Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Leitora incomum

Há sessenta anos morria Lucia Miguel Pereira, crítica literária que foi uma improvável e discreta transgressora

26nov2019 | Edição #29 dez.19/jan.20

Ensaísta em terra de bacharel, divorcista entre cristãos, conservadora entre progressistas, Lucia Miguel Pereira foi uma improvável e discreta transgressora. Deixou um estudo essencial para a fortuna crítica de Machado de Assis, outro sobre Gonçalves Dias, quatro romances e centenas de ensaios, resenhas e comentários dispersos pela imprensa. Por quase quatro décadas de intensa atividade intelectual, foi um sopro de independência e originalidade na crítica de literatura e cultura.

Em 22 de dezembro de 1959, ela e o marido, o historiador Octavio Tarquínio de Sousa, morreram num acidente absurdo: o avião em que viajavam de São Paulo para o Rio foi atingido, próximo à aterrissagem, por um imprudente piloto que realizava acrobacias num pequeno Fokker da fab. Lucia tinha 58 anos, e o seu testamento, registrado anos antes, foi integralmente respeitado: na falta de Octavio, o único editor póstumo que admitiria, queimaram-se todos os papéis que deixara, de escritos íntimos a trabalhos em andamento. Dentre estes, os originais que seu primo, Antonio Candido, definiria como “um livro alentado sobre a condição feminina no Brasil, em perspectiva histórica”.

É curioso imaginar no que poderia ter dado esse livro. Uma das raras mulheres a se afirmarem intelectualmente numa vida literária machista, leitora onívora e engajada nas discussões de seu tempo, Lucia manifestava eloquentes reservas ao feminismo — para ela “inteiramente alheio às atividades do espírito” e, portanto, estranho à literatura. Nem sequer admitia falar em “conquistas feministas”, atribuindo o êxito de escritoras que admirava, Virginia Woolf por exemplo, à afirmação de “direitos essenciais da pessoa humana, homem ou mulher, artista ou operário”.

Nas tais “questões feministas” residiria, no entanto, o principal interesse por sua obra nesses sessenta anos que nos separam da tragédia no voo da Vasp. Dezenas de trabalhos acadêmicos são o principal testemunho dessas leituras e releituras, em mais um paradoxo na biografia de quem jamais passou pela porta de uma universidade. Sua formação, aliás, em nada prenunciava a trajetória de uma intelectual pública: filha de Miguel Pereira, médico de renome que seria homenageado com o batismo de uma cidade fluminense, foi criada nos moldes de uma tradicional família carioca em que, ainda segundo Antonio Candido, se destacavam pelo menos duas gerações de “grandes leitoras”, suas avós e mãe. Aluna do Sion, moça criada para casar, Lucia definiu-se intelectualmente em estreita relação com o pensamento católico, tangenciou a voga integralista e amadureceu convicta antifascista. Ficaria solteira até os 39 anos, quando oficializou no Uruguai a relação com Octavio, desquitado e impedido de nova união civil no Brasil.

A Lucia que prefiro, a mais inquieta, irregular, luminosa, às vezes imprecisa e frequentemente provocadora, é a ensaísta. Sua sobrevivência tem dívida substancial com a pesquisadora e editora Luciana Viégas, que à frente da sua Graphia reuniu em três volumes parte importante do que Lucia escreveu em periódicos os mais diversos, do Boletim de Ariel, importante revista do pensamento católico em que estreia para valer na crítica, a jornalões como Correio da Manhã, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo, passando por publicações literárias de vida mais ou menos breve.

Juízos firmes

A leitora e seus personagens (1992), Escritos da maturidade (1994) e O século de Camus (2015) demonstram, em 222 textos, as virtudes do melhor ensaio: variedade de temas e enfoques, formulação sempre direta, posicionamentos nítidos, juízos firmes aqui e ali atenuados pela dúvida, raciocínio digressivo, um tanto de humor, outro de ceticismo — que tempera o entusiasmo sem disfarçá-lo de neutralidade.

No início de sua colaboração em Ariel, dois textos não coligidos em livro mostram o tom da ensaísta. Em janeiro de 1932, a crítica a Cabocla, romance de Ribeiro Couto, já começa digressiva e fora dos padrões da revista: “O brasileiro escreve em português, lê em francês e fala em brasileiro. Talvez por isso lhe seja tão difícil pensar”. Segue-se um elogio ambíguo da “pastoral” composta na França e, talvez pelos efeitos da “saudade”, idealizada por um autor que, segundo ela, “apara, conserta, remenda, retoca” os contornos de trama e personagens.

Sobre a edição das cartas de Katherine Mansfield, que lê traduzidas para o francês, prefere emular, na abertura, um efeito que vê como próprio da autora de “Bliss”: “Lembro-me de um dia do último inverno, em que visitei a igreja de santo Antonio. Arrastava-me pela larga escadaria, ruminando o mau humor especial de quem andou fazendo compras. Fazer compras é um dos purgatórios femininos”, narra ela.

