Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Depois de Chico, Aldir

A entrega do prêmio Camões e a nova rua do Rio de Janeiro iniciam reparação às vítimas do colecionador de joias sauditas

04maio2023 | Edição

Notório colecionador de joias sauditas, o 38º presidente do Brasil se absteve de sujar com seu jamegão o diploma do prêmio Camões concedido a Chico Buarque. Não hesitou, no entanto, em imprimir as digitais de inépcia e negacionismo em mais de 700 mil atestados de óbito de cidadãos brasileiros que, como Aldir Blanc, foram vitimados pela Covid.

Chico fez da cerimônia de diplomação do Camões, realizada em Lisboa em 24 de abril, um desagravo “a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”. A quase 8 mil quilômetros do Palácio de Queluz, mais exatamente na Muda, enclave da Tijuca profunda, o Rio de Janeiro ganha a alameda Aldir Blanc no 4 de maio que marca exatos três anos da morte deste outro compositor e escritor que soube sintetizar o fardo e a festa, por vezes insuportáveis, de nascer e viver nessas latitudes.

A distância literalmente oceânica entre uma e outra cerimônia, entre a pompa de Estado e o luxo da rua, não hierarquiza as homenagens. Ambas lembram a urgência de reparação aos quatro anos de laboriosa destruição de valores levada a cabo pelo modelo de skincare, sua família disfuncional e a corte perversa que o cerca.

Aldir Blanc viveu a primeira metade do governo fascista tomado pelo horror, pela preocupação com o futuro

As sequelas são múltiplas. Foi naquele momento, não nos esqueçamos, que se ressuscitou o fantasma pueril de uma “ameaça comunista”. Quando se achou por bem nomear desqualificados para desmontar a política cultural pública. Período em que as mortes de gênios como Monarco, Moraes Moreira ou João Gilberto foram ignoradas. Momento em que o próprio Chico, a quem se concedeu a mais importante premiação da língua portuguesa, teve posta sob suspeita a autoria da própria obra. Foi o tempo do ressentimento.

Aldir Blanc viveu a primeira metade do governo fascista tomado pelo horror, pela preocupação com o futuro das filhas, netos e bisneto, pela preocupação coletiva essencial no que escreveu. Psiquiatra, conhecia medicina o suficiente para temer com propriedade a pandemia e os pilantras negacionistas que, com o obséquio de parte da grande imprensa, tiveram generosa amplificação de suas teorias genocidas.

Batizados

Batizar com seu nome o conjunto de medidas que possibilitou auxílio mínimo aos trabalhadores de cultura foi homenagem justa, ainda que tenha deixado um travo amargo. Assim como a Lei Paulo Gustavo, que a sucedeu, a Lei Aldir Blanc fez com que os nomes de dois grandes artistas, ambos vítimas de um Brasil hediondo, fossem invocados por gente que jamais deveria pronunciá-los.

A alameda Aldir Blanc é curta. É marcada por um totem conjugando placa esculpida por Mello Menezes, amigo íntimo de Aldir, e texto de outro dos companheiros fiéis e amados, Luís Pimentel. Fica no centro do território real e mítico de suas criações: por aquelas ruas circulam seus personagens, cada um levando em si o universo de ternura e abjeção a que recendem crônicas, sambas, boleros, marchas e canções.

A alameda Aldir Blanc é curta e fica no centro do território real e mítico de suas criações

O Aldir-monumento, e é tão estranho pensar nele assim, veste camisa social aberta no peito, como ele usava, e traz a mão no coração, como se ouvisse um hino nacional ou, dá na mesma, a “Canção da manhã feliz” que adorava cantar ao final de longas e alucinadas noites de boemia. O Aldir-monumento não assistirá o nascer do sol da orla como Drummond, Clarice ou Jobim. Apropriadamente, a alameda fica a poucos passos das margens do rio Maracanã.

A cada vez que os fascistas zurrarem mais alto, que um cretino tentar ensinar a esquerda a ser esquerda, que um gângster for tratado como líder religioso, recomendo que os atingidos se dirijam ao mais novo endereço do Rio de Janeiro. Faz tempo que temos Paris, mas de agora em diante sempre teremos a alameda Aldir Blanc. 

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

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