Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

O patriarcado escrito na pedra

Geógrafa canadense reflete sobre como a experiência das mulheres nos espaços urbanos, pensados a partir das necessidades masculinas, pode ser mais justa

01mar2021

Em Um teto todo seu, o espaço privado e reservado figura como condição necessária apontada por Virginia Woolf para que mais mulheres se tornassem escritoras. “Se uma mulher escrevia, tinha que escrever na sala de estar com todos os demais.” Sem um espaço próprio, a interrupção estava garantida. Para Woolf, não se tratava apenas de um abrigo para escrever sem intromissões, mas de criar um lugar de libertação e autonomia, uma pedra de toque para a abertura de possibilidades e novos projetos de vida. Se demarcar fronteiras privadas contra intervenções externas já seria suficiente para remodelar a paisagem das relações de gênero, o que aconteceria se, além de um teto, a essa mulher fosse dado acesso à cidade inteira?

No livro Cidade feminista, que deve chegar ao Brasil ainda neste semestre pela Oficina Raquel, Leslie Kern afirma que as mulheres foram um problema para a cidade moderna, no contexto do terreno disputado da Londres vitoriana. Enquanto Woolf olha para o espaço privado de Jane Austen e das irmãs Brontë, que precisavam esconder da família seus manuscritos, Kern aponta para a dissolução das distinções protetivas que marcavam o status das mulheres que lentamente se apropriavam do espaço público, passando a ver e ser vistas diante das transformações urbanas da época. 

Mas Kern sabe muito bem que adotar um ponto de vista “da mulher”, como se fosse um universal homogêneo, é uma armadilha redutora. A redoma do espaço privado, ainda que impeditiva do pleno exercício do pensamento e da escrita, era restrita a mulheres brancas de famílias ricas. Mas aquelas que eram marcadas por estigmas de raça, classe, etnia e sexualidade — vistas como “outras” — também não deixavam de ser um problema para a cidade moderna. Ao tornar mais visíveis as condições de vida da classe operária, a cidade também foi o palco propício para mecanismos de controle e até banimento de mulheres não brancas e trabalhadoras, “mulheres públicas” que desafiaram as normas morais e patriarcais dos laços familiares e dos padrões de pertencimento.

Kern entrelaça discussões acadêmicas e históricas sobre mulheres e espaço urbano com fragmentos de relatos da própria vida, articulando uma primeira pessoa que se vale de suas experiências para abordar questões mais abrangentes, sem perder o horizonte das limitações desse arranjo. A costura é feita com maestria. Kern é próxima e distante, fala de si para se abrir a mulheres com vidas distintas. Ao defender que a geografia feminista começa pelo mais próximo — o corpo e a vida cotidiana —, discute as nuances das relações intrincadas de poder, gênero e espaço urbano. Mas é também uma narradora que se permite não se levar tão a sério, com altas doses de cultura pop e um repertório da linguagem altamente política da internet.

Bloqueios

Muitas abordagens sobre mulheres e cidades começam por tratar de uma série de bloqueios que constituem a experiência no espaço urbano. Mulheres têm mais medo de andar sozinhas à noite, são vítimas de assédio no transporte público, estão sujeitas a deslocamentos maiores por geralmente suportarem a carga do cuidado e do trabalho reprodutivo. Vivem em metrópoles planejadas e construídas por homens, em que as principais decisões são tomadas por homens. “A cidade não é para as mulheres” seria uma conclusão possível. Kern não nega que essa seja uma afirmação com uma importante carga de verdade. Mas, ao mesmo tempo, é verdade que “o lugar da mulher é na cidade”. Essa última afirmação é ambígua. Ao mesmo tempo que é um espaço de desestabilização de normas tradicionais de gênero, marcado por oportunidades de emprego e pela possibilidade de anonimato e de encontros não previstos, a cidade também é o lugar da mulher na medida em que apenas a concentração e a densidade permitem manter a exploração das jornadas duplas e triplas e a perpetuação do trabalho não remunerado que caracterizam a condição feminina na maioria das cidades. “A cidade não é para mulheres” marca a exclusão. “O lugar da mulher é na cidade” marca libertação e opressão.

Os capítulos do livro discutem diferentes elementos desse jogo de relações de poder. Começando pela geografia íntima, o primeiro capítulo, intitulado “Cidade das mães”, aborda questões que vão desde a impossibilidade de vagar livremente pelas ruas com um carrinho de bebê ou segurando uma criança pequena até propostas para políticas públicas de transporte e planejamento urbano. O movimento pendular casa-trabalho dificilmente é realizado por mulheres, cujas múltiplas paradas formam o mapa do trabalho não pago. Viena é indicada como exemplo de política urbana feminista, ao concentrar serviços e creches nas proximidades de conjuntos habitacionais, pensando, portanto, no deslocamento de mães. Kern também atenta para o perigo de reforçar a divisão entre trabalho pago e não pago com políticas específicas voltadas a mulheres.

“Cidade das amigas” fala da amizade feminina como um modo de vida, discutindo como o espaço público é utilizado por meninas e adolescentes, que passam a ter permissão para explorar novas identidades. A amizade também emerge como rede de apoio que descentra o núcleo familiar tradicional baseado no casamento. “Cidade de uma” trata da dificuldade de ser uma mulher sozinha em espaços urbanos públicos e privados. A discussão passa por banheiros públicos, mas também pela ideia de que espaços tidos como amigáveis às mulheres servem ainda como motores de gentrificação, com impactos para comunidades vulneráveis e racializadas. “Cidade do protesto” aborda o espaço urbano como lugar em que é possível ser ouvida, mas também como espaço pelo qual se luta. “Cidade do medo” trata de violência e vigilância, mostrando que somos ensinadas a evitar lugares — e não necessariamente pessoas.

Se é verdade que cidades são o patriarcado escrito na pedra — e a frase é da própria Kern —, também é verdade que uma cidade feminista emerge em inúmeras iniciativas da sociedade. Kern defende que a cidade feminista já existe, não precisa ser criada do zero pelo planejamento urbano. Ela é próxima e cotidiana. Cidade feminista é uma leitura absolutamente indispensável para torná-la mais presente.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).