Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Estratégias de sobrevivência

Nossas instituições literárias podem e devem fazer melhor para reflectir a diversidade racial em nossas sociedades

01jul2020

Hoje bateu uma saudade danada de visitar uma feira literária, conversar com leitores, assinar seus livros, tirar a selfie de praxe e num abraço agradecer-lhes por manterem viva essa coisa tão necessária para a nossa saúde mental a que chamamos de literatura. Me deu até saudade de algo que não faço desde que me mudei para Berlim: visitar escolas do ensino secundário no Portugal mais remoto, como Vila Nova de Paiva, Penalva do Castelo, Arruda ou Sobral de Monte Agraço, lugares que nunca me ocorreria visitar se não fosse pelos livros e pela curiosidade em conhecer o outro. 

Colhi tanto prazer nisso que não o via como sacrifício. Contrariando meus hábitos de noctívago, despertava com uma alegria de criança aniversariante, antes do galo cantar. Vestia minha camisa e gravata favoritas e corria para a estação de comboio de Santa Apolónia, cruzando-me no caminho com outros madrugadores como eu, lisboetas por nascimento ou afecto, africanos europeus, irmãos da diáspora que fazem parte do leque de personagens que pululam em muitas das minhas histórias.

Esses personagens me acompanharam da FLIP em Paraty ao Africa Writes em Londres, do Elinga Teatro em Luanda à Escola Secundária de Penalva do Castelo, uma vila do distrito de Viseu, não muito longe de Fornos de Algodres e Mangualde. Na biblioteca da escola, um tanto retraídos, duas dezenas de alunos aguardavam pacientemente pela minha apresentação. Esforçavam-se para não perder a compostura e envergonharem os professores que estavam visivelmente mais entusiasmados com a minha visita do que aquela jovem plateia, e eu tentando esconder o nervosismo miudinho. É infinitamente mais fácil subir para cima de um palco e actuar para multidões de centenas de pessoas, no Estádio dos Coqueiros em Luanda ou no Festival Rock al Parque em Bogotá, do que ser submetido a interrogatório por um grupo de curiosos por saber o que significa ser escritor.

E na altura respondi-lhes que era o único exercício que sabia praticar para materializar em palavras aquilo que sabia sobre mim. Meu nome, por exemplo, diz mais sobre mim do que qualquer outro adjectivo que já me fora atribuído. E em Penalva do Castelo, por exemplo, havia um único aluno negro na plateia, e carrego até hoje seu olhar de espanto ao ver-me entrar na sala, tal qual Sidney Poitier no filme Ao mestre, com carinho, como um dos poucos momentos em que senti verdadeiro orgulho das escolhas que fiz. Representatividade importa. 

Não é suficiente assinar petição, falar mal do governo de Bolsonaro, de Trump ou lamentar a morte injustificada de mais um corpo negro na periferia

Não cheguei a perguntar-lhe o que sentira ao me conhecer, não foi necessário. Bastou-me ver, à medida que ia desfilando as personagens do meu mundo, e embora ele nunca tivesse lido nenhum livro meu, que eram-lhe também familiares. Ele, que começara curvado para dentro de si, consternado por ter sido obrigado pela professora a ouvir a fala de um escritor angolano, ao ouvir-me nos primeiros dez minutos, inclinou-se para a frente com os olhos esbugalhados, intrigado com a curiosidade dos colegas habitualmente avessos a lenga-lengas literárias mas que ali, de braço levantado, exigiam que lhes fossem dadas a oportunidade de colocar uma questão.

E eles queriam saber tudo. Os títulos dos meus livros, os escritores que me influenciaram, a música que ouvia e até os sapatos que trazia calçados. E lhes fiz a vontade. Falei-lhes sobre a importância de lerem autores de culturas diferentes, como o escritor congolês Alain Mabanckou, que, ao sermos apresentados no festival Back to Black, no Rio de Janeiro, brindou-me com o termo sapeurs, ao reparar que não me rendera ao calor que ainda sentia naquele final de verão carioca.

