Estado repensado,

Alexandre Gomide

Pesquisador compara Estados pelo mundo e fala da necessidade de resgatar o ethos no serviço público

01jan2023 | Edição #65

Nas últimas décadas a tônica foi a redução do Estado, o enfraquecimento do serviço público, em nome de uma atuação ampliada dos mercados. Qual é o legado desses anos de enxugamento do Estado?
O problema é que do final dos anos 80 para os 90, com aquela onda de desregulação, privatização, retirada do Estado etc., veio aquele modelo chamado de “nova gestão pública”, que influenciou muito o plano diretor da reforma do Estado do Bresser. O pressuposto teórico era trazer para dentro do Estado os modelos de gestão das empresas privadas.

E vamos então importar os modelos etc., e todo aquele caráter impessoal, legalista, voltado aos procedimentos, foi muito demonizado. Só que lá para o final dos 90, começo dos 2000, viu-se internacionalmente que isso não apresentou tantos resultados. Começou um movimento que tentava manter alguns desses elementos de eficiência, mas admitindo que o Estado não tinha apenas que tratar do cidadão como cliente, tinha que incluir participação social, controle social. Com isso, a nova gestão pública, com a autonomia das agências, gerou uma fragmentação do governo. Ficou difícil conduzir as políticas públicas.

Havia um modo de dar autonomia para essas agências e organizações, de especializar e colocar elas para competir, ou criar quase-mercados, como se o setor público fosse algo diferente do Estado. Aí veio um movimento contrário: numa primeira onda, veio essa questão da governança, um movimento, conhecido como novo weberianismo, que diz: não, o Estado é diferente do setor privado. No setor privado você tem objetivos bem quantificados… o funcionário está ali para fazer uma coisa bem clara, que é satisfazer o acionista.

Weber fala que a burocracia é uma maneira de agir na impessoalidade e conforme a lei

A visão weberiana do ethos do servidor público é a pessoa que deixa as paixões de lado e tem que agir de forma impessoal para garantir o Estado democrático de Direito. No setor privado, o cara tem que buscar lucro, buscar aparecer, buscar resultado, e nisso você pode ser pessoal nas decisões e deixar de lado aquele caráter de tratar todo mundo igual e de acordo com a lei, como se fosse um juiz, um fiscal, o que é um pilar fundamental da democracia. No setor público, independentemente de eu conhecer o cara ou não, de ganhar mais por multá-lo ou não, tenho que tratá-lo igual às outras pessoas.

Se eu ganhar um plus porque multo mais, estou desvirtuando o devido processo legal, a impessoalidade, que é necessária. Um juiz não pode jogar para a galera, tem que atuar. Uma pessoa que vai escolher quem vai receber uma receita pública, um guarda que vai multar, prender, tem que agir nesse ethos. O que o Weber fala é que a burocracia é uma maneira de agir na impessoalidade e conforme a lei, de acordo com sua ética profissional.

Na gestão pública isso foi posto de lado, foi dito que causava ineficiência, lentidão. Realmente gera disfunções, mas o pessoal jogou fora o neném junto com a água suja… Em vez de tratar das disfunções da burocracia, resolveram tirar essas limitações.

Hoje há uma ideia de que acabou a era do Estado mínimo e se está propondo um Estado ativo, propositivo, indutor?
O pessoal viu que a desregulamentação gerou a crise de 2008. Nas crises, economias que tinham forte presença do Estado começaram a suplantar as economias liberais. É o caso da China. E isso começou a gerar uma deslegitimação do Estado. Tem gente que fala que a nova direita surgiu da frustração com as políticas de globalização, Estado mínimo, impessoalidade, comercialização. Tem autores que falam que recuperar o Estado republicano, democrático etc. com esses valores seria uma forma de lutar contra essa frustração que gera esses fenômenos reacionários. A globalização não entregou o que prometeu, a prosperidade para todo mundo. Você vê a China, os Estados Unidos… O próprio neoliberalismo, com a crise de 2008, foi colocado em xeque.

E os desafios que exigem a transformação da própria base econômica?
Exato, é a Bidenomics. O Estado tem que impulsionar para gerar emprego. A Bidenomics é muito essa coisa de infraestrutura, alcançar a China.

