Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Coisa de herói

Morto em agosto, Chadwick Boseman entendia como poucos a necessidade da comunidade negra norte-americana de se ver retratada de forma digna

01out2020 | Edição #38 out.2020

Eu tinha vinte anos quando a discoteca Lux abriu as portas em 1998. Ainda desconfortável na minha pele de adulto, tinha acabado de me mudar para Lisboa, a cidade das sete colinas, em busca de uma pista. Descobri várias nos lugares pelos quais passei e nas pessoas com quem me cruzei. Ainda guardava intactas a crença no amor-escolha e a convicção de que haveria de morrer lisboeta. Hoje penso diferentemente, mas, à época, essa e outras certezas que marcaram para sempre minha relação com o mundo me surgiram enquanto dançava na pista do Lux, no Cais da Pedra, junto ao rio Tejo. 

Fui levado por um dos meus heróis musicais, DJ Johnny, o melhor anfitrião que poderia ter tido naqueles meses de descoberta. Tínhamos acabado de sair da praia, Havaianas no dedo, aquele velho calção de praia, t-shirt roçada e vestígios de salitre a contornar nossas testas, quando nos vimos diante de um mar de gente circundando a porta do clube mais badalado da cidade. Confiançudo como quem tem em sua posse uma das Joias do Infinito da Marvel, Johnny trocou olhares cúmplices com o porteiro e, de repente, para meu espanto, vi a multidão afastar-se para dar passagem a dois negros empoeirados. 

Ao Lux, volto como quem regressa à casa de infância, ao lugar onde tudo se iniciou, para voltar a dar sentido às coisas que me afectam: a minha relação com a cidade e as pessoas que lhe dão vida. Em certa medida, volto para relembrar que não existem limites para o sonho. Um desses momentos de transcendência a que volto em busca de inspiração com regularidade se revelou numa noite de julho no já longínquo ano de 2003, quando Carl Craig, outro de meus heróis musicais, colocou a agulha Ortofon no vinil e das colunas ouvi sair a voz rouca da deusa Cesária Évora entoando os versos do “Angola”. 

Desde aquele momento, tudo o que fiz e faço na arte é uma tentativa de reproduzir a euforia e o orgulho que senti ao ouvir de forma tão bela e digna o crioulo de Cabo Verde, a segunda língua franca da cidade Lisboa, tocar num dos clubes mais importantes da Europa. Representatividade não é tudo, há que ter consciência disso; ações afirmativas e políticas de cotas não travam a violência sobre corpos negros. Mas não podemos negar o que ela faz para a autovalorização de indivíduos marginalizados. Se eu não tivesse tido acesso a espaços onde pude ver de perto meus heróis esticarem os limites da minha imaginação, pondo e vivendo na prática um dos meus mantras favoritos de Paulo Leminski — “isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além” —, o que teria sido de mim?

Representatividade não é tudo, mas não podemos negar o que ela faz para a autovalorização de indivíduos marginalizados

Foi no Lux que conheci o ator e recém-promovido a ancestral Chadwick Boseman. Ele não era ainda o rei T’Challa, o mundo ainda não o saudava com um cruzar de braços e a expressão Wakanda forever. Mas já era o Chadwick-Jackie-Robinson-Chadwick-James Brown, e vê-lo ali não foi surpresa, já que Hollywood conhecia o caminho até o Cais da Pedra. Reza a lenda que John Malkovich foi um dos investidores iniciais no projeto idealizado por Manuel Reis, um dos homens que desde o seu Frágil, no bairro alto, vinha ensinando Lisboa a dançar. Chadwick, que me foi apresentado pela fadista Ana Moura, foi afetuoso e mostrou genuíno interesse pela música que fazíamos, e nos prometemos um reencontro quando eu visitasse Los Angeles. Envolvido pela timidez que me caracteriza, fiquei pela promessa, pois quando me vi novamente em terras da Califórnia, ele já havia sido consagrado herói e Pantera Negra virara fenômeno mundial.

