Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Razões do cancelamento

Na dinâmica de quem cancela e é cancelado é leviano desconsiderar a hierarquia das forças

13ago2020

Num ambiente intelectual em que a extrema direita, com mais de cem mil mortes nas costas, é frequentemente comparada à esquerda “com sinal trocado”, pouco espanta que se bote no mesmo saco de uma “cultura do cancelamento” imundas campanhas de difamação e refregas ideológicas que se dão na terra sem lei das redes sociais. Foi esse tipo de equivalência que ajudou a cavar o buraco em que estamos.

Em matérias sensacionalistas e trololós sobre polarização e liberdade de expressão, os bem pensantes advertem sobre a barbárie do que generalizam como “cancelamento”. Vale tudo para demonizar, indistintamente, quem participa do debate público sem beija-mão ou rapapés – e vitimizar a priori quem é admoestado no conforto da aprovação. 

O que se quer naturalizar, por repetição perversa, como “cultura do cancelamento” envolve tanto violência desprezível como embates consequentes. É conveniente fazer de Steven Pinker uma Joana d’Arc do Twitter e esquecer que o #MeToo ajudou a botar Harvey Weinstein em seu lugar, ou seja, o xilindró.

Não por acaso cito exemplos americanos: mais uma vez assimilamos de forma pouco crítica os termos em que se discute a emergência de dinâmicas políticas até então fora do script. Nos anos 1990, antes portanto de as redes turbinarem os debates, intelectuais aduaneiros serviam à brasileira o prato do “politicamente correto” – rótulo que os conservadores americanos exportaram como sinônimo de intolerância. Militâncias exigindo atitudes, palavras e legislação que traduzissem respeito às diferenças foram então deliberadamente confundidas com extremismos avulsos e radicalismos chiques na denúncia de uma patrulha, fantasiosa em sua onipotência, contra valores essenciais da democracia.

As mudanças que ocorreram de lá para cá atestam miopia ou má-fé desses críticos: parte substancial das reivindicações então incipientes, ridicularizadas como “politicamente correto”, viraram pauta do debate público e até lei. Ao que se saiba, ninguém foi silenciado na busca por representatividade. 

Responsabilização

A treta do cancelamento foi formatada, na versão prêt-à-porter, por duas cartas-manifesto. A primeira, publicada na Harper’s, é mais genérica do que manifesto de frente ampla e foi propagandeada por unir J. K. Rowling e Noam Chomsky. Direto da encruzilhada entre Hogwarts e a Escola de Frankfurt, traduz a “preocupação” dos signatários com “um novo conjunto de atitudes morais e engajamentos políticos que tendem a enfraquecer nossas normas de debate aberto e tolerância de diferenças, em favor da conformidade ideológica”.

Para resumir, atribui-se uma vez mais ao debate desabusado – e, é claro, cheio de problemas e sutilezas – um poder desmesurado de “calar” diferenças, de “cancelar”. E, surpresa!, adverte que a fúria dos que lutam por representatividade alimenta a direita trumpista – atualizando a tese, essa tão brasileira, de que minissaia explica estupro.

“Em nenhum lugar seus signatários mencionam como há gerações são silenciadas vozes marginalizadas no jornalismo, no mundo acadêmico e no setor editorial” argumenta a carta-resposta. Publicada pelo The Objective, site que monitora questões de representatividade na vida intelectual, o documento prefere analisar exemplos concretos a exibir um caderninho de autógrafos de celebridades. E, ao lembrar de equívocos do “cancelamento”, aponta para a complexidade dessa dinâmica.

Há poucas discussões sobre responsabilização mais espinhosas do que as propostas por Primo Levi. Em Os afogados e os sobreviventes, que publicou pouco antes de se suicidar, em 1987, ele propõe a difícil caracterização, no contexto extremo de Auschwitz, de uma “zona cinzenta” que turva as oposições claras numa das experiências mais traumáticas da humanidade.

Ao aludir a uma “analogia paradoxal entre vítima e opressor”, Levi reafirma a honestidade intelectual que nunca lhe faltou e que hoje rareia: “os dois estão na mesma armadilha, mas é o opressor, e só ele, quem a preparou e fez disparar, e, se sofre com isto é justo que sofra; e é iníquo que com isto sofra a vítima, como efetivamente sofre, mesmo numa distância de decênios”.

Na dinâmica de quem cancela e é cancelado, é leviano desconsiderar a hierarquia das forças. Muitos dos que agora gritam contra a alegada destruição de reputações não tugiram nem mugiram quando, em 2013, manchetes sensacionalistas ajudaram a mandar para a cadeia manifestantes rotulados como “vândalos” – um primoroso exemplo de cancelamento.

Deles também não se ouviu palavra sobre publicações que embalaram notícias como memes de campanhas por um impeachment de conveniência ou a promoção de heróis anticorrupção – silenciando sistematicamente o contraditório.

Reparem: quem mais fala em “cancelamento” e em “cancelar” não são aqueles a quem hoje se atribui tais poderes, mas os que há tempos sabem como conjugar, para valer, com eficácia comprovada, o verbo da vez.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).