Estado repensado,

Miguel Lago

Cientista político discute digitalização, participação e outros desafios atuais na construção do Estado

01jan2023 | Edição #65

Seu livro se chama A construção de um estado para o século 21. O que muda em relação ao século 20?
No Brasil há uma dupla dificuldade por causa da lição de casa incompleta do século 20. De um lado há problemas que já deveriam ter sido resolvidos há muito tempo, mas tivemos uma construção errática e imperfeita do Estado como administração pública no século 20 e temos que recuperar o atraso. Por outro, há toda uma adaptação às necessidades de uma sociedade do século 21. Se analisarmos a história, tivemos essencialmente três governos que olharam com mais cuidado para a administração pública, de maneira sistemática: Getúlio Vargas, Fernando Henrique Cardoso e Lula.

Fala-se muito do papel da Constituinte de 88. Esse foi um momento decisivo em termos de construção do Estado moderno brasileiro?
Foi decisivo do ponto de vista do tipo de projeto de nação que queremos ser: uma nação baseada nos direitos humanos, no status de bem-estar social, com ampla gama de direitos. Pouco se organizou o Estado para que ele pudesse prestar todos esses serviços e atender a todos os direitos previstos na Constituição. É como se tivéssemos um plano de voo na Constituição, mas não estruturamos bem a máquina para poder chegar lá. Isso é uma limitação muito grande e uma contradição que o Brasil tem: um Estado ao mesmo tempo inchado em algumas áreas e quase inexistente em outras.

E em que consiste essa construção? O que o Brasil precisa juntar com a sua própria Constituição?
Há alguns elementos fundamentais, e um deles é a transformação digital. Existe um grande empenho, por parte de uma série de governos, de digitalizar a burocracia. O Brasil ainda está atrasado, e mesmo na Europa a agenda da transformação digital está focada simplesmente em uma atualização, uma desburocratização — o digital apenas como mecanismo de facilitação de processos. Mas as mudanças que sociedades e economias digitalizadas trazem são muito maiores do que aquilo que os Estados estão enfrentando.

O que muda com a digitalização?
O advento das novas tecnologias de informação muda totalmente a maneira como as sociedades se sociabilizam, produzem e consomem informação, interagem umas com as outras. Isso também tem repercussões imediatas na confiança nas construções políticas, sejam institucionais ou não. A extrema direita foi talvez a única das correntes políticas que realmente buscou se atualizar e se adaptar a essa nova arquitetura de comunicação e usá-la no campo democrático. Pode até perder eleições aqui e ali, mas é quem está crescendo.

A relação que tínhamos com os partidos políticos — um alinhamento geral, mesmo que não se concordasse com todas as pautas — acabou, se fragmentou completamente. Agora esse alinhamento acontece de maneira pulverizada, semelhante a lógica de uma rede social — essa grande fragmentação de informação, combinações, com um influenciador que catalisa e cria algum tipo de espaço consensual de diálogo, ou de aparente diálogo, e identificação.

Bolsonaro e Trump não são lideranças políticas, são extraordinários influenciadores

Vemos o surgimento de lideranças extremamente populares e carismáticas que na realidade são influenciadores. Bolsonaro e Trump não são grandes lideranças políticas, são extraordinários influenciadores. Conseguem atrair e manter uma audiência que encontra um alinhamento diante da fragmentação. Essa dinâmica nova da política — não mais baseada em representantes, mas em perfis de seguidores — muda radicalmente nossa ideia de Estado. Bolsonaro e Trump não gostam de burocracia, o que eles querem é destruir qualquer tipo de limitação aos seus carismas. A relação passa a ser de uma fidelização a partir da identificação com a opinião, e não mais com a prestação de serviços.

A ideia do bom governo hoje não tem a mesma relevância que antes, e isso traz um desafio extra para os Estados administrativos do século 21. Temos governantes antidemocráticos, antiburocracia, que por um simples alinhamento de ideias e de posições conseguem arrebatar grande parte do eleitorado, e isso significa que a entrega do Estado se torna menos importante para esse eleitorado do que era antes.