Se o acaso nos tivesse colocado no mesmo espaço, eu lhe teria confessado que no meu lar de infância, nós, as crianças, nunca nos prendemos aos brinquedos. Nosso mambo eram os livros de banda desenhada da Disney e da Marvel. Bastava meia dúzia por ano para fazer de mim o kandengue mais feliz de Benguela. De mim e de todos os miúdos da minha rua, porque esses objetos de culto pop não ficavam muito tempo na posse de seus proprietários originais. Seu destino era correr o bairro todo até voltarem — e muitos nunca voltavam, era assim o jogo. Tenho quase certeza de que a infância na cidade de Anderson, na Carolina do Sul, não é muito diferente da vivida em Benguela e, tendo ele nascido na segunda metade dos nos 1970, quase que aposto que cresceu também com a mesma dieta ficcional providenciada por Stan Lee e Jack Kirby.

Brio

Olhando para suas escolhas, é possível perceber que Chadwick Boseman entendia como poucos a necessidade da comunidade negra norte-americana de ver seus heróis retratados de forma digna no cinema, tal como Denzel Washington antes dele ao interpretar Malcolm X de forma sublime. Chadwick carregava o mesmo sentido de brio e responsabilidade para com o ofício da representação. A serenidade e o porte nobre que sentimos transbordar da tela sempre que ele aparece não diz respeito somente ao seu talento. É também muito de seu próprio caráter e da sensibilidade, qualidades que, ao emprestar aos personagens que interpreta, os torna maiores que a vida. Chadwick deu um novo sentido a um personagem com que só os melômanos e viciados nas histórias eram familiarizados. Ele tocou profundamente na forma como muitos jovens negros se veem, e o fez enquanto batalhava contra o câncer de cólon. Isso transcende o cinema, isso é coisa de herói, mesmo. 

Para os afrodescendentes e não só, o filme Pantera Negra lança o convite para um exercício especulativo em volta de uma série de hipóteses que até então nunca estiveram no centro da narrativa global. Excepcionalmente, alguns intelectuais abordaram o tema, mas nunca com o elã e amplitude que só um produto de Hollywood consegue atingir. O exercício é simples: imaginar o continente berço da humanidade sem ter sido subjugado pelo domínio colonial das nações do Ocidente, com seus reis resistindo à invasão e mantendo-se independentes. Imaginar que os mais fortes e brilhantes nunca foram arrancados para fora do continente e vendidos como escravos. Que África teríamos hoje? As fronteiras seriam outras, certamente; a conferência de Berlim de 1885 não as teria desenhado a régua e esquadro. Os recursos naturais teriam permanecido nas mãos dos seus filhos. Essa é a utopia que alimenta o filme mais bem-sucedido do universo Marvel. 

Chadwick e o elenco formidável de atores negros dirigidos pelo brilhante Ryan Coogler ofereceram-nos um filme de ação e de super-heróis com todos os ingredientes que o gênero pede e mais. Não só não faltou nenhum dos predicados que fazem um blockbuster como, no momento em que movimentos como o Time’s Up e o #MeToo começavam a abalar a indústria cinematográfica norte-americana, Pantera Negra era (e é) também um filme feminista. É um daqueles filmes que merecem ser vistos no mínimo três vezes, tal é a quantidade de referências e propostas que são atiradas para o espectador. Uma visualização apenas será um desfavor ao realizador e à sua obsessão absurda com o detalhe e a importância de criar obras com significado, da música às sugestões pan-africanistas. Mais do que um filme, Pantera Negra é um convite para refletirmos e agirmos de forma consequente, e respondermos sem rodeios à questão de qual é o papel que a África terá que assumir para resgatar e se beneficiar de uma relação mais intensa e frutífera com as suas diásporas espalhadas pelo mundo. 

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.