Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

O coletivo imbecil

Astrologia, universidades privadas e livros: como Olavo de Carvalho projetou desde os anos 1990 o que de pior se pensou para o Brasil

25jan2022

A morte de Olavo de Carvalho silencia uma das vozes mais nocivas ao debate público no Brasil. Astrólogo e autodenominado “filósofo”, começou nos anos 1990 uma trajetória de arrivismo intelectual que encontraria no bolsonarismo, esse amálgama de ignorância, ressentimento e truculência, o veículo perfeito para se difundir. Em seus cursos, radicalizou jovens desinformados e brucutus de todas as extrações e idades. Consagrado como guru da extrema direita que vem corroendo a democracia brasileira, deixa um legado de anticomunismo violento, grosseria e negacionismo laboriosamente cultivado em 74 anos de imposturas.

Olavo de Carvalho foi uma criação coletiva. Dela fizeram parte seus ocultos financiadores, os veículos de imprensa seduzidos pelo pseudo-polemismo vulgar e editores de livros que legitimaram as estultices que escreveu­ ­— e, nos últimos tempos, também deram vida editorial a tediosas páginas de irrelevância assinadas por seus epígonos. A todos eles devemos, além da flagrante degradação da vida intelectual, a chegada ao poder de desqualificados que de 2018 para cá influíram diretamente em política externa, educação e cultura.

No início da ultima década do século, Olavo de Carvalho era assíduo na seção de anúncios do Jornal do Brasil, que viria a ser sua primeira tribuna de importância. Em outubro de 1990, conduziu um workshop de astrocaracterologia, “descrição do caráter individual segundo o horóscopo”. No ano seguinte, lecionava sobre “Astrologia segundo São Tomas de Aquino” e, em 1992, ofereceu quatro palestras sobre “O futuro da astrologia”. No ano seguinte começou um curso de “História essencial da filosofia”, que se seguiu, em 1994, ao coruscante seminário “Pensamento e atualidade de Aristóteles”. Era o início de uma nova encarnação.

Em 1996, seria acolhido pela Faculdade da Cidade com seu Seminário de Filosofia. No anúncio publicado no JB pela instituição de ensino carioca, hoje defunta, uma promessa de autoajuda, eivada de charlatanismo: “Aprenda a pensar. Desenvolva o raciocínio crítico em um ambiente propício ao exercício do pensamento”. A mesma universidade lançaria, em 22 de agosto daquele ano, com apoio da Academia Brasileira de Filosofia, O imbecil coletivo, opus magna que mereceria atualizações e acréscimos até alcançar as intermináveis 448 páginas da edição da Record. A editora, que então o prezava como grande pensador, também publicou O mínimo que você precisa de saber para não ser um idiota, volume que o Führer de chanchada ostentava na live em que comemorou sua chegada ao poder.

O polemista

Aqui peço licença para um necessário “eubituário”, esse gênero consagrado pelas redes sociais. Duas semanas depois do lançamento, publiquei no Globo, onde trabalhava como repórter do Segundo Caderno, uma resenha galhofeira de O imbecil coletivo. Olavo enviou um fax quilométrico, direito de resposta que ocuparia umas cinco vezes o espaço dedicado à sua obra. No dia seguinte, sem ao menos responder à contraproposta de edição do texto, fez publicar no JB a íntegra de sua réplica como anúncio pago (pela Faculdade da Cidade). Confesso que “O imbecil do Pires e o meu”, hoje antologizado em O imbecil coletivo, muito me divertiu.

Na época, Olavo ainda não tinha regredido à recente fase anal e tratava os excrementos com mais pudícia. “E após ter assim procurado ferir de maneira intencional a dignidade de um sujeito que ele nunca viu e que nunca lhe fez mal algum”, escreveu ele, “o Pires ainda o acusa de ‘grosseiro’. Certo, certo. O Pires é que é fino. Fino e de porcelana como um urinol do Império.” Olavo, coitado, se mostra magoado com a crítica, e me ataca: “Não havia, até o advento do Pires, qualquer crítica desfavorável a O imbecil coletivo ou a qualquer outro livro meu".

Já assimilado como “o contraditório”, “o polemista”, Olavo se tornou um atleta em rinhas de imprensa promovidas pelo que hoje se chama “pluralismo”. Não satisfeito com espaços editoriais — onde pontificava em qualquer discussão que envolvesse esquerda ou antiintelectualismo — mantinha-se ativo até na seção de cartas, onde deitava indignação pedestre contra consumo de drogas, esquerdismo e pautas que mantinham aceso o udenismo atávico de parte de seus seguidores.

Mesmo assim, ainda houve quem se chocasse quando, em 1997, quatro alunos da PUC-Rio citavam-no como inspiração — “mentor intelectual”, vocalizou um deles — para O Indivíduo, jornal que, em novembro daquele ano, protestava pela realização na universidade de uma Semana da Consciência Negra. Segundo a publicação, o evento depunha “contra a própria raça negra, como se esta fosse composta por pessoas que precisassem desesperadamente de autoafirmação”. O texto prossegue: “A escravidão era comum entre as tribos africanas e todos sabemos que os negros das tribos mais fortes foram cúmplices dos europeus no comércio de escravos. Assim sendo sugiro que os negros que desejam reparação façam árvores genealógicas para ir cobrá-las dos descendentes dos negros escravizadores.”  

“A extrema direita faz escola na PUC”, cravou o mesmo JB no título da reportagem que repercutia os olavistas de primeira hora. Assinada por Claudio Cordovil, a matéria dava voz a dois dos “alunos” de Olavo e submetia O Indivíduo ao filósofo Hilton Japiassu, ao psicanalista Joel Birman e ao cientista político Luiz Eduardo Soares.  Estarrecidos com o que leram e ouviram, os três advertiram sobre as implicações futuras do episódio. Em sua avaliação, Birman pontou para o que, naquele momento, não era óbvio como hoje: “Esta pode ser a ponta de um iceberg de uma coisa muito maior que deve ter ramificações na sociedade brasileira que sequer suspeitamos”.

Em vida, Olavo de Carvalho catalisou o que de pior se pensou e projetou para o Brasil. A morte não o redime e tampouco sepulta suas ideias. Mas pode nos fazer vigilantes para que a farsa não se repita como história.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).