O que se espera de um Estado democrático hoje?
Um Estado do século 21 tem que ser absolutamente democrático, tem que ter como premissa mais fundamental preservar a democracia. E não é preservar as instituições — quer dizer, é também, mas só o mínimo do mínimo. O que esperamos de uma sociedade democrática é, por exemplo, a garantia de liberdade religiosa. Na hora em que dou uma concessão de televisão para uma igreja evangélica, estou atingindo imediatamente essa liberdade. A partir do momento em que uma igreja que é uma corporação multimilionária, dona de um canal de televisão aberta, pode ficar fazendo proselitismo o dia inteiro para arrebanhar mais fiéis, estamos sendo absolutamente injustos com as outras religiões. Na lógica produtivista olha-se muito menos para essas questões fundamentais. O Estado, antes de mais nada, é um grande regulador da vida social.

Vários capítulos do livro são dedicados a desfazer ou criticar mitos sobre o Estado brasileiro. Tais mitos são uma particularidade brasileira?
Em vários países da América Latina há mitos parecidos com os nossos. Pode ser uma influência norte-americana, onde há uma aversão à ideia de Estado — eles têm um Estado militar, não um Estado de bem-estar social, e acho que nem querem ter, e grande parte da sociedade nem acha que isso seja relevante. É inacreditável que um país como o Brasil, que não investe nada em saúde pública — nada mesmo, comparado a outros países — consegue construir um sistema universal de saúde. E os norte-americanos, que gastam quase 20% do pib em saúde, não conseguem. E quando fazem um programa de ampliação de acesso a saúde, é o pior possível — caso do Obamacare, em que basicamente você dá mais dinheiro para plano de saúde. É gerar mais ineficiência no setor e não prover serviços. Os Estados Unidos não são um modelo de sociedade que simpatiza com a ideia de Estado de bem público ou de políticas universais. Isso está muito mais na nossa matriz ibérica.

Mas o Brasil tem uma particularidade. Nem todo serviço privado é melhor do que o serviço público no Brasil e, ainda assim, temos uma aspiração de ascensão social sempre ligada a sair do público. No Brasil há a ideia de que serviços públicos são para pobres, o que não é o caso na Europa.

País rico não é onde o pobre anda de carro, mas onde o rico anda de ônibus, como defende Enrique Peñalosa, ex-prefeito de Bogotá.
Exatamente. Ele tem toda a razão. No Brasil a ideia é outra. Ganha um pouco de dinheiro e tem que ter carro, plano de saúde e, pior, tem que colocar filho em escola privada — essas escolas particulares péssimas que temos no Brasil. É impressionante como rapidamente, por uma questão de status, o progresso de vida vai para sair do público. A gente pode ter o melhor sus do mundo e ainda assim as pessoas vão querer ter um plano de saúde porcaria. Isso está enraizado no Brasil.

País rico não é onde o pobre anda de carro, mas onde o rico anda de ônibus

Acho que isso tem a ver também com como a nossa imprensa noticia. O ônibus é sempre ruim, o metrô é ruim, o sus é cheio de fila… e isso nunca está contextualizado com a falta de recursos para políticas específicas. Não existe nenhum sistema no mundo tão ambicioso e tão subfinanciado quanto o sus. O setor privado é mais eficiente porque tem muito dinheiro. É uma barbaridade.

O momento atual de transição no Brasil é crítico, com capacidades dos Estados reduzidas e cofres vazios. Daria para aproveitar o momento como uma espécie de tábula rasa e reiniciar tudo em bases novas?
A tábula rasa é sempre difícil, mas daria, sim, em algumas áreas que não tinham capacidade de resistência e foram tremendamente afetadas pelo governo Bolsonaro, como saúde, educação e assistência social. Não há carreiras tão bem estruturadas nessas áreas, que são importantíssimas. O bolsonarismo não é uma ideologia política aceitável em democracia, então existe a necessidade de você entender como se monta uma função pública comprometida com a democracia.

As instituições criadas no século 20 podem ser simplesmente reformadas para se tornarem mais diversas ou será preciso instituir novas?
Com reformas já dá para fazer muito no âmbito da diversidade. É impressionante que na França, por exemplo, se prefira ter uma instituição que praticamente acabe com a Escola Nacional de Administração (ena) do que simplesmente discutir cotas. É uma aversão completa a pensar em ações afirmativas na administração pública. Não pode ser: “Vamos rebobinar, vamos mudar tudo”. Existe um caminho mais imediato para a diversidade que são as ações afirmativas.

