Estado repensado,

Gabriela Lotta

Cientista política mostra como os servidores lograram barrar a destruição da democracia

01jan2023 | Edição #65

A gente às vezes fala em burocracia, é quase um sinônimo de uma coisa negativa. No entanto, qualquer país desenvolvido tem uma burocracia capacitada. Eu queria começar pelo livro A democracia equilibrista, que você lançou com Pedro Abramovay. Por que “democracia equilibrista”?
O livro é um esforço para discutir um potencial desequilíbrio que está na relação entre os políticos — pessoas que foram eleitas ou ocupantes de cargos comissionados — e os burocratas, que são as pessoas concursadas. As democracias são construídas para garantir que políticos e burocratas consigam viver exercendo funções distintas, mas complementares. O político representa o povo: a gente vota em um presidente para que ele represente nossa vontade. Mas o Estado é operado por burocratas que têm como função, além de executar o que o político decide, resguardar as leis, a impessoalidade, a isonomia no funcionamento do Estado. Mas políticos e burocratas nem sempre conseguem conviver em harmonia porque têm interesses muito diferentes. A gente viu isso muito fortemente no governo Bolsonaro, um governo que enfrentava o tempo inteiro a burocracia, querendo mudar radicalmente as políticas públicas, querendo muitas vezes infringir a legislação. E coube aos servidores resguardar a legislação, resguardar as políticas públicas. Esse embate entre políticos e burocratas é um embate natural da democracia, mas o que a gente vai discutir no livro é que, quando esse embate não é bem equilibrado, ele pode fazer com que burocratas tenham um papel político que não lhes cabe, ou que políticos passem por cima de decisões técnicas que fazem parte da democracia. Esse é o argumento do livro: é importante resguardar o equilíbrio entre políticos e burocratas para garantir que a democracia funcione bem.

A gente chama de governo o que muitas vezes é Estado, não?
Eu acho que parte dessa confusão diz respeito à juventude da nossa democracia. Mas é mais que isso, tem a ver com a construção do Estado brasileiro, porque nunca conseguimos romper completamente as relações público-privadas dentro do Estado. Não temos um Estado completamente republicano, que separa o público do privado, e isso causa uma confusão entre o que é governo e o que é Estado. Será que o presidente pode usar o advogado-geral da União para defender sua família? Ainda não conseguimos construir essa separação de maneira tão forte no caso brasileiro. E isso acaba fazendo com que muitas vezes a administração pública tenha um uso muito personalista de recursos públicos. A gente viu isso no governo Bolsonaro de maneira mais forte do que a gente já tinha visto nos últimos trinta anos pós-Constituição.

A lei só existe na prática quando você tem atores que respeitam a lei, fazem as instituições funcionarem

E como desfazer isso?
Existem muitos caminhos. A gente avançou muito da Constituição para cá. Se a gente for comparar o que era o Estado brasileiro há quarenta anos e o que ele é hoje, nós avançamos muito nessa separação do que é público e do que é privado. E isso tem a ver com uma dimensão que temos que investir cada vez mais, que é a da construção institucional. Um sistema que nos garanta pesos e contrapesos, essa ideia de ter freios dentro do Estado com instituições que estão se controlando. E isso precisa ser feito cotidianamente. Se a gente olhar para nossa Constituição, a gente vai ver leis incríveis, mas a lei só existe na prática quando você tem atores que respeitam a lei, que fazem as instituições funcionarem. Esse é o processo mais difícil, porque pressupõe uma mudança cultural, uma mudança de práticas. Tem partes do Estado brasileiro que a gente fala: nossa, estamos exportando modelos para a Europa. E tem partes do Estado que servidores definem dizendo: a República ainda não chegou nesta organização. A gente convive com tudo isso.

