Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

O fascista da esquina

Dois livros — um de Sartre, sobre o antissemitismo, outro de Adorno, sobre a personalidade autoritária — nos ajudam a compreender como Bolsonaro foi possível

17jun2020

Enquanto esperamos que o governo preencha todos os requisitos exigidos por rigorosos intelectuais e comentaristas para que dele se possa declinar o verdadeiro nome, o fascismo vai bem, obrigado. Corrói a céu aberto a democracia e, insidiosamente, a humanidade dos que elegeram e ainda apoiam o Führer de chanchada. Nem falo dos melancólicos coadjuvantes do Domingão do Cavalão ou dos funcionários do curralzinho do Alvorada. Mais difícil é pensar em simpáticos cidadãos, aparentemente inofensivos, que invocando “falta de alternativa” fizeram o que fizeram nas urnas — e ainda hoje se sentem representados pelo que elegeram.

Pergunta parecida se fez o mundo diante das ruínas físicas e morais da Segunda Guerra Mundial. Como Hitler e Mussolini foram possíveis? Como um dia se achou razoável apoiá-los e elegê-los? Que difícil escolha teriam enfrentado seus eleitores? Se os momentos históricos não se espelham, há mais semelhanças do que se poderia desejar entre cidadãos que, num tempo e noutro, abraçam valores e práticas fascistas. Não importa se são trinta ou trezentos, ridículos ou ameaçadores, se usam capuz branco ou camisa verde-e-amarela, se bebem leite ou cloroquina: uma única voz que prega o ódio é ou deveria ser motivo de inquietação — e alvo de medidas legais.

Por caminhos tão diferentes quanto suas personalidades e projetos intelectuais, Jean-Paul Sartre e Theodor W. Adorno tentaram entender, em cima do lance, a lógica de homens e mulheres que rascunharam no cotidiano os grandes murais da abjeção. Em Reflexões sobre a questão judaica, o autor de A náusea buscou tipificar, em 1946, o protótipo do antissemita. Quatro anos mais tarde, Adorno assinaria com pesquisadores da Universidade de Berkeley os Estudos sobre a personalidade autoritária (Unesp), que pretendem explicar a propensão a aceitar, normalizar e defender ideias e práticas antidemocráticas.

Os livros são de diversas formas incomparáveis. Objetivo e inflamado como os bons panfletos, o de Sartre tem origem no “Retrato do antissemita” que publicou em dezembro de 1945 na Les Temps Modernes, revista que acabara de fundar e seria sua principal tribuna. Três outros textos foram acrescentados para formar um livrinho inquietante, ainda que desprovido de rigor histórico ou teórico. “Eu escrevi o que pensava. A partir de nada, a partir do antissemitismo que eu queria combater”, disse ele em sua última entrevista.  

Já as pesquisas de Adorno, Else Frenkel-Brunswik, Daniel J. Levinson e R. Nevitt Sanford levaram cinco anos e envolveram mais de 2 mil entrevistados na reunião de evidências para descrever quem sucumbe ao autoritarismo. A dedicação aos rigores do método não impediu que, na primeira edição de Estudos sobre a personalidade autoritária, de 1950, os autores reconhecessem o mérito do filósofo francês. “Só tivemos acesso ao brilhante ensaio de Sartre depois que tínhamos concluído nossa pesquisa e nossa análise”, escrevem numa honrosa nota de rodapé. “É para nós notável que seu retrato fenomenológico se pareça, tanto na estrutura geral quanto em inúmeros detalhes, com a síndrome que lentamente emergiu de nossas observações empíricas e análises qualitativas.”

