Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Escrever para sempre

Desejo como o de Toni Morrison é um segredo — talvez ela só o tenha confessado porque estava no fim da vida

30jan2023

Há seis, sete anos, num vídeo curto, que não consegui voltar a localizar, ouvi Toni Morrison sussurrar que gostaria de “escrever para sempre”. Nunca mais esqueci esse momento, que me vem à memória muitas vezes. “Para sempre” não era até à morte. “Para sempre” é além da morte. Até ao fim dos tempos. Toni não se explicava. Apenas intuí que assim era do tom da voz, da forma como proferia as palavras, virada de perfil, parecendo que as dizia a si mesma, indiferente à presença da câmara e de quem a filmava.

Entendo bem que falasse sozinha. Dizer que se quer escrever para sempre não é coisa que se brade aos quatro ventos. Há desejos que só são admitidos em oração, mesmo quando não acreditamos em Deus.

Desejo como o de Toni Morrison é um segredo — talvez ela só o tenha confessado porque estava no fim da vida, o que ajuda a entender o alcance desse para sempre: não durante uma vida, mas além dela. Surpreende-me, por vezes, que o mundo seja como é, apesar de todas as tragédias em curso, em vista do quanto guardamos uns dos outros. Que, em vista da magnitude dos nossos segredos, a humanidade consiga prosseguir e que uma ínfima parte dela consiga florescer. É tanto aquilo que não confessamos, coisas como esta, o modo como gostávamos de viver a eternidade. O modo como gostávamos de morrer. A pessoa pela qual esperamos. Os nossos ódios mais íntimos. Os medos que as palavras não comportam.

Escrever para sempre: e imagino Toni com rastas tão longas como um rio, crescidas ao longo de décadas, anos, milénios, num rio de cabelo branco. E ela sentada à mesa, eternidade fora, a escrever sobre tudo o que houve antes e o que há depois. E, depois, páro e penso que desejar escrever para sempre é como desejar ser para sempre um padeiro, passar a madrugada a amassar e a cozer o pão. (Noite adentro, mundo fora, a história do mundo recomeça a cada alvorada nas panificações, pela mão dos padeiros.)

É tanto aquilo que não confessamos, o modo como gostávamos de viver a eternidade. Os nossos ódios mais íntimos. Os medos que as palavras não comportam

Não é preciso estar doente. Basta sair de casa, descer a escada do prédio, pôr o pé na rua. O perigo parece estar em todo o lado e lado algum, porque está dentro de nós. Deus está dentro de ti, dentro desta flor, naquele cão, naquele pássaro. O medo ansioso de morrer de repente, deixando a vida a meio, perigo que não está fora, mas dentro, às vezes parece que esse perigo é Deus a dizer que está aqui muito perto.

É por isso que, neste tempo da ansiedade e dos começos, me lembro do “para sempre” (de Toni Morrison). Será mais desejo ou mais afronta? Mais ousadia ou inquietação? Conheço um senhor que dorme num banco de jardim, a única coisa que tem são duas malas e um cobertor que dormem ao seu lado. Não vive sozinho. Vive com um corvo, que amestrou, e com quem conversa. Se passo perto, o corvo interrompe a conversa com o senhor e enxota-me, crocita mais alto. Não quer que ninguém incomode o senhor, que não é seu amo, mas seu irmão. Consigo andar pela rua a coleccionar “para sempres”: a amizade entre o irmão corvo e o irmão homem é uma coisa dessas.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).