Música,

Os segredos de Aldir Blanc

O apartamento do compositor no Rio guarda muitas canções ainda não gravadas e os originais de um romance policial com finais alternativos

01jun2020

Há um tesouro guardado na rua Garibaldi, Muda, Rio de Janeiro. No escritório-bunker do apartamento, soterrado de estantes e pilhas de livros que sobem do chão até o teto, ficam as caixas de plástico. Nelas, manuscritos de letras de canções, muitas das quais ainda não gravadas, e de poemas, que no futuro podem ou não ganhar música. E o segredo mais curioso de todos: os originais de um romance policial, totalmente escrito a mão, com letra difícil de decifrar (o escritor era médico), que durante trinta anos manteve Aldir Blanc em suspense. Como termina a história, deslinda-se o mistério? 

O autor não sabia. Mas o livro, garantem os poucos amigos que tinham acesso à cidadela, existe. E tem, diante do impasse, finais alternativos, como numa ficção pós-moderna. Um deles é uma paródia do desfecho de O mistério da cruz egípcia, de Ellery Queen, livro considerado por Aldir um paradigma entre os romances de enigma.

Um capítulo é destinado a destruir a reputação dos moradores do Grajaú ­ — “falsos moralistas”, deixou escapar o escritor numa conversa de telefone. Trata-se de um relato que desvenda alguns mistérios da Tijuca, ou da Grande Tijuca, assim chamada pelos especuladores imobiliários. Os adúlteros do bairro que tinham predileção pelo Bar das Pombas, na descida do Alto da Boa Vista, onde se escondiam à tarde para ouvir o barulhinho do rio Maracanã; a receita secreta do Underberg, beberagem alcoólica fabricada na região; a velha quadra no alto do Morro do Salgueiro, reino do sambista Casemiro Calça Larga; o endereço do bordel das normalistas, que nem do caderninho de Nelson Rodrigues constava.

Contrariando seu temperamento de ermitão, o autor foi a campo. Apurou sórdidas histórias com velhos repórteres de polícia, escrivães de delegacia, cafetões, vizinhas faladeiras, porteiros, garçons, coroinhas e uma fonte aqui revelada em primeira mão com nome, sobrenome e apelido: Wilson Flora, o Baiano, que acabou entrando na trama. “Fiz dele um personagem ainda pior do que a pessoa que ele é”, revelou Aldir, cuja silhueta, volumosa com os anos, barba e cabelos longos, era avistada na janela pelos notívagos da rua Garibaldi. “O homem está trabalhando no romance policial”, sussurravam. 

Agora é esperar o luto passar para quem sabe ler o romance. Aldir Blanc Mendes morreu no dia 4 de maio. Estava internado desde abril na UTI do Hospital Universitário Pedro Ernesto, onde um exame confirmou que contraíra a Covid-19, agravada por pneumonia e infecção urinária. Aos 73 anos, ele também sofria de diabetes.

Há na morte duas coincidências que, de certa maneira, atenuam a dor. O Pedro Ernesto fica em Vila Isabel, onde o menino Aldir passou a infância, para ele o momento mais feliz da vida. Morava com o avô materno, o português Antônio Aguiar, numa casa da rua dos Artistas com quintal e caramanchão. A experiência está contada no livro Vila Isabel: inventário da infância, narrativa proustiana, febril, desbragadamente lírica.

Noel Rosa também morreu num dia 4 de maio. Aldir Blanc nasceu no Estácio, onde Noel se ligou aos bambas locais para formatar o samba urbano carioca no fim dos anos 1920. A herança e a influência da obra do poeta da Vila são evidentes nas letras de Aldir, em músicas menos conhecidas (“Bolinho de bacalhais”, “Cabaré”, “Dois bombons e uma rosa”, “Odalisca”) ou em peças já clássicas (“O mestre-sala dos mares”, “O bêbado e a equilibrista”, “Catavento e girassol”, “Resposta ao tempo”). A dicção é a mesma.

Aldir era médico (e, só para lembrar, Noel também estudou medicina). Com especialização em psiquiatria, teve, no início da década de 1970, uma experiência traumática ao cuidar dos pacientes do Centro Psiquiátrico Pedro 2º, no Engenho de Dentro. Via-os dopados vagando no pátio ou levando eletrochoques. Quase enlouqueceu. Ainda abriu um consultório, mas largou a profissão em 1974, quando duas filhas gêmeas nasceram prematuras e não resistiram. A ideia de viver só de música — o compositor iniciante já conseguira a façanha de ter sido gravado por Elis Regina — venceu. E veio a parceria com João Bosco.

Bala com bala

Era um tempo de farra e aventura, apesar do clima pesado, o Brasil sob o coturno da ditadura militar. Em caravana com outros jovens inquietos (entre os quais o compositor Paulo Emílio), Aldir partiu numa Kombi do Rio para Ponte Nova, Minas Gerais, cidade natal de João. Lá, o aguardava um panelão de espaguete à bolonhesa e melodias do novo parceiro em busca de letras. As primeiras foram “Agnus Sei”, “Bala com bala” e “Angra”.

