Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

No país do ressentimento

De Bernardo Carvalho a Chico Buarque, passando pelos quadrinhos de ‘Confinada’, a ficção traz as verdades desagradáveis do projeto suicida que o Brasil escolheu

25nov2021 | Edição #52

Em O último gozo do mundo, uma socióloga com veleidades literárias tenta, num futuro próximo, decodificar a própria vida e o Brasil devastados pela Covid durante uma viagem de carro com o filho pequeno. A criança havia nascido em meio ao sobressalto em que ela vive nos últimos tempos: no desarranjo social e emocional da pandemia, a transa impulsiva com um jovem desconhecido, de quem perde as pistas, resultara na gravidez solitária. “Ela esperava”, diz o narrador, “que no final a viagem os contemplasse com uma visão de futuro.”

Anônima como a protagonista da novela de Bernardo Carvalho, a atriz de “O sítio”, um dos oito contos de Anos de chumbo, de Chico Buarque, propõe a um escritor, homem mais velho que conhecera havia pouco, o aluguel de uma casa nas montanhas — onde aguardariam o fim da “peste”. “Era grande a possibilidade de eu me entediar, mas ao nos conhecermos, quando deixei escapar que esboçava um livro de contos, ela disse que eu só tinha a ganhar num recanto ermo e bucólico, propício a atividades intelectuais”, escreve o personagem.

Também isoladas estão Fran Clemente, “influenciadora digital”, e Ju, doméstica. O que as une num apartamento de mil metros quadrados, de frente para o mar, não é sexo ou carência e desespero genuínos, mas a teia de relações perversas entre patroa e empregada. “A Ju não tem família no Rio. E preferiu fazer a quarentena comigo. Melhor aqui que na favela, né?”, diz Fran a seus seguidores. Confinada reúne em livro os quadrinhos que Leandro Assis e Triscila Oliveira publicaram no Instagram, como um folhetim, incorporando à relação das duas o cotidiano recente do país.

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Manda a prudência, e é prudente desobedecer a ela, que se tome distância histórica para tentar destrinchar a realidade da ficção. A avidez por entretenimento estimula o contrário: quanto mais histórias baseadas “em fatos reais” melhor, sendo a literatura, nesses casos, uma etapa em direção à produção audiovisual industrial. Estes três livros mantêm-se, impávidos, equilibrados nesse cabo de guerra, caminhando na corda esticada e desobrigados de escolher uma das pontas.

Dos contos de Chico, mais tradicionais, aos quadrinhos realistas, passando pela prosa estranha-familiar de Bernardo, a tragédia da pandemia serve, na ficção, para magnificar a extensa e profunda derrocada do país. Pouco comparáveis entre si, os autores flagram, em detalhes expressivos, a hedionda refundação do Brasil pelo ressentimento — que é, em última instância, um movimento suicida. “O país conspirava contra si mesmo”, observa o narrador de O último gozo do mundo. “É possível que tivesse conspirado contra si mesmo desde sempre e que a doença fosse seu coração. O que o governo afinal representava às claras era uma sociedade consagrada a espoliar-se até a morte.”

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A miséria desse Brasil desolado tem origem difusa. Dificilmente se explica a partir do udenismo vulgar, moralização da política que une austeros de conveniência e exaltados taxistas. Também não foi inventada pela “elite dos medíocres” que chegou ao poder com os bolsonaristas. Quase não resta dúvida, no entanto, de que nossa desagregação é causa e consequência, emboladas, do rancor e da frustração que, na rotina das redes, turbinam e arruínam o debate público.

Essa dinâmica é exposta e manipulada por Chico Buarque a partir do título de seu livro. A associação, na capa, de seu nome ao clichê surrado para definir a ditadura civil-militar atrai e frustra quem espera uma renovada associação entre a biografia do autor e o período. Ainda que o conto-título se passe efetivamente na década de 70, os demais são variações sobre os fascismos contemporâneos, que se alastram num país que preferiu ser condescendente com seus algozes do passado.

