Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Prazer de cair

Deparo-me com a gradual dispersão do sentido que quero atribuir às minhas frases

10ago2023 | Edição #73

Maurice Blanchot escreveu, na primeira página de O livro por vir, falando na origem do imaginário: 

As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia, que apenas dava a entender em que direção se abriam as verdadeiras fontes e a verdadeira felicidade do canto. Entretanto, por seus cantos imperfeitos, que não passavam de um canto ainda por vir, conduziam o navegante em direção àquele espaço onde o cantar começava de fato. Elas não o enganavam, portanto, levavam-no realmente ao objetivo. Mas, tendo atingido o objetivo, o que acontecia? O que era esse lugar? Era aquele onde só se podia desaparecer, porque a música, naquela região de fonte e origem, tinha também desaparecido, mais completamente do que em qualquer outro lugar do mundo, mar onde, com orelhas tapadas, soçobravam os vivos e onde as Sereias, como prova de sua boa vontade, acabaram desaparecendo elas mesmas. De que natureza era o canto das Sereias? Em que consistia seu defeito? Por que esse defeito o tornava tão poderoso? Alguns responderam: era um canto inumano — um ruído natural, sem dúvida (existem outros?), mas à margem da natureza, de qualquer modo estranho ao homem, muito baixo e despertando, nele, o prazer extremo de cair, que não pode ser satisfeito nas condições normais da vida. 
(Tradução de Leyla Perrone-Moisés. Martins Fontes, 2005)

“O prazer extremo de cair”. É um prazer prévio a toda a normatividade, tal como nada no abandono é normativo. Uma vontade visceral de nos abandonarmos, indisciplinada, que redunda na morte ou na perda de si.

Dançante, a mão que narra já não pertence a um corpo/alma. É uma mão brincalhona à solta, sem dona. E nada do que ela escreve volta a pertencer ao ponto de vista de um sujeito determinado porque se elidiu a diferença entre esse sujeito e tudo o resto. A autora é tudo o que diz, todas as suas personagens, animadas ou inanimadas, ao mesmo tempo que o seu ponto de vista subjectivo não coincide com o de nada ou ninguém a que o texto que escreve aluda, a vertigem em que “Madame Bovary c’est mois”.

Não conheço descrição da aventura da escrita superior a esta em elegância e economia. Este “prazer de cair”, que, por ser “extremo”, tem o abraçar da morte em vista, é o prazer próprio da narrativa, segundo Blanchot, e o ponto em que o gozo de escrever foge ao controlo da mão que escreve, o instante em que cabeça e mão se fundem num ente único, e em que as palavras, passando primeiro a fonemas, depois a signos, depois a riscos sem sentido ou valor, se decompõem e, uma vez desprovidas de todo o significado, passam a falar uma língua malandra só delas, conversando umas com as outras, diante da escritora. 

Lançada no prazer extremo de cair, anos depois, deparo-me, diante das linhas, com a gradual dispersão do sentido que quero atribuir às minhas frases. Escrevo, falando numa flor, “desfolhou a margarida”, e rio-me do que escrevi. É num ponto específico em que aquilo que sou se justapõe completamente àquilo que escrevo e desaparecem as diferenças. Nesse ponto, sou tudo. No mesmo ponto, estou em tudo, desmultiplicada. No ponto em que sou tudo o que escrevo, sou, em simultâneo, uma mulher despedaçada, vejo-me inteira, metamorfoseada no mundo que ergo. E, em simultâneo, sou ninguém.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.