esconder diversas ideologias. Quando você diz que está gerindo apenas técnicos, você está escondendo a visão política por trás — pode ser uma visão neoliberal, pode ser uma visão modernizante, pode ser a modernização conservadora tecnocrática e autoritária dos militares. Um exemplo: o único lugar onde debater política industrial é considerado heterodoxo é na América Latina, o resto do mundo discute política industrial como absolutamente mainstream. Só isso já revela que esse não é um debate técnico.

Por vários motivos, como a mudança climática ou a inserção da diversidade, o Estado no século 21 é diferente do que se esperava dele no século passado. A concepção que temos da instituição do Estado se reflete na maneira como ele atua e na formação da burocracia?
O consenso neoliberal sobre o papel do Estado acabou. A pandemia acelerou isso. Não há país hoje que esteja crescendo, gerando prosperidade, que não pense no papel do Estado como indutor do desenvolvimento econômico. Ninguém sério acha que o setor privado vai resolver sozinho o desafio climático, a questão da imigração nos países ricos, a desigualdade. Essas são as questões-chave e o Estado será necessário.

O problema é que você teve toda uma construção da literatura sobre burocracia dos anos 90 para cá a partir de uma lógica que foi forjada pra servir ao Estado neoliberal, e você tem esse consenso de que o Estado precisa ir muito além. Então, como é que a gente treina o nosso servidor público? Por exemplo, a luta anticorrupção, que foi muito importante, colocou no servidor muito o papel de controlar, e isso muitas vezes ganhou um papel mais importante do que o resultado final. Faz parte da lógica neoliberal essa coisa “o mais importante é o zelo por cada centavo, porque a eficiência etc.”. Olha, a eficiência não é ver se você não está desviando recurso público, é ver se você está entregando na ponta. Se uma empresa gasta mais pra evitar que desviem dinheiro do que para conseguir que seus acionistas tenham lucro ou que o produto seja bem feito, temos um problema aí, não é?

Quando você diz que está gerindo apenas técnicos, você está escondendo a visão política por trás

Acho que precisa haver uma lógica de mudança na mentalidade do Estado, que é saber quais são as grandes missões. Como é que a gente treina o serviço público brasileiro para a missão de ter uma população educada, ter tantos por cento da população com um bom desempenho no Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes]? Como a gente organiza o Estado brasileiro para isso? Qual é o papel do agente de saúde para que a gente melhore o Pisa? Qual é o papel do servidor do Ministério da Ciência e Tecnologia? O Estado tem que estar organizado em grandes missões para combater as desigualdades, zerar o desmatamento na Amazônia. Como podemos ter o Estado indo atrás do garimpeiro ilegal, não o servidor do Ibama, mas o Estado brasileiro inteiro, o bndes, todos os burocratas pensando e se organizando em torno dessas missões? É um treinamento muito diferente do que a gente passou os últimos trinta anos fazendo com nossos servidores públicos.

Sobre índices e medições, como o Pisa que você citou, não poderíamos dizer o mesmo que falamos das decisões técnicas: que refletem uma visão de mundo? Isso seria um problema?
Não. Só é problema se essa visão não é transparente, se é encarada como a única. Acho que também essas escolhas [de medidores] são técnicas. Um dos grandes exemplos é o tema da guerra às drogas. Todos os indicadores para mensurar a guerra às drogas não têm nada a ver com os verdadeiros objetivos de uma política para as drogas. A gente nunca usa como indicador se a saúde das pessoas está melhorando, se tem menos pessoas com relação abusiva com as drogas, menos violência. Os indicadores são sempre prisão, apreensão, número de internados, homicídios, número de mortos — neste caso, às vezes como algo positivo. Se você tem mais apreensão, mais prisão, mais pessoas assassinadas, como é o caso, está gastando mais dinheiro e a droga está causando mais problema na sociedade, portanto a política está errada. Então precisamos debater e ajustar os indicadores, mas sempre precisamos ter um indicador para medir a política, sem dúvidas.