Apresento-me religiosamente de fato e gravata sempre que ponho o pé na rua. O meu fascínio por esse tipo de vestuário está intimamente ligado ao meu amor pelos músicos de jazz e escritores e pensadores como René Maran, Aimé Césaire e Léopold Sédar Senghor, do movimento Négritude, e ao meu avô, ao tempo e aos códigos que ele valorizava, gestos nobres, paixões avassaladoras e ideais pelos quais valia a pena dar a vida. 

O fato, para mim, carrega todos esses signos. A dedicação empregue no fabrico de determinadas peças do vestuário masculino, obedecendo a processos que remontam aos anos de mil novecentos e antigamente, despertam em mim sensações com as quais só encontro paralelo quando visito alfarrabistas e sebos em busca de livros antigos e vinis raros. Os sapeurs, a que o autor de Copo quebrado e Memórias de porco-espinho se referiu ao ver-me vestido de fato e gravata, são um grupo de dândis que se preocupam em dar um toque de classe e glamour à realidade violenta e pobre dos bairros na periferia de Brazzaville e Kinshasa. E isso dá-lhes estatuto de celebridades locais — são muitas vezes remunerados para aparecerem em cerimónias festivas, assim como em funerais, tudo pela sua postura social e valores exemplares.

Apelo

Lembro-me daquele aluno em Penalva do Castelo agora que, no rescaldo da morte de George Flyod, manifestações antirracismo se multiplicam um pouco por todo o mundo e muitos embarcaram numa busca espiritual, condenando atos de discriminação e derrubando estátuas de figuras históricas de conduta moral condenável. Escritores negros pedem aos seus pares brancos que revelem os valores recebidos por suas primeiras obras. Tudo isso no meio de uma pandemia mortífera, num mundo em que o bafo do fascismo nas nossas nucas se faz sentir cada vez mais intenso. E, como escrever é a única coisa que sei fazer, faço um apelo para que nós, escritores e leitores, façamos mais. Nossas instituições literárias podem e devem fazer melhor para reflectir a diversidade racial em nossas sociedades. Autores afrodescendentes e histórias de negros já provaram que vendem, e é importante começar a olhar para além da lista dos autores negros mais vendidos. Agentes, editores, críticos e autores de grupos marginalizados: agora é hora de incluir. Nossa sobrevivência enquanto indústria depende disso.

 Acordemos então. Já nos apercebemos de que a arte, aquela que conforta os perturbados e perturba os confortáveis, está moribunda. Em parte porque seus guardiões esqueceram-se de ouvir o que pregam e, tal como Ícaro, aproximaram-se demasiado do Sol. Colocaram-se a serviço de interesses que insistem em tratar a arte da mesma forma que um “Santa Cecilier” trata as suas samambaias, essencialmente para fins ornamentais. Todas as sociedades têm os líderes, os intelectuais e os criminosos que merecem. Se só agora chegaste à festa, seja bem-vindo. Pela parte que nos toca, nós, os negros, agradecemos, mas não basta postar nas redes sociais o #blacklivesmatter. Não é suficiente assinar petição, falar mal do governo de Bolsonaro, de Trump ou lamentar a morte injustificada de mais um corpo negro na periferia. 

Racismo não tem mais espaço em democracia. Se vale a pena lutar por esse ideal, que, até agora, com todas as suas falhas, continua a ser o melhor sistema político que temos, e digo isso por experiência própria, a Angola comunista não me deixou saudade, assim como acredito que o Brasil da ditadura seja algo que ninguém com o mínimo de bom senso quer ver se repetir. Então, pelo futuro dos nossos filhos, é hora de começarmos a drenar o pântano do racismo estrutural. Acordemos, porque, como disse o rapper afro-americano Killer Mike, agora é a hora de planificar, planejar, engendrar, organizar e mobilizar.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).