Eu ia perguntar isso, porque a gente olha para a falta de fiscalização de certos setores, para os descalabros. No entanto, também tem partes do Estado que funcionam muito bem.
Alguns autores internacionais caracterizam os Estados na América Latina e na África como um patchwork. Você pega pedaços do Estado que você fala: isso é uma seda chinesa incrível; e você pega pedaços que estão rasgados, esgarçados, deformados. O Estado brasileiro é uma composição disso tudo. É uma colcha de retalhos. Pega o Executivo federal: você vai ver ilhas de excelência maravilhosas, e você vai ver áreas em que você tem um monte de terceirizados, pouca tecnologia. O Estado brasileiro é absolutamente heterogêneo. O senso comum discute muito que “servidor público no Brasil ganha muito”: 5% dos servidores no Brasil ganham muito, 95% não ganham muito. Uma reforma que limite o teto remuneratório vai atingir menos de 5% dos servidores. Em outras áreas a gente precisa de reformas que aumentem a média salarial, porque essas pessoas estão desestimuladas a ficar no Estado. O inss tem vivido isso neste momento, porque os servidores se aposentam e não têm concurso ou, se têm concurso, os concursos pagam muito mal. Nosso Estado é absolutamente desigual, desigual em gênero e raça. É um reflexo da sociedade.

Há um discurso no Brasil sobre “reforma do Estado” que vem muito de certa imprensa que quer impor seu modelo de Estado, diz por aí que “o Brasil não tem dinheiro para entregar esse Estado que prometeu na Constituição”. Você concorda? Por que a gente não consegue ter um Estado como o francês?
Se nós formos olhar o modelo de Estado e de sociedade que nossa Constituição propõe, nós nos assemelharíamos muito ao Estado de bem-estar social dos países escandinavos ou da França, com políticas universais de acesso gratuito e universal para a população. Está na nossa Constituição o direito universal à saúde, educação, assistência. Em termos do que nós nos propomos a ser, somos muito similares a países desenvolvidos que têm Estados de bem-estar social. Mas nós somos um país altamente desigual. Se o Estado se propõe a gerar bem-estar universal, o Estado vai ter que combater a desigualdade. E isso cria uma dificuldade. Esses países que têm Estados de bem-estar social são muito ricos, com muita capacidade arrecadatória. As pessoas acreditam no Estado e sentem que têm um serviço público como retribuição ao seu imposto. No caso brasileiro a população não está disposta a pagar mais impostos porque não sente o benefício direto. Isso gera uma situação muito difícil de se sair. A gente precisa de mais dinheiro para entregar o que a gente se comprometeu, mas para dar mais dinheiro as pessoas têm de sentir que recebem o serviço em um patamar equivalente ao que pagam em impostos. Se isso não acontece, você entra num processo de deslegitimação do Estado. E é um pouco nisso que a gente está neste momento. Parece que a gente não tem saída, mas tem saída porque vamos ver que tem muita desigualdade na maneira como o Estado gasta seus recursos. E isso tem a ver com a manutenção de determinadas elites dentro do Estado. A gente olha para os subsídios, as isenções. São áreas econômicas que estão deixando de pagar impostos.

Mas as isenções não são políticas de governo?
A isenção é uma decisão de política de governo, mas, à medida que vai se institucionalizando no Estado, muitas vezes a própria burocracia começa a defendê-la. Porque a burocracia também é formada por pessoas que têm interesses, que estão defendendo interesses da elite, de grupos econômicos.

O Estado brasileiro é absolutamente heterogêneo, desigual em gênero e raça. É um reflexo da sociedade

Você acha que existe no Brasil aquilo que foi batizado nos Estados Unidos de deep state? Essa classe de burocratas muito qualificados que ajudou a proteger a estrutura do Estado da predação do Trump, da destruição? Acho que o sus foi um bastião nesse sentido.
Não gosto muito do conceito de deep state. Traz consigo uma imagem muito negativa, de servidores cometendo ilegalidades em nome de uma causa em que acreditam, mas que é contra o governo eleito. Não acho que seja esse o caso. O que tivemos são servidores que atuaram durante o governo Bolsonaro tentando proteger as políticas públicas nas quais trabalhavam. Isso nós tivemos e foi absolutamente fundamental para que o processo de desmantelamento não fosse maior do que foi. Você comentou o caso do sus: nós conseguimos ter vacina. Vimos isso quando tivemos um ministro que era contra a fiscalização ambiental, e os servidores seguraram a onda e continuaram fazendo sua função, muitas vezes colocando a própria vida em risco. Tivemos isso dentro do Itamaraty, com diplomatas que continuaram defendendo causas de que o Brasil era signatário. E os servidores do tse, que mesmo sendo assediados, recebendo pressão, tendo os militares lá no pé deles, continuaram exercendo sua função de fazer a eleição acontecer. Isso é uma boa definição do que é política de Estado e do que é política de governo. A política de governo pode ser: não queremos ter eleição. E a política de Estado é os servidores dizerem: vou seguir a lei e fazer a eleição acontecer.

