Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Teoria da decisão

Se quisermos uma sociedade mais democrática, justa e ecológica, teremos que olhar para a forma como consumimos

31out2019

“I think of myself politically as pan-african” [“Eu me considero politicamente pan-africana”], disse Chimamanda Ngozi Adichie quando questionada sobre aspectos políticos do seu celebrado romance Americanah (Companhia das Letras, 2014). A escritora nigeriana comunga da ideia de que, para a diáspora africana como um todo, a nossa identidade comum não se baseia apenas na cor da pele e nos afro-americanos, e nessa equação não inclui apenas os descendentes de africanos na terra da Estátua da Liberdade, mas também, e não só, os afro-brasileiros, afro-colombianos, afro-caribenhos. Adichie afirma que a história desses povos não começou num navio negreiro, começou antes, em África.

Partilhei mesa com o icónico Russo Passapusso (Baiana Sound System), moderada pela talentosa jornalista Adriana Couto, apresentadora do programa Metrópolis da TV Cultura, no início de outubro, por ocasião do Festival Mário de Andrade — A Virada do Livro de São Paulo, que levou 60 mil pessoas a ocuparem as ruas e equipamentos culturais da cidade para celebrar o livro e a leitura. 

Em plena Praça das Artes, num domingo atipicamente frio na maior cidade da América do Sul, dois tópicos vieram-me à mente: pan-africanismo e estatística. Ambos os pontos me lembram os meus pais, não fossem eles herdeiros do sonho de uma África unida, promovida por pensadores africanos, na diáspora e no continente, como W.E.B. Du Bois, Julius Nyerere e o dr. Kwame Nkrumah (daí as palavras de Chimamanda). Já a estatística leva-me no encalço da minha mãe.

Mãe paciente

Mãe inesgotável, paciente e de uma bondade mansa, que não cobra mais do que as palavras de que toda mãe precisa para se sossegar. Quando me telefona, respondo com condescendência: “Sim, dona Fátima, está tudo bem com o teu caçula rapaz”. E como sempre, lhe prometo uma comunicação mais regular e desligo a chamada, arrependido de não ter dito que a amo no final da breve conversa. Apetece-me voltar a ligar para dizer-lhe exatamente isso, e ficar horas a ouvir as histórias que ela guarda do tempo em que os quatro filhos que deu para o mundo brincavam à volta da sua saia. Como o número de anos que passámos naquele quintal em Benguela é agora menor que o número de anos que passei longe, cabe-me a mim fazer desfilar todos esses momentos.

Enquanto os amigos, Natal após Natal, aumentavam seu arsenal de armas de plástico, lá em casa íamos amontoando papéis

Uma das minhas primeiras memórias são as tardes passadas com o meu irmão a pintar nas costas das folhas de cálculo rasuradas que minha mãe nos trazia do emprego. Ela era técnica de estatística no Ministério do Trabalho. Embora de quando em quando surgisse um ou outro carrinho de plástico lá em casa, tenham em mente que aqueles eram os anos 1980, do slogan “a luta continua” e “a vitória é certa”, do marxismo-leninismo, das lojas do povo e dos cartões de abastecimento. Os brinquedos com que nos entretíamos eram lápis e papel. Os brinquedos bélicos, que sempre foram mais apetecidos pelas crianças do sexo masculino, estavam estritamente proibidos. 

É claro que eu não achava graça nenhuma àquela regra. Enquanto a maioria dos meus amigos, Natal após Natal, aumentava o seu arsenal de armas de plástico, lá em casa íamos amontoando papéis. Meu irmão mais velho foi o que melhor soube aproveitar aquela papelada toda. Desde que o conheço, pinta como se tivesse lhe baixado o espírito barroco de Diego Velázquez. Eu, na condição de caçula, bem que tentava acompanhar as pinceladas, mas meus rabiscos só arrancavam elogios daqueles que não conheciam o meu irmão mais velho.

Voltando à Praça das Artes, diante daquela plateia paulistana, ao fazer referências aos planos do presidente Nana Akufo-Addo, do Gana, e de outros líderes da União Africana, seus contemporâneos, de criarem uma união económica, que, uma vez implementada, será a maior área de livre-comércio do mundo desde a formação da Organização Mundial do Comércio. Não pude deixar de me lembrar dos números do Brasil negro que, a seguir à Nigéria, é a segunda maior nação africana em população, ainda que fora do continente. Eles são os 54% da população brasileira que movimentam cerca de R$ 1,7 trilhão por ano na terra da Arara Azul e da guerreira Dandara, mas ainda recebem em média R$ 1.200 a menos que os trabalhadores brancos. Eles são os 66% dos 13 milhões de desempregados do país e representam também três quartos da população que está na faixa dos 10% mais pobres, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Mudanças no consumo

Em resposta a uma das questões que me foram colocadas na Virada do Livro, frisei que um dos caminhos possíveis para desmontar o racismo estrutural passará por começarmos a valorizar o nosso centavo. Se quisermos uma sociedade mais democrática, justa e ecológica, teremos que olhar para a forma como consumimos. Desde o momento em que abastecemos a nossa geladeira até o vestuário que escolhemos para cobrir o nosso corpo antes de sair para a balada. 

‘Temos que nos afastar da ideia de que um Papai Noel desenvolverá nosso continente para nós’

Daí surgem iniciativas ousadas como as do Movimento Black Money, inspirado no pan-africanismo, com a proposta de deixar o capital financeiro e social circulando o maior tempo possível na comunidade negra. Nina Silva, a visionária que promove esse hub de inovação para inserção e autonomia da comunidade negra na era digital, transformando o ecossistema no qual se insere o empreendedor negro, afirma que o intuito é buscar oportunidades com equidade.

Em julho deste ano, numa conferência promovida pelo presidente Emmanuel Macron no Palácio do Eliseu, em Paris, o presidente Nana Akufo-Addo, diante de uma plateia de africanos da diáspora francesa, afirmou que “temos que nos afastar da ideia de que há um Papai Noel que virá e desenvolverá nosso continente para nós. Não há Papai Noel, somos apenas nós”, disse ele. 

Nina Silva, que foi considerada uma das mulheres mais poderosas do Brasil pela revista Forbes, também defende algo similar, afirmando que “não adianta esperar as empresas fazerem algo, temos que criar as nossas próprias soluções para resolver os (nossos) problemas”. E entenda-se que pan-africanismo económico não exclui as outras comunidades ou grupos étnicos, todos nós podemos participar, escolhendo comprar produtos de fontes que reflectem os nossos valores enquanto indivíduos. Só assim se poderá olhar para os dados estatísticos — como os que indicam que as mulheres negras movimentam cerca de R$ 704 bilhões por ano no Brasil e representam cerca de 16% do consumo nacional —  e acreditar que é possível mudar o mundo. E como há quem sugira que a estatística é um ramo da teoria da decisão, me pergunto se a minha mãe sabia que, substituindo os brinquedos convencionais por folhas de papel e lápis de cor, iria fazer do meu irmão mais velho um artista plástico.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).