Coluna

Ondjaki

Deslembramentos

A morte é um lugar estranho

Em Angola há muito humor associado à morte. E muita comida também. Pensar nisso, claro, faz-me pensar em funerais. E, sendo angolano, leva-me a prever boa comida e boa bebida

19maio2023 | Edição #70

uma imagem bela (?) da morte é a da travessia de um rio. dizem que aparece uma canoa com uma figura (talvez débil, talvez natural) que nos vem buscar numa missão derradeira: tirar-nos de uma margem e levar para outra.

dizem também que (essa figura) se pode arrastar como uma cobra lenta ou ser repentina como um soco inesperado ou um furacão. ou uma tempestade de areia que nos sufoca vida adentro. ou ainda, como dizia um amigo meu, “nunca ouvi ninguém elogiar a morte duas vezes seguidas!”

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uma das estórias mais impactantes que ouvi sobre morrer foi-me passada pela escritora ana paula tavares. com o seu olhar brando e a delicadeza de quem vai longe nas lembranças, ela deteve-se por alguns segundos e murmurou-me um segredo: (…).

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a primeira morte que me impactou com intensidade e escarificação talvez tenha sido a de um primo. eu na altura tinha quatorze anos. o meu primo Nitó foi diagnosticado com um câncer terminal. era agosto quando uma tia nos deu a notícia. em outubro o Nitó viria a fechar os olhos. em Luanda, esperámos o corpo. houve missa, para quem era das missas. depois um longo cortejo. muitas motos. muitos jovens. a mim calhou-me sentar na parte mais traseira de um grande toyota. tinha o rosto quase colado ao vidro. transpirava. e ali, quase sozinho, depois de me ter aguentado tantos dias e em tantos momentos, chegou-me uma intensa e triste vontade de chorar. do outro lado do vidro ficava a cidade de Luanda (louca e criativa) que também o Nitó adorava. ele, professor, sobrinho, filho e primo. tinha (ele) 23 anos. o pai dele, carregado por duas pessoas, mal conseguia caminhar no cemitério.

ali me ocorreu: a morte às vezes não separa as pessoas. apenas inaugura um certo vestígio

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um lugar também morre. ou em si, ou para alguém. no dia 12 de outubro de 1975, o meu avô saiu da cidade do Namibe (sul de Angola) para vir a Luanda, a pedido do meu pai (o filho dele, portanto). no dia 13 já o meu avô estava em Luanda a celebrar o seu aniversário, possivelmente à hora do almoço, quando tropas da Unita entraram no Namibe e perguntaram pela casa do comandante Jujú (nome de guerra do meu pai). o pai e a mãe do comandante Jujú estavam em Luanda. pilharam a casa. queimaram coisas no quintal. a mãe do comandante Jujú nunca mais voltou ao Namibe. segundo pude entender, a cidade e a casa tinham morrido para ela. o meu avô ainda voltou lá, anos depois. não sei se ele sentiu que parte do lugar estava morto para sempre. ou se havia modo de ressuscitar um novo lugar para eles.

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certa ocasião passei uns dias em Lisboa. nessa semana, faleceu o meu tio Chico. avisaram-me: o enterro seria no Barreiro, no que chamam em Lisboa de “outra margem” (do rio Tejo). ele e a tia Rosa eram mais do que tios para mim. passei a infância toda na casa deles e com eles. e com os filhos. e com o quintal incrível da casa deles onde mil estórias de ficção se estavam a montar num puzzle que eu, (mais tarde) escritor, haveria de desadivinhar. mil tardes. mil noites. mil estórias humanas e de cariz luandense. talvez tenha sido naquela casa que aprendi a esquecer a fronteira entre História e estória. quando chegámos ao cemitério, a tia Rosa pediu: “fica aqui perto de mim”. deu-me o braço. as duas filhas e o Nando (o filho) vinham atrás. ela, desse modo, tinha me promovido ao estatuto de filho mais novo. como ela dizia na minha infância: “este é o meu caçule”. e era. ao passarmos junto à campa aberta, a tia Rosa murmurou “acabaram-se as viagens”. e foi tudo. ali me ocorreu: a morte às vezes não separa as pessoas. apenas inaugura um certo vestígio.

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algumas vezes falei da morte com o meu pai. do medo e do susto. e de como, na opinião dele, todos precisam de algum modo de a aceitar, de a compreender, de a tolerar, de a adiar. ou como diria o tio Chico: “a morte é uma chatice e está sempre a acontecer”. o meu pai escreveu um livro engraçado que também tem a ver com a morte, chama-se “VaiComDeus”, o nome de uma agência funerária. em Angola há muito humor associado à morte. e muita comida também. pensar nisso, claro, faz-me pensar em funerais. e, sendo angolano, pensar em funerais leva-me a prever boa comida e boa bebida. quando um angolano diz isso dá vontade de rir.

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lembro com carinho da Irene Reis, amiga da minha mãe e minha também. muitas vezes, sobretudo às quinta-feiras, ela ia a três ou quatro funerais. sim, no mesmo dia. eu acompanhava-a às vezes. para mim, confesso, o melhor era a comida e a bebida. não desenvolvi ainda uma teoria inabalável mas há algo n(o clima d)as lágrimas que torna a comida primorosa nos combas (funerais). a energia que embala o choro parece contaminar a bebida com uma maresia poética que ajuda na suave aceitação de quem ouve estórias. (deixo o conselho: se for a Angola e se tiver que escolher entre um casamento e um funeral, vá ao funeral. creio que muitos africanos sabem do que eu estou a falar.)

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um dos causos mais impactantes que ouvi sobre “morrer” foi-me passado pela escritora ana paula tavares. com o seu olhar brando, ela falou-me como se fala dentro de um sonho: lá no Lubango, de vez em quando aparecia no cemitério um homem com um longo casaco militar todo aberto. na pele do peito, em sangue vivo, pregava as suas medalhas de guerra. o homem aproximava-se da campa aberta, as pessoas faziam algum silêncio. gotas de sangue vertical-imperfeito desenhavam lágrimas na parte exposta do seu corpo. ele então dizia em tom muito sério: “estão a morrer pessoas que ainda nunca tinham morrido”.

Quem escreveu esse texto

Ondjaki

Poeta e escritor angolano, publicou Materiais para confecção de um espanador de tristezas (Pallas).

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.