A paisagem carioca num dia particularmente glorioso mudaria seu humor, faria ver que estava “presa demais à terra”. E, assim, ao narrar sua experiência, oferece uma chave para melhor entender a autora, virtuose da delicadeza e dos subentendidos: “Nesse deslumbramento, nesse estranho dom de descobrir a harmonia cotidiana, não há um laivo de materialismo. Ao contrário. Apenas, o elemento espiritual mistura-se à vida de todos os dias, faz corpo com ela”.    

Para que se tenha uma ideia do que Lucia enfrentava, basta consultar a revista. Em 1932 Ariel listava 81 colaboradores. Dentre eles, quatro mulheres. Três delas identificadas por seus trabalhos e, também, pela relação com homens mais ou menos notórios — Lucia é “filha de Miguel Pereira”, Marguerite Picard-Loewy, “viúva de um engenheiro civil que trabalhou aqui no Rio e morreu na Grande Guerra”, e Maria Eugenia Celso, “filha do Conde de Affonso Celso”. A quarta, Rachel de Queiroz, escapou da filiação, mas não do patriarcado. Dela se diz: “Ainda não ultrapassou o período da adolescência”.

Excursionista

Lucia Miguel Pereira foi, antes de tudo, uma leitora excepcional, qualidade que não por acaso vê na base do ensaísmo de Virginia Woolf. Para ela, a autora de Orlando “dá a impressão de ter posto de lado sua cultura e o seu espírito de análise, para se fazer apenas uma leitora curiosa e simpática, que goza o livro inteiramente, despreocupadamente, alegremente”. É com esse espírito que Virginia assume um “ar de excursionista”, conduzindo o leitor numa viagem muito peculiar, assim resumida por Lucia num trecho que parece falar de sua própria escrita: “Quando, ao cabo de muito rodar, se chega à conclusão, percebe-se que aqueles desvios tinham a sua razão de ser, que aquelas paradas não eram sem motivos, que, com o seu itinerário aparentemente fantasista, ela traçara o caminho mais seguro através de uma obra ou de uma época, que o guia com jeito de amador era, na verdade, um profissional de mão-cheia. Parte-se com um mero leitor — o seu caro leitor comum — e, de repente, vê-se que ele escondia um mestre”.

O amador que se revela mestre, o mestre disfarçado de amador: eis aí uma das muitas definições do ensaísta que se pode desentranhar de seus escritos — além das que foram formuladas no prefácio à antologia Ensaístas ingleses. Naquele texto, que abre o volume da coleção Clássicos Jackson, ela define e se define de forma irretocável ao afirmar que ensaísta se orienta “mais pelo senso comum, essa mistura de instinto e experiência, do que por leis e regras, pesando a liberdade mais do que a autoridade, sem contudo desrespeitar essa última quando bem assente, conciliando com o espírito de aventura uma prudência realista, evitando com igual cuidado os exageros e a gravidade”.

Fair play

Em O século de Camus, que reúne textos de sua fase final, publicados entre 1947 e 1955, Lucia realiza com plenitude a ideia de fair play intelectual que associa ao ensaio. Escreve sobre Françoise Sagan, uma moda, e Willa Cather, escritora para poucos. Flagra Simone Weil em 1949, seis anos depois de sua morte, examina The Loved One no mesmo 1948 em que Evelyn Waugh o lançou e fala sobre Jean Genet sem ter lido direito — e o faz com propriedade, visando informar, o quanto antes, o “leitor comum”.

Entre Camus e Sartre, fica com o primeiro — “se, mais tarde, alguém quiser saber como era o homem da era da bomba atômica, bastar-lhe-á ler esse escritor conciso e seco. E terá a visão de indivíduos sem ternura, sem vida interior, sem meios de sair de si”. Sartre ela define sumariamente como “filósofo, romancista, dramaturgo e cabotino”, autor de um “grande drama” como As moscas e “principal responsável pela transformação de uma doutrina filosófica em pretexto para sofisticadas boemias”.

Assim como a Virginia Woolf que tanto admirava, Lucia deu corpo à ideia de que o ensaio é francês e o ensaísta, inglês. Do gênero inventado por Montaigne, tira a ironia, o ceticismo e o formidável arsenal de argumentos, digressões e verbos que fazem de pensamento, leitura e escrita um permanente exercício de dúvida, sempre com a marca forte de uma primeira pessoa literária, cuidadosamente construída — pois de espontânea ela não tinha nada.

Da prática anglo-saxã, que disseminou o ensaísmo pelo mundo ao aproximá-lo da imprensa, repete o gesto fundador da mão permanentemente estendida ao leitor, seu próximo. E, é claro, o humor que desmonta as pompas do mundo e de si mesma, como quando se esquiva de considerações sobre a poesia da “geração de 45”: “Não sendo, mercê de Deus, crítica de ofício, não me cabe porém analisar a obra da gente de menos de trinta anos. O prazer ou emoção que me causarem seus versos, posso guardá-los para mim, e ter assim as vantagens da leitura sem os percalços que a desfiguram quando feita de lápis em punho e atenção em riste”.

A esse ensaio, de 1951, Lucia Miguel Pereira batizou “Tentativa de compreensão”. O que parece uma boa síntese para definir o trabalho de uma leitora singular, marcada pela origem comum, no francês em que se formou e tanto cultivou, das palavras “ensaio” e “tentativa”. 

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #29 dez.19/jan.20 em novembro de 2019.