Não é à toa que a alta administração pública brasileira seja tão branca, tão rica e tão masculina. Ela requer que se passe em um concurso, que se pague um cursinho, que se tenha tempo para estudar. Ou seja, nenhuma pessoa que precisa de emprego consegue chegar ao Itamaraty, a um cargo de juiz. Ninguém. Acontece no judiciário, no Ministério da Fazenda, no Banco Central, nas grandes carreiras do Estado brasileiro. É preciso criar carreiras que são finalísticas, que têm a ver com a proximidade entre o servidor e a população. Precisamos de reforma e de revolução.

Quando você incentiva a participação da sociedade, é a sociedade como um todo, não só os mais progressistas, iluminados… como fica esse cenário em uma sociedade com uma extrema direita forte?
Estamos vivendo um momento de disputa, mas não acho que estamos com um eleitorado de extrema direta totalmente consolidado ainda. Não acho que possamos dizer que 49% da população do Brasil seja de extrema direita. Ainda não é o caso. Mas em breve será. Eu sou muito pessimista em relação à sociedade brasileira. O campo democrático tinha um grande jogador que já estava aposentado. Foi como se tivéssemos colocado o Pelé para jogar e ele tivesse conseguido ganhar, mas sozinho e jogando contra o time da França de 2022. Foi uma genialidade conseguir marcar o gol na prorrogação, mas a França vai ganhar em algum momento.

Estamos muito, muito atrasados na disputa da sociedade, e acho que um dos elementos fundamentais é mesmo a participação, porque com ela você consegue criar alinhamentos diretamente associados a questões concretas. Os conselhos e as conferências têm grandes limitações porque pensam as políticas de maneira bem geral.

Não é à toa que a alta administração pública brasileira seja tão branca, tão rica e tão masculina

A participação é super eficiente e desejada quando toca diretamente a experiência de vida das pessoas, porque aí dane-se a tecnicidade, dane-se o nível de estudo, o que importa é a vivência daquela pessoa. As pessoas têm condições de lutar por uma política pública no seu bairro. Quando se trabalha questões locais, é possível conversar com gente que se preocupa mais com animais do que com pessoas e ao mesmo tempo com abolicionistas do século 21, que são contra a prisão dos traficantes. É possível colocar alinhamento entre pessoas ideologicamente muito diversas, em pautas urbanas específicas, e construir comunidades a partir daí. O conselho e a conferência não garantem a participação da população — o governante ouve o conselho e não o usa. O orçamento participativo garante.

Existem ferramentas que já conseguem criar uma permeabilidade maior com a sociedade?
Uma que tem sido muito utilizada, que é muito interessante e da qual se fala pouco é a assembleia cidadã. A Irlanda, por exemplo, país profundamente conservador e católico, aprovou a legalização do aborto a partir da assembleia cidadã. Quer dizer que há temas polêmicos que podem se beneficiar de uma aleatorização de pessoas. É sorteio, não é eleição ou designação, portanto ela é, em tese, representativa da sociedade. Há casos de sucesso da assembleia cidadã no mundo todo e, se bem explorada, ela pode ser mais interessante que o conselho. Temos condições hoje de montar amostras bem representativas da sociedade, de conseguir constituir um grupo que representa a sociedade muito mais do que o Parlamento. Mas precisamos quebrar a cabeça e inovar.

O orçamento participativo é incrível e há como fazê-lo digitalmente. Os mecanismos digitais hoje permitem esse tipo de participação, e acho que isso tem que ser quase banalizado, integrado ao cotidiano, não algo que acontece a cada quatro anos. Precisamos muito disso para construir uma sociedade democrática e pelo menos desanuviar os nós e, digamos, os ódios que existem entre atores ideologicamente diversos dentro da nação brasileira.

O especial Estado repensado tem apoio de República.org

Especial Estado repensado

Quem escreveu esse texto

Diego Viana

É jornalista e doutorando em filosofia.

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.