A bordo de um SUV, o miliciano que não diz seu nome saliva para “comer o rabinho” da adolescente que protege. Outros delinquentes como ele destroem rotineiramente uma família. No bairro endinheirado, a moradora de rua vive todo tipo de segregação. No Brasil que desaprendeu a admirar e cultuar Clarice Lispector em textos apócrifos, nem o “grande artista”, autorreferência derrisória, resiste à rede de ódio que o engolfa. Ninguém escapa aos infinitos anos de chumbo.

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Para a protagonista de O último gozo do mundo não há saídas. “Mais de dois anos” depois do início da pandemia, com levas de mortos se sucedendo a confinamentos e aberturas, o “novo normal” é mais radical do que se esperava: “No confinamento, entendeu o paradoxo de um passado indelével que não admite passado, como se o mundo começasse ali. Era o que já anunciava a rede antes da quarentena e que a quarentena chancelou como norma. O passado reconfigurado não mais pela memória mas pela soberba voluntariosa da simultaneidade”.

Se apagou o passado, o presente contínuo também inviabiliza qualquer projeto para o futuro. Na previsível desorientação, cada um busca por si o tal “último gozo”, individualismo feroz em que a ideia de “meu país” não representa o coletivo, mas a predação do mundo para a satisfação particular. Se o país é meu, faço com ele o que quiser — parecem dizer os brucutus. Como se vê, trata-se menos de distopia, essa palavra desgastada, do que de um assustador realismo.

Ao definir sua novela como “uma fábula”, Bernardo Carvalho refere-se menos ao enquadramento num gênero literário do que à forma que sua personagem encontrou para contar, ao filho e a si mesma, o inominável que estão vivendo. “A história estava suspensa, transformara-se em fábula”, observa ela. “Não havia outra possibilidade narrativa, o que permitia as versões mais diversas, conflitantes e simultâneas, mas não a contradição. As conexões tinham sido abolidas.”

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Confinada combate com energia outro dos efeitos colaterais de um país decaído: a eleição da platitude como visão de mundo e do clichê como argumento. A simplificação como norma é um prato cheio para o classismo e o racismo, interseção de abjeções que estrutura o mundo que Leandro Assis e Triscila Oliveira decalcam na típica classe média alta carioca, um dos megafones do que há de pior no Brasil de hoje.

Fran, a blogueira “gratiluz”, se vê sozinha na cobertura com piscina — o marido está isolado na Itália, primeiro pela pandemia, depois pela polícia, ao se recusar a cumprir medidas sanitárias. Dispensa, com meio salário, duas das três “funcionárias”, eufemismo corporativo para a estrutura escravocrata que sustenta. Ju, a terceira, topa ser companhia de aluguel, mas exige como remuneração extra o que Fran deixa de pagar às outras — para repassar a diferença às colegas, igualmente exploradas e massacradas pelo preconceito.

Numa festinha para amigos tão detestáveis quanto ela, Fran se contamina. Isolada num quarto que é maior do que a casa em que Ju vive com a mãe e a filha, assiste por câmeras de segurança às pequenas revanches de sua companheira de confinamento — prelúdio, mal sabia ela, de uma insubordinação redentora.

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Num debate público arruinado, em que “narrativa” se tornou sinônimo de mentira e as supostas questões, formatadas por anglicismos mequetrefes, são ou não “sobre” alguma coisa, há boa chance de a criação ficcional reafirmar-se como lugar de constatações desagradáveis. O último gozo do mundo, Anos de chumbo e Confinada tangenciam o real para lançá-lo numa crise que inviabiliza qualquer solução fácil, do artificialismo hipster à ego trip blasée. Como observa o narrador de Bernardo Carvalho ao descrever a alegria agoniada de uma festa, era preciso “voltar a viver, com mais intensidade, mas agora com a consciência da perda, para não perder de novo”.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.