Memórias do Chile,

Noite onírica no verão de 1973

Romancista escreve sobre a esperança que uma passagem pela delegacia há cinquenta anos lhe rendeu

01set2023 | Edição #73

No fim de fevereiro de 1973, passei minha primeira e única noite em uma prisão — uma experiência tão surreal que penso nela até hoje, cinquenta anos mais tarde. Tinha me aventurado com um grupo de amigos de esquerda pelas ruas da nossa cidade, Santiago, para pichar frases em defesa do presidente democraticamente eleito, Salvador Allende. Marcadas para o início de março, as eleições para o Congresso se aproximavam. A oposição de direita proclamava que, se conquistasse ampla maioria de assentos, votaria o impeachment de Allende e daria fim à sua revolução pacífica, a primeira tentativa da história de criar uma sociedade socialista sem o uso da violência.

As palavras que escrevíamos com entusiasmo em uma parede próxima ao Estádio Nacional, branca até a nossa chegada, eram “A defender la democracia!” (defender a democracia). Porque nossa democracia estava sendo ameaçada por uma conspiração conservadora cujo objetivo era contrariar a escolha do povo e dar um golpe institucional. Nunca chegamos a completar a frase naquela parede. Nosso companheiro encarregado pela vigia pegou no sono e não avisou que uma viatura de polícia vinha em nossa direção; um sargento corpulento saiu do carro, seguido por policiais aterrorizantes.

Fiquei apreensivo. Então com trinta anos, eu já havia lutado, nos tempos de estudante, contra homens assim, sufocado com seu gás lacrimogênio, e até tinha chegado a despistar uma van parecida com essa. Anos mais tarde, cá estávamos novamente à mercê.

Quando a democracia chilena foi restabelecida, em 1990, as delegacias continuaram a ser, sobretudo para os pobres e jovens, antros de pavor e injustiça

Minha apreensão se mostrou infundada. O sargento gentilmente nos informou que estávamos presos por vandalismo e perturbação da paz. Adotou modos estranhamente paternais enquanto ele e seus agentes nos conduziam à parte traseira da viatura que nos levaria até uma delegacia perto dali. Ao chegar, fomos trancafiados — novamente com a maior cortesia — em uma cela ampla, que já estava cheia de outros apoiadores de Allende detidos naquela noite.

Alguns companheiros de cela com passagem prévia por lá não estavam surpresos que, em vez de estarmos sendo espancados, estávamos sendo tratados com consideração. As coisas eram assim desde que Allende assumira a presidência, em 1970. Passara-se o tempo em que a polícia mutilava e assassinava ativistas políticos. Então, em vez de cuidar de machucados, passamos a noite discutindo a nossa jovem, não violenta revolução, até sermos liberados de manhã só com uma reprimenda: não voltar a depredar propriedade.

Já aquela palavra que estávamos escrevendo, “democracia”, permaneceria abandonada e incompleta — como nossa democracia. Apesar da situação econômica provocada pelo bloqueio norte-americano de auxílio internacional, a coalizão de Allende recebeu votos suficientes (44,23%) para barrar um impeachment.

Terrores

Seis meses depois, em 11 de setembro de 1973, o palácio presidencial estava sendo bombardeado e Allende estava morto. Meus companheiros de cela daquela noite, assim como centenas de milhares de outras pessoas, fugiam para se salvar enquanto a democracia que desejávamos defender dava lugar aos dezessete anos de ditadura do general Augusto Pinochet.

O que tinha sido um espaço utópico naquela estranha e luminosa noite, em que encarcerados podiam discutir o futuro sem medo, logo deu lugar a mais um centro de terror. Sempre me pergunto quantos prisioneiros foram massacrados naquele chão, quantos choques elétricos foram descarregados em genitálias, se aquela delegacia era uma parada a caminho do Estádio Nacional, onde apoiadores de Allende foram torturados e executados nos dias seguintes ao golpe.

Recordei aquelas horas especiais na delegacia várias vezes — nos dias subsequentes à tomada militar, escondido, e também dez anos mais tarde, quando voltei do exílio. Não que eu tivesse saído ileso da repressão: houve espancamentos por soldados nas ruas, bombas de fumaça lançadas em protestos contra o regime Pinochet, e acabei deportado do país por policiais à paisana. Mas nunca mais passei uma noite na cadeia.

A memória daquelas poucas horas de serenidade numa cela transbordando de militantes esperançosos e seus sonhos de uma libertação permaneceu vívida ao longo dos anos. Sempre, de repente, vindo à mente. Quando a democracia chilena foi restabelecida, em 1990, as delegacias continuaram a ser, sobretudo para os pobres e jovens, antros de pavor e injustiça.

Pior estava por vir: durante os protestos massivos que abalaram as estruturas do Chile, em 2019, entidades como a Anistia Internacional registraram uma imensa quantidade de violações dos direitos humanos por parte da polícia. Cidadãos vendados, manifestantes baleados e atropelados, milhares de espancamentos, centenas de estupros — violências que lembraram os dias mais tenebrosos da ditadura.

Eu me agarro ao interlúdio em que a brutalidade policial deu lugar à civilidade de um chá

Em meio a tudo isso, aquela noite espectral em fevereiro de 1973 continuava a acenar como uma alternativa à realidade que a humanidade estava vivendo, dando-me uma luz de esperança em tempos sombrios. A promessa e a certeza de que outros modelos de comportamento e relacionamento entre agentes da lei e aqueles a quem supostamente devem servir são possíveis. Eu me agarro àquele breve interlúdio, em que a brutalidade policial desapareceu milagrosamente para dar lugar à civilidade de um chá preto excessivamente adoçado servido pela manhã, algo a ser almejado em todos os lugares.

Em todos os lugares, porque esta não é apenas uma história sobre o longínquo Chile. Dia após dia após dia, testemunhamos a violência contra civis em rua após rua, cidade após cidade, país após país, dentro e fora das delegacias de polícia, ontem, hoje e, infelizmente, amanhã.

Este ano marca o 50º aniversário do golpe que derrubou Allende, um homem que encarava o policiamento sob outra perspectiva, um presidente que emitiu portarias que salvaram a mim, meus amigos e inúmeras pessoas para que pudéssemos ser generosos e tentar fazer do mundo um lugar melhor. O que mais me dói é o terrível desperdício de talentos e recursos quando a polícia, em vez de atuar como fez naquela noite, despeja sua fúria em cidadãos. Os incríveis futuros que são limados. O que minha experiência de cinquenta anos atrás continua me dizendo — de forma gentil, mas firme —, como um fantasma que se recusa a desaparecer, é que as coisas não precisam ser assim. (Tradução Bruno Cobalchini Mattos)

Quem escreveu esse texto

Ariel Dorfman

Professor de literatura e estudos latino-americanos, é autor de A morte e a donzela (Carambaia).

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.