Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

Pretoguês

Continuaremos a ter o idioma clássico, mas o futuro nos diz que a mistura entre o bantu, o português e os crioulos será uma das seis línguas mais faladas no mundo

01dez2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

Quando o termo pretoguês entrou na minha vida, em 1988, trazido com os livros de José Luandino Vieira, estava eu em Benguela, a saborear os meus ainda inocentes dez anos de idade, explorando o fundo do quintal no lar materno, começando a inventar cidades além da minha (inventei, por exemplo, duas cidades asiáticas que alimentaram o meu imaginário de forma infindável). A Suzuka que viu Ayrton Senna vencer o primeiro dos seus três títulos de campeão mundial de Fórmula-1 e a Seul que assistiu perplexa a Ben Johnson correr cem metros em apenas 9,79s e conquistar o ouro olímpico, e também a quase marveliana Brasília rabiscada a lápis por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, que em 1988 ainda eram nomes incógnitos para mim, mas seus edifícios modernistas e amplas avenidas nasciam na minha mente através da promulgação da “Constituição Cidadã”, que marcava o retorno de garantias e direitos fundamentais suprimidos durante a ditadura militar, entre os quais o fim da censura e da tortura e a liberdade de expressão intelectual e de imprensa no Brasil.

Não entendia ainda o que era liberdade de expressão, mas vi o termo entrar no meu mundo naquele ano, com o Palácio do Congresso Nacional e suas cúpulas côncava e convexa, pela mão do meu avô materno, Faustino Epalanga, um homem reservado, de sorriso fácil, um contador de histórias nato, mas um desses misteriosos; um filho do Huambo sobre o qual todas as palavras seriam insuficientes para abraçar toda a complexidade de um homem que dedicou a sua vida para servir o outro, o angolano.

Meu avô foi o maior angolano que tive o privilégio de conhecer. Tinha o desejo de se tornar escritor e lexicógrafo e fazer com a língua Umbundo o que Aurélio Buarque de Holanda fez com o seu Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, e dá-lo de herança aos netos que lamentava ver crescer longe das línguas autóctones da nossa Angola independente, mas a vida levou-o para outros caminhos. Sei disso porque, pouco antes da sua morte, minha mãe ofereceu seus diários e cadernos com apontamentos diversos sobre o seu humilde e lírico caminho à procura do conhecimento. Nele descrevia o processo que o levara a aprender a ler e a escrever pela mão de missionários católicos, o seu interesse pela teologia, as razões que o conduziram — ele, um ex-seminarista — a interessar-se por política, a virar socialista, abraçar a causa do mpla e envolver-se ativamente, enquanto deputado da Assembleia Provincial de Benguela, na governação dos destinos da então pacata comuna da Catumbela nas conturbadas décadas de 1970 e 1980.

Améfrica

Também no ano de 1988, o Rio de Janeiro, que até então era para mim só o Rio do Carnaval, do samba e da bossa nova, passou também a ser a cidade maravilhosa que nos revelou o termo Améfrica pela mão da professora universitária, feminista, pan-africanista, antropóloga e intelectual brasileira de esquerda, Lélia González, que marcou de forma incontornável  o movimento negro feminista brasileiro, e que meu avô Faustino teve a generosidade de inventar para mim, revelando passagens de seus escritos, como esse artigo que tem como título “A categoria político-cultural de amefricanidade”, e que na introdução diz: “Trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação histórico-cultural do Brasil que, por razões de ordem geográfica e, sobretudo, da ordem do inconsciente, não vem a ser o que geralmente se afirma: um país cujas formações inconscientes são exclusivamente europeias, brancas. Ao contrário, ele é uma América africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o ‘t’ pelo ‘d’ para, aí sim, ter o seu nome assumido com todas as letras: Améfrica Ladina (não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no racismo seu sintoma por excelência). Nesse contexto, todos os brasileiros, e não apenas os “pretos” e os “pardos” do IBGE, são ladino-amefricanos”.

Sobre o idioma que nos é comum: o velho Faustino colheu da autora de Festas populares no Brasil uma descoberta deliciosa para todos os detentores de melanina que se debatem com a herança da maior ferramenta de opressão a serviço do colonialismo, a língua. Ao mesmo tempo que, para muitas das nações africanas cujas fronteiras foram desenhadas na conferência de Berlim de 1884–85, as línguas europeias serviram para dividir populações, criando sistemas de classes, extinção de costumes tradicionais em nome de uma emancipação cultural, serviram também para manter a coesão territorial. Mia Couto escreveu: “O idioma português não é a língua dos moçambicanos. Mas, em contrapartida, ele é a língua da moçambicanidade”, e Amílcar Cabral (fundador do paigc, movimento político que declarou a  independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde) afirmou que “a língua portuguesa é a melhor coisa que os tugas nos deixaram”. Meu avô gostava de brincar dizendo “são os nossos espólios de guerra” e que, se tivermos em conta os dados do Atlas da Língua Portuguesa sobre o crescimento demográfico dos países onde o português é língua oficial — centrado no continente africano —, em 2050 serão 395 milhões e, em 2100, mais de 520 milhões, o que fará do português uma das seis línguas mais faladas no mundo.

O futuro da língua portuguesa será brasileiro e africano; trocado por miúdos, o futuro da língua portuguesa será negro. E ainda que a língua de Camões não venha a se tornar o sexto idioma mais falado no mundo, como sonham os nossos políticos e bastonários da língua, ainda que o aumento demográfico nos países de língua oficial portuguesa não venha a traduzir-se no mesmo número de falantes de português, uma coisa será fácil de determinar. Atendendo que em 2100 a população  dos países africanos será de 319.870 milhões e ultrapassará a do Brasil (190.423 milhões): actualmente, são 209.568 milhões de brasileiros face a 58.061 milhões de falantes em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial e São Tomé e Príncipe. E as chances são de que todos esses povos irão falar aquilo que Lélia González chamou de pretoguês: “[…] e que nada mais é do que marca de africanização do português falado no Brasil […], é facilmente constatável sobretudo no espanhol da região caribenha. O caráter tonal e rítmico das línguas africanas trazidas para o Novo Mundo, além da ausência de certas consoantes (como o ‘l’ ou o ‘r’, por exemplo), apontam para um aspecto pouco explorado da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo (e isto sem falar nos dialetos ‘crioulos’ do Caribe)”.

Não tenho dúvidas de que continuaremos a ter o idioma na sua vertente clássica, ocupando os espaços da academia, instituições públicas e demais salamaleques e formalidades como manda o figurino; contudo, o futuro nos diz que essa mistura deliciosa entre as línguas bantu, o português de Sophia de Mello Breyner Andresen, os diferentes crioulos do Atlântico, os diferentes brasis com pitadas de anglicismo aqui e ali, farão do nosso desdenhado pretoguês uma das seis línguas mais faladas no mundo.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.