Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Quando o juiz é o policial

Em ensaio de 1973, Antonio Candido parte da literatura para denunciar a simbiose perversa entre Justiça e polícia

19jun2019

Agora que, é oficial, o Brasil tem um enorme passado pela frente – salve, Millôr – um número do Opinião de 1973 traz uma das mais agudas análises de 2019. “A verdade de repressão”, ensaio de Antonio Candido discretamente publicado em três colunas, sem ilustração, nos dá pelo menos duas notícias, uma histórica, outra contemporânea. A primeira testemunha o momento em que intelectuais não se refugiavam na chamada “alta cultura” para justificar isentismo e proclamar suposta independência política. A outra, mais importante e consequência daquela, junta Balzac, Dostoiévski, Kafka e Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, o filme de Elio Petri, para discutir o papel da polícia e do Judiciário em sociedades que se pretendem democráticas.

Naquela terceira semana do ano, janeiro pela metade, a Rolling Stone brasileira fechava as portas – conforme constatava Luiz Carlos Maciel, seu editor, “a transação do rock é culturalmente revolucionária, mas é completamente ligada à estrutura capitalista americana”. No Rio de Janeiro, toda sexta-feira uma roda reunia em Botafogo Clementina de Jesus, Nora Nei e Beth Carvalho em “para salvar o samba do processo de turistização e da invasão de ritmos estrangeiros”. Em Brasília, debatia-se um novo Código Civil e uma Ginger Rogers já fora dos holofotes era contratada pela ditadura como garota-propaganda do Brasil nos Estados Unidos.

Depois de proibir a circulação da Playboy, Alfredo Buzaid, ministro da Justiça de Médici, manda recolher uma edição de gravuras eróticas de Picasso com base na “defesa da moral e dos bons costumes”. Caetano Veloso era onipresente com o lançamento, num espaço de poucas semanas, de Caetano e Chico Juntos e ao VivoAraçá Azul e de um compacto simples com “Coisas do destino” e “Frevo Novo”. 

Menos de um ano depois de a Anistia Internacional ter contabilizado 1.081 casos de tortura e 472 denúncias apontando torturadores no Brasil, Antonio Candido lembra em seu breve ensaio que repressão não é exclusividade de ditaduras. Já em Balzac, “que percebeu tanta coisa”, a polícia deixa de ser direta e brutal como os regimes de exceção e, “mais hermética e requintada”, espalha-se pela sociedade numa rede de delatores. O único limite, observa Candido, é não transgredir um “requisito intransigente” da burguesia, desde então inegociável: “a tarefa policial deve ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais a sensibilidade dos bem-postos na vida”.

Se no Dostoiévski de Crime e castigo acusador e acusado fundem-se num cadinho de culpabilização e punição, Kafka será responsável, sobretudo em O processo, pelo mais bem-acabado retrato da repressão no Estado moderno. Na imaginação assombrosa daquele que para Brecht foi “o único escritor verdadeiramente bolchevique”, as forças policiais tornam-se inseparáveis das instâncias de Justiça, e esta assume “cada vez mais um aspecto de polícia”. Nesta concepção de mundo, reprimir “adquire um sentido transcendente” e passa a ser “sua própria finalidade”. 

O pesadelo kafkiano não é absurdo ou fantasioso; ao contrário, resulta realista e bem concreto. Afinal, observa Candido, “a polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de motivos, mas apenas de estímulos. E uma vez em funcionamento não pode mais parar, por que a sua finalidade é ela própria”.  Neste frisson repressor, suspeição não carece de prova e, sintetiza ele, “a materialidade da culpa perde sentido”.  

A função dessa polícia-justiça, ou justiça-polícia que não diz respeito apenas à literatura, é “construir a verdade do outro para poder manipular o eu do seu paciente”, ou seja, pressionar e ameaçar a presa da vez até que ela se molde e identifique com o culpado necessário naquele momento, o “outro” da vez. Os objetivos dessa operação se traduzem na variedade e na gradação dos substantivos “colaboração, submissão, omissão, silêncio”.

Em 1980, “A verdade da repressão” seria recolhido pela primeira vez em livro, a coletânea Teresina, etc..  Nesta edição e na valiosa Bibliografia de Antonio Candido, de Vinicius Dantas, dia e mês da publicação, 15 de janeiro, são indicados corretamente, mas em vez de 1973, credita-se 1972 – ano em que o Opinião começa a circular, mas apenas em outubro. No final das contas, o lapso faz pouca ou nenhuma diferença. Assim como os 46 anos que nos separam do ensaio mantem intocados o frescor e a atualidade da análise. Pois o Brasil insiste, perversamente, em desmoralizar a história. 

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).