Imagino que isso suponha uma recuperação desse funcionalismo weberiano, da função impessoal do servidor. Isso está acontecendo? Ou estão tentando fazer isso a partir das ideias da era neoliberal?
Na Dinamarca fizeram o movimento de recuar um pouco. Lançaram um programa de treinamento para recuperar essa ética do serviço público, da impessoalidade. Quando falo em impessoalidade, não é que você tem que desconsiderar o problema da pessoa e só ir para a regra. É no sentido de tratar as pessoas de forma igual. Não vou colocar os meus valores, se sou de direita ou de esquerda, dentro da atuação do Estado. Se o Estado republicano é laico e eu sou evangélico, quando estou no escritório, no Estado, tenho que agir conforme a lei. O Estado é laico. Minhas preferências não podem entrar em choque com os princípios do Estado laico.

A gente viu isso na questão do aborto de uma menina estuprada com onze anos e as pessoas tentaram demovê-la [de realizar o aborto legal], porque colocaram os valores acima do princípio da lei. Se sou radicalmente contra o aborto, mas sou servidor púbico e a lei fala que naquele caso a menina pode fazer o aborto, tenho que ir lá e fazer. Demover não é o meu papel como servidor público. A mesma coisa com relação aos policiais militares com os manifestantes. Se a lei diz que você não pode jogar um ônibus do viaduto, não é porque o cara está com camiseta amarela e eu gosto dele que eu não vou prender ele e vou prender outro cara, de vermelho, porque ele fez outra coisa. Isso vai bater nos problemas clássicos de patrimonialismo, de clientelismo, de corporativismo. Todos os problemas de como desenvolver o funcionalismo público brasileiro remetem a essa questão de como superar o problema de um estado corporativo.

Ainda há muitos traços de clientelismo, personalismo no funcionalismo público brasileiro

É por isso que a gente considera que nossa burocracia profissional, esse servidor público republicano, no sentido weberiano, é uma construção incompleta. Porque ainda há muitos traços de clientelismo, personalismo, principalmente nas nomeações para cargos de confiança. Há um processo de seleção no qual não se escolhem pessoas que tenham motivação intrínseca, vocação para estar no serviço público. Muita gente presta concurso porque está desempregado e acha que lá é o melhor lugar para ganhar mais dinheiro do que na iniciativa privada. Entende? Essa questão de vocação e do ethos está por trás dessa concepção. Muitas vezes você pega um concurseiro que faz o concurso para arrumar um emprego, mas ao mesmo tempo está fazendo um concurso para uma coisa diferente, para ganhar mais.

Qualquer concurso, né?
Qualquer concurso. E aí, quando essas pessoas chegam lá em cima, passam a atuar de maneira a predar o Estado, né? Os advogados públicos da agu ganharam direito ao tal adicional de incumbência. Antes, quando alguém perdia uma causa para a União, tinha que pagar as custas, que sempre iam para o caixa da União. Falaram que não, que são advogados, que é uma conquista deles e que aquele dinheiro tem que ir para eles. Montaram uma fundação privada e todo esse recurso, que era para ser da União, vai para lá e é distribuído igualmente para todos eles. Todo mundo ganha, além de salário, fora do teto. Esse ano foram 11 mil para cada um. Uma coisa que eles conquistaram por terem um grande poder de pressão corporativa. Pensam assim: “Eu não sou servidor público, sou advogado”. A lógica é mais de alguém que está prestando um serviço para o Estado do que a de um servidor.

Tem muito desses desvirtuamentos nessas altas carreiras, o corporativismo que acaba predando o Estado. Outra coisa da impessoalidade que deu muito problema aí para a gente: a forma como o Ministério Público federal se politizou. Os caras tinham objetivos políticos, querem holofotes. Então você vê que muita coisa da operação Lava Jato acabou sendo anulada porque eles tiraram esse princípio republicano da impessoalidade e foram agir politicamente para ganhar status, para ganhar dinheiro. Enfim, aí pode ser qualquer motivação.