Críticos do porte de Hannah Arendt fizeram sérias restrições a Sartre, apontando a falta de uma discussão profunda da cultura e identidade judaicas. Nesse que é o ponto fraco do livro residiria, no entanto, sua força paradoxal. O nível de generalidade na descrição do antissemita com quem Sartre esbarrava em Paris terminou por aproximá-lo dos cidadãos americanos a que Adorno aplicou a famosa Escala F — um questionário que visa a mensuração possível do tamanho e alcance do fascistinha que habita o coração da gente de bem. Ambos são antepassados dos que, quase oitenta anos depois, saem dos bueiros a nossa volta.

O antissemita

“Impermeável ao raciocínio e à experiência”, o antissemita de Sartre — e o nosso intolerante — não tem interesse na verdade. O diálogo é inútil: no lugar do raciocínio, ele projeta “suas certezas intuitivas no plano do discurso”. Certezas essas que nascem em valores como a pátria forte (e repressora), a família heteronormativa ou a prevalência de brancos sobre todos os não brancos. Assentados na “permanência da pedra”, têm consciência da fragilidade de seus pontos de vista e não se esforçam para prová-los — os outros que lutem, pois para eles não se trata “de persuadir por bons argumentos, mas de intimidar e desorientar”. A estratégia daquele que opta por “ser terrível” nos é familiar: “ele vê nos olhos dos outros uma imagem que é inquietante, que é a sua, e passa a moldar seus gestos e suas palavras a essa imagem”.

Uma única voz que prega o ódio é ou deveria ser motivo de inquietação — e alvo de medidas legais

O ódio ao judeu é também o ódio à tradição intelectual que ele representa. Anti-intelectualista, o antissemita, como os minions, orgulha-se de sua ignorância. Não pretendem subjugar por qualidades próprias o inimigo que inventaram — seja ele judeu, negro ou “a esquerda”. Odiar é verbo que se conjuga em comunidade, na “sociedade instantânea” que, lembra Sartre, se forma em torno de linchamentos ou escândalos. “Incapaz de entender a organização social moderna”, escreve o filósofo, “ele tem a nostalgia dos períodos de crise em que a comunidade primitiva reaparece subitamente e chega à sua temperatura de fusão”.

O antissemitismo se manifesta como um “esnobismo do pobre”. A pobreza de espírito é análoga à precariedade material, já que a intolerância prolifera com mais facilidade numa classe média decaída, que consome bens e ostenta símbolos associados aos mais ricos para reforçar a distinção dos mais pobres. Esses despossuídos têm como único patrimônio o ressentimento, muitas vezes expresso em vitimização — quando, por exemplo, o antissemita denuncia o judeu por roubar seu trabalho ou o cidadão de bem se diz usurpado por políticas de cotas. Perversamente, essa lógica é tranquilizadora: haveria sempre algo a cobiçar nos valores e bens dos que se querem bons.

Em Estudos sobre a personalidade autoritária, que também parte do antissemitismo, esse personagem complexo ganha filigranas e, nas palavras de Max Horkheimer, o status de “uma nova espécie antropológica”. Distinto do fanático clássico, observa o amigo e parceiro de Adorno na introdução ao livro, o novo animal na floresta é puro paradoxo: “Ele é ao mesmo tempo esclarecido e supersticioso, orgulhoso de ser um individualista e com medo constante de não ser como todos os outros, zeloso de sua independência e inclinado a se submeter cegamente ao poder e à autoridade”.

A chamada “personalidade autoritária” resulta, portanto, de combinações sempre originais entre componentes ideológicos e a experiência de cada um, entre fatores sociológicos e psicológicos. No registro caricato, pode-se imaginar um torturador vegano que luta em defesa dos animais. Mais próximos de nós estariam o pai de família amoroso, dedicado e armado até os dentes e a senhora piedosa, magnânima, que até tem empregados negros.