O isolamento da população em relação a tomada de decisões seria uma explicação para a ascensão do autoritarismo?
Isso assombra as democracias hoje. O continente europeu, que aproximou o povo do processo decisório e produziu a forma de governo mais próspera que a humanidade já viu, por algum motivo achou que ia resolver seus problemas afastando o povo do processo decisório. E aí, claro, está sendo assombrado por nacionalismos, populismos autoritários, que, na sua crítica sobre a distância dos burocratas de Bruxelas do povo, estão corretos. Mas, por exemplo, não dá para construir uma solução democrática e técnica para os imigrantes na Europa sem incluir os imigrantes no debate. E não é um burocrata em Bruxelas que vai decidir por cotas etc. É preciso fazer uma negociação política. Uma tecnocracia que é autoritária, porque afasta o povo da decisão, abre o flanco para esses movimentos que a gente está vendo, que querem fazer uma política de exclusão, quando mais inclusão é a solução que poderia dar certo.

O servidor público brasileiro é, em geral, quem teve condições de fazer um cursinho e passar no concurso. Houve alguns esforços significativos de diversificação dos quadros, inclusive por meio de cotas. Os impactos disso foram mensurados? E poderiam ser acelerados agora, com o novo governo?
Os casos de cotas no serviço público são recentes e pequenos para conseguirmos medir o impacto. A diversidade vai permitir que você construa novos discursos e consiga pensar de maneira diferente. O setor privado já entendeu que isso é importante para resultados melhores. E em um Estado que está preocupado com a legitimidade das suas decisões, isso é ainda mais forte. Acho que incorporar a diversidade vai ser um dos grandes desafios do novo governo. E agora teremos mais pressão dos movimentos sociais para ser diferente. Eu gostei muito do livro do Celso Rocha de Barros [pt, uma história], mas acho curioso que, quando ele fala do futuro do pt, o que ele aponta é a necessidade de um acordo por cima, quando eu acho que, no fundo, o futuro do pt depende da vitalidade desses novos movimentos e de ter a abertura que teve na década de 80 para a diversidade que existia então e que existe atualmente.

As decisões devem ser feitas a partir de negociações que envolvam não só os Estados, mas as pessoas interessadas

Houve muito otimismo com a possibilidade de usar ferramentas digitais para melhorar a interação entre a sociedade civil e o Estado. Qual é a sua visão das possibilidades da digitalização?
A gente tem que aprender com os erros e com os acertos. O marco civil mostrou que a maneira como se constrói o debate importa muito. Toda vez que você faz uma votação de sim e não, gera mais polarização, não produz consensos. É preciso garantir que todos os argumentos que existem na sociedade sejam ouvidos e respondidos, isso traz a pessoa para dentro, obriga os envolvidos a negociar. Acho que é preciso pensar a participação voltada para formação de consensos, para a formação de um debate argumentativo, não polarizante, de votação “sim ou não”. Não dá para dizer “a internet é a panaceia” ou “a internet é o pesadelo e não tem jeito”. Eu acho que é uma ferramenta e você tem que ser intencional no desenho do que você quer com a participação de todos nos processos decisórios.

As esferas de discussão estão passando cada vez mais para uma escala global, modificando de alguma maneira a questão da soberania. Isso pode criar problemas para a democracia?
A gente precisa resolver essa ponte entre os processos democráticos e as soluções, que terão de ser globais. Por exemplo, a questão climática é um dos grandes debates. Tem que haver a participação da sociedade civil nesse espaço, é preciso criar legitimidade, mas não há solução para o desafio climático sem repensar a governança global. As decisões políticas têm de ser feitas a partir de negociações que envolvam não só os Estados, mas as pessoas interessadas. As consequências dos desastres climáticos são completamente desiguais no mundo, é preciso negociar os interesses de quem é afetado e vai colocar seus interesses ali pra serem negociados. Não é com a tecnocracia que a gente vai vencer isso. Mas não temos uma solução pronta.

O especial Estado repensado tem apoio de República.org

Quem escreveu esse texto

Diego Viana

É jornalista e doutorando em filosofia.

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.