Do ponto de vista do comportamento, da mentalidade, pode parecer que o corporativismo é um problema cultural, não tem solução técnica. Até que ponto isso é verdade?
Pesquisas em países africanos mostram que mesmo onde tem muito patrimonialismo, patronagem, clientelismo, você consegue ter organizações que funcionam bem em cima da ética de construir o ethos da eficiência, da integridade. Não é que o brasileiro nasce com isso. Algumas organizações conseguem ter esse tipo de comportamento, outras não. Se você coloca um mesmo servidor em uma organização onde o trabalho duro é valorizado, ou a impessoalidade, o respeito vem muito mais do que as pessoas analisam no trabalho dele, que é um bom profissional. Já em uma organização que é sempre dada à patronagem, esse mesmo cara, com a mesma formação, vai ter comportamentos diferentes. E vai ver: ah, o jogo aqui é assim? Então vou evitar trabalhar e tentar ganhar o máximo possível, legal ou ilegalmente, porque o jogo é assim.

Já se eu for para um lugar que tem tradição, um Itamaraty ou um Banco Central, tenho outra cultura organizacional. A gente não vê estudante brasileiro que nunca lavou um copo, nunca arrumou o quarto, fazer isso tudo quando vai para os Estados Unidos porque é constrangido pelo ambiente? Dá para construir essa cultura em algumas organizações, mesmo agora, sem ter que “mudar o Brasil”.

O sistema de concursos foi visto como um grande avanço no momento de sua criação, mas pelo visto há uma falha grande nele. É isso?
É. Pior seria sem concurso. O fato de a Constituição ter colocado a obrigatoriedade do concurso melhorou muito o nosso serviço público. Em qualquer indicador internacional, pelo menos na América Latina, a gente tem a melhor burocracia. Se comparar com a ocde a gente cai bastante, mas na América Latina a gente está lá em cima. Agora, pode melhorar muito o mecanismo de seleção impessoal e equânime que é o concurso. Qual a ideia do concurso? Trazer pessoas pelo mérito. Independente de filiação política, de patrimonialismo, de coleguismo, de parentes importantes e tal. Esse é o princípio: vão entrar as pessoas competentes e vamos dar igual acesso a todo mundo.

Precisamos selecionar servidores formados para a cidadania e recuperar a ética de trabalhar bem

Só que na prática o acesso não é igual para todo mundo, porque as pessoas que têm tempo e condições financeiras de estudar é que acabam entrando, então você já pré-seleciona um tipo de origem social. Não tem diversidade. Negros, pessoas desfavorecidas, que não têm tempo para estudar, que têm que trabalhar, levam desvantagem. Quanto à forma de seleção, é decorar conteúdo, né? Não são exatamente as competências de que a pessoa precisa para exercer o cargo. Tem muita gente que é disfuncional, mas é boa para estudar e fazer prova. O cara chega lá dentro e não consegue se relacionar com ninguém, briga com todo mundo… E há os comportamentos oportunistas, do tipo: “Passei no concurso, agora, se você quiser que eu trabalhe, me dá uma gratificação, porque o concurso eu já tenho”. Sabe que é difícil mandar embora.

É a Public Service Motivation, né? Tentar trazer para o setor público as pessoas que têm vocação, motivação. Tem pessoas assim, que gostam de determinada causa, tipo o Lineu, de A grande família: pessoas sérias, ou que querem mudar o mundo, querem fazer diferença. Tem pessoas cuja motivação é extrínseca, só funcionam com um prêmio. A ideia é botar um mecanismo por meio do qual você possa selecionar melhor, mas a partir do concurso, não é tirar o concurso. No México, na Argentina, que não têm uma burocracia tão organizada quanto a gente, os partidos vivem dessa patronagem.

Quais são os principais pontos da reconstrução do Estado no Brasil?
Não dá para tratar o serviço público como setor privado. Ele tem características bem específicas, desafios bem diferentes. E a qualidade das pessoas, não só em termos de competências práticas, mas de cultura cognitiva, valores, é importante para evitar que as pessoas que vão para o setor público não tenham nenhuma noção de cidadania, só queiram se dar bem. E tentar recuperar um pouco essa ética de servidor público trabalhar bem. Isso é um elemento fundamental para o Estado ter capacidade para entregar. Estudos internacionais mostram que a qualidade da burocracia tem é uma causa e uma condição para muitos resultados de políticas públicas, que vão desde crescimento econômico até a legitimidade do regime, da democracia, da estabilidade política e da inovação. É um fator muito importante, que as pessoas tratam meramente como RH. 

O especial Estado repensado tem apoio de República.org

Quem escreveu esse texto

Diego Viana

É jornalista e doutorando em filosofia
 

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.