Nas enquetes, os entrevistados são pontuados na intensidade com que concordam ou discordam de afirmativas genéricas. Expressões como “racista”, “fascista” ou “antissemita” foram evitadas para não inibir respostas — afinal, como bem sabemos, fascista odeia ser chamado de fascista. “Obediência e respeito pela autoridade são as virtudes mais importantes que as crianças deveriam aprender” é uma das proposições. Dentre outras estão “nenhum insulto à nossa honra deverá jamais ficar sem punição” ou “toda pessoa deve ter uma fé profunda em alguma força sobrenatural acima de si, à qual ela é fiel e cujas decisões não questiona”. 

Escala B

As questões foram enfeixadas nas nove categorias da Escala F — que são subsídios interessantes para estabelecer uma “Escala B”.  “Convencionalismo”, a mais fundamental, aponta para os vínculos entre preconceito e adesão acrítica a valores e padrões da classe média. Os nela enquadrados relacionam-se diretamente com duas outras, “submissão autoritária” e “agressão autoritária” — a primeira corresponde à “necessidade emocional exagerada e generalizada” de obediência a qualquer autoridade, do pai ou ditador; a segunda, à “tendência a vigiar e condenar, rejeitar e punir pessoas que violam os valores convencionais”.

“Anti-intracepção” é o termo que descreve a reprovação da vida reflexiva e especulativa, marca dos inimigos da psicanálise ou dos que, por exemplo, defendem o primado da técnica sobre as humanidades. Os que têm alta pontuação em “superstição e estereotipia” tendem a atribuir seus reveses e seu destino a forças superiores. “Poder e dureza’’ descreve os que vivem e veem o mundo a partir de relações de força e dominação, numa interseção com a rubrica “destrutividade e dinismo”, útil para entender a agressividade como padrão de ação e a hostilidade ao que é humano — dentre estes estavam os que na época consideravam “exagero” as atrocidades nazistas. O item “projetividade” é genérico e descreve tanto a crença em teorias da conspiração quanto a certeza do ataque iminente de “inimigos” imaginados. Por último, mas não menos importante, “sexo” indica a obsessão que permeia todos os estratos.

É fascinante acompanhar as infinitas combinações de todos esses itens e o reconhecimento, em cada uma delas, dos tipos que a partir de 2013 ganharam contorno cada vez mais nítido no Brasil. As redes sociais ressaltam, em sua ambivalência, um dos eixos fundamentais da personalidade autoritária, a tentativa de racionalizar seus preconceitos para si e para os outros a partir de interpretações e raciocínios tão lógicos quanto improváveis. Nada que não se confirme pela difusão das fake news, que conferem status supostamente “objetivo” às projeções dos valores e comportamentos antidemocráticos.

Limitados por uma baixa capacidade de abstração, os cidadãos predispostos ao autoritarismo trocam de bom grado princípios como “liberdade” e “cidadania”, para eles vagos, por recompensas imediatas. É disso que se beneficiam as lideranças autoritárias, bem como dos variados eufemismos que se usam para descrever práticas e valores de extração fascista — meu favorito é o afetado “iliberal” para definir um governo que atenta dia e noite contra os princípios democráticos.

Está na educação, é claro, o antídoto forte para coibir o caráter autoritário — no combate incansável aos estereótipos, à violência real e simbólica, ao conformismo e à obediência pura e simples. Num nível mais imediato, argumentam Adorno e seus colegas, são inúteis os apelos à racionalidade e à empatia para enfrentar quem cultiva o irracional e não se dispõe a experiências sem os antolhos do preconceito.

O que se há de fazer — e deveríamos ouvir um livro publicado há setenta anos — é “apelar para que sejam efetivas sua convencionalidade e sua subserviência à autoridade”, ou seja, constrangê-los com a lei. E, também, utilizar todos os meios institucionais para fortalecer as minorias que deles costumam ser alvos. Não se discute com fascista — age-se contra ele, de preferência aplicando os princípios de ordem legal que ele tanto diz apreciar. “Não podemos supor que o tolerante só seja recompensado no céu”, diz Adorno. Justiça é o que se faz aqui. E agora. 

O colunista escreve quinzenalmente no site da revista dos livros.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).