Coluna

Monica Baumgarten de Bolle

Reflexões sobre 2021

No mundo que sobreviverá à pandemia, será necessário reorientar o debate público para retomar a agenda de proteção social, saúde, educação e ambiente

23dez2020

O ano de 2021 encerrará o ciclo de cinco anos de nacional-populismo de Donald J. Trump. O encerramento desse ciclo é importante para o mundo e para o Brasil. Parte dos brasileiros tem nos Estados Unidos um modelo, e a tendência a se espelhar neles se acentuou com a ascensão de Jair Bolsonaro em 2018. A tradução brasileira do repúdio ao conhecimento, às ciências, às instituições, à saúde pública e ao meio ambiente que Trump encarnou nada deixou a desejar. 

Mas o ano de 2021 se inicia de modo muito diferente. Com a vitória de Joe Biden, o rechaço ao antimultilateralismo e a retomada de uma agenda centrada na proteção social, na saúde, na educação e no meio ambiente trazem a esperança de que, às vésperas do bicentenário da independência do Brasil e das eleições de 2022, o ciclo nefasto possa também se encerrar em nosso país. Para tanto, será necessário, contudo, reorientar o debate público e não deixar que ele seja pautado por conhecimentos que, por mais consistentes que sejam, não dialogam com a realidade.

Os eixos centrais do programa de Biden devem nos lembrar dos pilares da nossa própria Constituição, a de 1988. Ela consagrou o meio ambiente, a saúde, a proteção social e a educação como direitos dos habitantes do Brasil, e para implementá-los são necessárias políticas públicas. 

Liberalismo à brasileira

Costumamos fazer pouco caso de nossa Constituição e a ela imputamos equívocos e desarranjos, sobretudo na área econômica. É comum ouvir economistas brasileiros repetindo o bordão de que “a Constituição não cabe no Orçamento”. A rigor ele não faz sentido, porque o Orçamento só é legítimo à luz da Constituição. O que querem dizer, de todo modo, é que a Constituição estabeleceu prioridades para o gasto público e atribuiu um papel ao Estado que não condizem com a ideia que eles têm sobre como deveriam ser elaboradas as políticas públicas no país. Chamo essa tendência de “liberalismo à brasileira”.  

Liberalismo é um termo polissêmico e, ao contrário do que muitos pensam, não é, necessariamente, contrário a nacionalismo. O termo pode designar um conjunto de ideias que expressa um compromisso com diversas formas de liberdade, as quais vão do livre mercado às liberdades de pensamento, expressão, circulação, de ter e não ter religião, e também com formas de igualdade. Estas vão da igualdade perante a lei, que torna possível o convívio não violento entre diferentes, ao igual acesso a meios para uma vida digna, como a saúde e a educação. A versão do liberalismo à qual me inclino pressupõe que a realização universal das liberdades requer distribuir renda para além do nível da subsistência, pois as próprias liberdades dependem do acesso a recursos materiais. Esse conjunto de ideias tem sofrido abusos no Brasil, inequivocamente acentuados pelo bolsonarismo, inclusive entre liberais que se consideram antibolsonaristas, o que é curioso. Neste Brasil, vemos se confundirem, em nome do liberalismo, brutalidade com liberdade de expressão, predação com livre mercado, o desprezo pelo coletivo com a responsabilidade pelo bem público.

Neste Brasil, vemos se confundirem, em nome do liberalismo, brutalidade com liberdade de expressão, predação com livre mercado

O que é, então, o liberalismo à brasileira, ou, para não ignorar o rico debate em torno do tema, ao menos a sua expressão mais contemporânea? Um de seus traços marcantes é a instrumentalização da pluralidade. Trata-se de um liberalismo que cede espaço às divergências, mas nelas não enxerga valor intrínseco, por elas não tem apreço, porque, na vida democrática, a pluralidade se traduz em desafios e questionamentos de princípios estabelecidos, normas, maneiras de ver o mundo e de se ver no mundo. A visão pluralista permite olhar o mundo sem impor a ele noções preconcebidas, muitas vezes provenientes de um conhecimento estabelecido. Ela supõe certa disposição para manter a abertura e é, por isso, naturalmente crítica, indisciplinada. 

O apreço pela pluralidade implica abraçar as diferenças e explorar a contraposição de ideias em busca de um melhor entendimento das diferentes posições, aquilo que chamamos de debate público. Já o liberalismo à brasileira entende-se mal com tudo aquilo que não é ou tende ao consenso e rechaça o que não se adéqua às suas hierarquias e concepções, respondendo — por vezes de forma violenta — a possibilidades de transformação de dogmas, preconceitos e ordenações que podem ser insensíveis a diferenças e desigualdades.

Teto de gastos

Se quisermos apreender melhor as peculiaridades do liberalismo à brasileira, podemos nos voltar para o debate em torno do teto de gastos. O Brasil precisa rever esse teto com urgência. Sua revisão é necessária porque vai ser preciso construir espaço para prorrogar o auxílio emergencial, elaborar novas medidas de proteção social e repassar recursos para o Sistema Único de Saúde (SUS) em 2021, pois não haverá vacina para todos de imediato, o Sars-Cov-2, vírus causador da Covid-19, seguirá entre nós, sua transmissão e as internações devem continuar ocorrendo e, principalmente, a doença deixa sequelas que não estão merecendo atenção no momento, mas a seu tempo devem representar custos ao Estado. Precisaremos, também, dar conta dos desafios que temos na área ambiental e na educação, os quais foram multiplicados pela pandemia.

O que fazem economistas que se orientam unicamente pelo conhecimento técnico? Defendem a manutenção do teto de gastos e rejeitam qualquer modificação que possa ser feita nele, pois se orientam não pelo entendimento dos problemas reais, mas pelo conhecimento estabelecido. O que vale mais: manter-se fiel aos princípios estabelecidos ou adotar políticas públicas para viabilizar a vida das pessoas em um mundo que desafia tal conhecimento? Muitos se esquivam dessa pergunta partindo da premissa de que riscos que se materializaram no passado aparecerão novamente, como o de hiperinflação. Muitos ainda se esquivam dessa pergunta porque enxergam nela um chamado a fazer juízos de valor, o que julgam inadequado. Economistas há muito não são estimulados a pensar sobre valores, nem a formular e pôr em debate seus próprios juízos, quando confrontados com diferentes escolhas de política econômica.

Haverá de se abrir uma enorme oportunidade para fazermos imperar os pilares da Constituição de 1988

No mundo que sobrevirá à pandemia em 2021, a percepção que o liberalismo à brasileira tem do mundo e do Brasil será crescentemente contestada e, creio, ficará cada vez mais obsoleta. Haverá de se abrir uma enorme oportunidade para fazermos imperar os pilares da Constituição de 1988 e para recolocarmos em prática o pensamento crítico, aquele livre das amarras que impedem o desabrochar do entendimento. 

Será um ano de transições, sem dúvida. Mas quiçá seja 2021 também um ano de luzes. 

Quem escreveu esse texto

Monica Baumgarten de Bolle

É autora de Como matar a borboleta-azul: uma crônica da era Dilma (Intrínseca).