Também aconteceu muito que eles resolveram não aplicar as leis, como a Lei Rouanet, tão demonizada.
A gente tem três possibilidades. Tem a possibilidade de que o governo atue de maneira ilegal, a gente viu isso em algumas áreas. Mas tem outras duas coisas: posso não ser contra a Lei Rouanet, mas não dar servidor para fazê-la funcionar, não dar recursos para ela funcionar. Você não está fazendo nada ilegal, mas também não está garantindo as condições para que a política aconteça. Essa é a segunda situação. E tem uma terceira: o governo Bolsonaro atuou na discricionariedade da interpretação da lei, naquela margem de interpretação que uma legislação me dá. Nós temos leis ambíguas, temos leis contraditórias, temos leis que permitem múltiplas interpretações.

Esse processo de ataque à democracia foi extremamente orquestrado, inteligente e estratégico

O famoso artigo 142…
Exatamente! Não dá para a gente amarrar tudo na lei. Mas a saída é que temos que ter instâncias recursivas. Se uma interpretação está dando problema, alguém vai decidir. Por que o stf tem atuado tanto? Porque o stf é uma instância recursiva. Agora, não dá para o stf fazer tudo, tem coisa que não vai chegar lá. Uma coisa que acabou favorecendo o governo Bolsonaro foi a capacidade de você ter sistemas de contrapesos internos. O governo ocupou com cargos comissionados, muitas vezes com militares, as áreas recursivas dos ministérios: o comitê de ética, a corregedoria, a área de recursos humanos. Um servidor sofria assédio do chefe ou pressão para que fizesse uma coisa ilegal, e ele ia denunciar o chefe na área de recursos humanos. Mas a área para que ele denunciava começava a persegui-lo. Aí ele ia denunciar a perseguição para a corregedoria, mas o chefe da corregedoria também começava a persegui-lo. Ele não tinha instância recursiva. E ele não pode ir ao stf.

Uma evidência que sai da pesquisa é o grande poder de desmantelamento que Bolsonaro teve a respeito do Estado brasileiro: coisas que foram construídas em trinta anos, ele conseguiu desfazer em dois, três anos. Esse poder tem relação direta com sua capacidade de atacar a burocracia. Esse processo de ataque à democracia foi extremamente orquestrado, inteligente e estratégico. Eu adoraria saber quais são as cabeças que estão por trás dessa estratégia. O que sei é que foi uma estratégia coordenada.

O que você enxerga para as próximas décadas no modelo do Brasil?
O Estado brasileiro cresceu fortalecendo algumas carreiras burocráticas de elite, que ganham muito, geralmente formadas por homens brancos. É como se o Estado tivesse fortalecido suas corporações internamente, que passaram a disputar os recursos do Estado. São procuradores brigando para não fazerem parte da reforma administrativa, juízes brigando para não entrarem no teto remuneratório, auditores fiscais ou advogados da União brigando para conseguirem percentuais do que conseguem arrecadar. É um corporativismo diferente daquele sindical, que era mais ligado às empresas estatais. São essas carreiras de elite que ganharam muito poder, que se materializaram como carreiras de Estado. Agora, se a gente pega o professor, a gente não consegue dizer que o professor é uma carreira de Estado. São carreiras que têm menos poder, que recebem salários menores, menor identidade.

Esperamos que seja um estágio de amadurecimento do Estado, que mais carreiras possam ganhar voz.
Espero que sim. Porque a saída não é enfraquecer as carreiras. A saída tem de ser fortalecer as carreiras. Não fortalecer no sentido corporativista, que é o que está acontecendo no Estado brasileiro. As carreiras com superpoder ficam disputando recursos escassos do Estado. O que a gente precisa é ter um fortalecimento mais igualitário entre as carreiras da administração.

O especial Estado repensado tem apoio de República.org

Quem escreveu esse texto

Paulo Werneck

É editor da revista Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.