Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Em defesa do indefensável

Surge um intelectual Nutella para mostrar que nem só de pão com leite moça amassado por Olavo de Carvalho vive o bolsonarismo

04jun2019

A era Bolsonaro abriu novas fronteiras para o pensamento de Fernando Schüler. O professor da cátedra Palavra Aberta, do Insper, vem fazendo de sua coluna na Folha de S.Paulo um lenitivo para governistas em busca de verniz intelectual, até então provido apenas pelas vulgaridades do cartomante da Virginia. Schüler dá suas tuitadas, mas é cético em relação ao que desdenha como uma “democracia digital”, que simples e tão somente nos turvaria a vista. Para ele, a grita contra as ignomínias diárias, os protestos contra os elogios da violência e a boçalidade emanada do Planalto reverberam nas redes como puro exagero, intriga da oposição. Quem critica, garante, é porque perdeu. E não se conforma com a pujança da democracia brasileira.

Entusiasta do empreendedorismo, Schüler viu uma janela de oportunidade depois que, como bem notou Sergio Augusto no Estadão, José Padilha foi rechaçado como a Leni Riefensthal de Jair. A vaga de áulico ora disponível tinha perfil bem definido, talhada para alguém como ele: bem informado, culto, de escrita elegante e modos ponderados. Na descrição do cargo, uma função bem específica: dar expressão pública a um bolsonarismo intelectual nutella, em tudo e por tudo oposto à vertente dominante, os pão-com-leite moça formados na escolinha virtual de filosofia escatológica.

Schüler é o homem certo no lugar certo, um experimentado sommelier de fragrâncias intelectuais. Assina a curadoria do Fronteiras do Pensamento, projeto que desde 2006 traz grandes intelectuais públicos ao Brasil para conferências regiamente pagas destinada a quem pode e se dispõe a desembolsar, pelo pacote da temporada em curso, entre R$844,38 e R$ 2.695,00. Por pessoa. Um empreendimento, como se vê, democrático, que se adequa ao gosto do freguês: seu variado cardápio já ofereceu do marxismo-raiz de Fredric Jameson ao simpático populismo de direita de Mario Vargas Llosa.  

O que interessa, no entanto, é o pensamento vivo do professor Schüler. Perspicaz, orgulha-se de jamais confundir “a chamada agenda conservadora, defendida pelo atual presidente, com alguma ameaça à democracia”. Equilibrado, diz não ter caído na esparrela de que “as simpatias do atual presidente pela ditadura militar representassem, por si só, um risco à democracia”. Em sua ótica bem pensante, as variadas manifestações de barbárie estimuladas pelos fãs do finado MC Reaça, da escalada de agressões homofóbicas e feminicídios às patacoadas da ministra pastora, são irrelevantes diante do que realmente interessa: as reformas históricas e revolucionárias que nos aguardam no horizonte.

Com o devido perdão ao leitor, transcrevo sua ode a um superministro:  “Trata-se de uma visão do Brasil. Uma recusa do ethos paternalista e protetivo que marca o Estado brasileiro, desde os anos 30, em favor de uma cultura propensa ao risco, fundada na liberdade de escolha, no mérito e responsabilidade individual. Seria Paulo Guedes, e não Fernando Henrique, a fechar gloriosamente o longo ciclo da era Vargas”.   

De caso pensado, concede que atacar a educação numa “guerra cultural” é um pouco demais. Afinal, não pega bem entre seus pares e até pode prejudicar parte importante de suas atividades. Mas não descarta que a escroqueria da escola sem partido tem lá seu fundo de razão. Em 2015, nos brindou com uma passagem de romance de formação, narrando sua conversão política como uma apostasia:

“Estudante, em Porto Alegre, ainda me lembro quando conheci, na virada para os anos 90, os dois primeiros jovens ‘liberais’. Observei-os como aves raras, e os achei mais cultos e menos dogmáticos do que quase todos os meus amigos da ‘esquerda’. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Percebi que a doutrinação, na universidade, havia produzido uma limitação intelectual importante, a toda uma geração. E que era preciso recuperar o tempo perdido”.

Qual um Proust ideológico, o jovem Fernando, não se pode negar, correu atrás do prejuízo. Hoje se quer à imagem de um Mark Lilla, que ano passado recebeu em seu sarau intelectual. Mas basta passar os olhos pelos escritos do professor de Columbia para perceber que suas inclementes bordoadas na esquerda e no identitarismo, sobretudo no recente O progressista de ontem e do amanhã, vão de par com uma recusa veemente de aberrações como a que governa seu país – o que seria, convenhamos, mais do que inspiração, uma boa influência para o intelectual gaúcho.

Falando grosso com a oposição e manso com a situação, o Schüler que eventualmente bate no projeto Truculência Brasil, ou melhor, faz reparos ao governo democrata do Jair, comporta-se como um revoltado a favor, aquele que faz pose de morder para soprar melhor. Mas isso passa. Arnaldo Jabor também já foi assim.

Nota do editor: a Folha de S.Paulo e o projeto Fronteiras do Pensamento, citados neste texto, são parceiros da revista Quatro Cinco Um, o que não interfere na opinião dos colaboradores.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).