A afinação entre os dois funcionava tão bem que Aldir podia fazer um samba, num quarto de hotel, de madrugada, bêbado, batucando na mesa, com música, letra e introdução aparentemente prontas. João, logo de manhã cedo, botava em cima, com o violão, uma harmonia fantástica, e aí, sim, podia-se afirmar que nascera mais uma obra-prima. “Dois pra lá, dois pra cá” é um bolero de João Bosco, e a letra de Aldir foi feita com tamanha velocidade que só depois o autor foi conferir na fita se tinha uma frase a mais ou a menos. Estava tudo justinho. Letra e música de “Mestre-sala dos mares” são de Aldir, com harmonia de João. Antes que algum apressadinho diga o contrário, a melodia de “O bêbado e a equilibrista” é, sem dúvida, de João Bosco. Mas a abertura de “O rancho da goiabada”, tida, havida e elogiadíssima como obra do maestro e arranjador Radamés Gnattali, surgiu primeiro na cabeça de Aldir Blanc.      

A dupla Bosco/Blanc (a praxe indica que o autor da melodia apareça antes; depois o autor da letra) começou a se desfazer em 1982. Sem brigas de socos, embora muita gente não acreditasse nisso. Irônico, Aldir explicou a separação: “Todas as versões são verdadeiras. Escolham a sua e divirtam-se”. A primeira fase da parceria terminou porque os interesses ficaram divergentes. João se internacionalizou, Aldir ficou mais suburbano. Aquele procurava valorizar os fonemas, e este as palavras, e as letras acabavam por se diluir dentro do rico universo sonoro. Em 1983 ainda ajeitaram uma safra de sambas violentos e difíceis (“Prêt-à-porter de tafetá”, “João do Pulo”, “Samba em Berlim com saliva de cobra”), mas a mágica acabara, e eles “abriram”, como se dizia na época. 

Em 2002 reencontraram-se, passaram a se falar por telefone e, o melhor, a compor juntos. Sem a urgência da juventude, os antigos namorados se reviam ocasionalmente. Na nota distribuída à imprensa após a morte do amigo, João escreveu: “Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui para fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio”.

Ficou célebre a frase de Vinicius de Moraes segundo a qual a parceria musical é semelhante a um casamento. Em geral sem sexo, mas com brigas, pazes, ciúme, cansaço, aporrinhações, momentos de ternura. Aldir não se casou. Preferiu ter amantes, com os quais criou mais de seiscentas músicas. Além de João Bosco, uma longa fila: Sílvio da Silva, Paulo Emílio, Maurício Tapajós, Paulo César Pinheiro, Moacyr Luz, Cristóvão Bastos, Edu Lobo, Carlos Lyra, Djavan, Ivan Lins, Raphael Rabello, Luiz Carlos da Vila, Ed Motta, Jayme Vignoli, Moyseis Marques. Com o violonista Guinga levou ao paroxismo a capacidade de fazer a letra nota por nota em cima da melodia do parceiro. Quando este é imprevisível e desconcertante como Guinga, imagine o trabalho que dá.

O cacho com Moacyr Luz durou 24 anos. Eles se conheceram num show em 1984. Na saída, Aldir pediu uma carona. Descobriram que, sem saber, moravam no mesmo prédio da rua Garibaldi, o que facilitou as coisas: subia uma melodia para o quarto andar, descia uma letra para o terceiro. Sozinho, Moacyr compôs um samba de quadra e mostrou para Beth Carvalho, que sugeriu a mudança dos versos. Um trabalho para o homem do apartamento de cima. Aldir desceu com os olhos brilhando: “Pode trocar a cortina da sala que fizemos um sucesso”. Ainda faltava a segunda parte. Com a desculpa de beber cerveja e comer tremoços e moelas, Paulo César Pinheiro foi convocado e fez a caneta funcionar. Moacyr ligou para Beth: “Aquele samba vai se chamar ‘Saudades da Guanabara’”. A cantora correu para aprender a letra no mesmo dia: “Tira as flechas do peito do meu padroeiro/ Que São Sebastião do Rio de Janeiro/ Ainda pode se salvar”.

Recluso em casa, nos últimos anos Aldir não fumava nem bebia, salvo em ocasiões especiais. Quando ainda arriscava uma saidinha, não ultrapassava os limites da Muda, bairro espremido entre a Tijuca e a Usina que preserva a tradição dos botecos mais vagabundos, fazendo-se acompanhar do fiel escudeiro Mello Menezes, o artista gráfico que é autor da capa de quase todos os seus discos.

Para matar a saudade, rememorava os tempos de boemia desbragada. No Bar Luiz ia de chope preto e empanturrava-se com tira-gostos. No Capela, do qual foi freguês durante dez anos, ganhou um concurso de conhaque; lá, seu garçom de fé era o Cícero. No Lamas, mais uma década de goró: era servido pelo Maia ou pelo Vieira “Passarinho”. Na Taberna da Glória caiu, não de bêbado, mas de rir com Hermínio Bello de Carvalho. No Pardellas passou uma tarde com Tom Jobim, mergulhado numa garrafa empoeirada de Old Smuggler; Tom lhe dizia: “Música não é o que as pessoas pensam. Não se mate”.  Em todos esses bares ele sempre encontrava o cartunista Jaguar, companheiro de copo e de trincheiras no Pasquim.

Aldir se insere na tradição dos compositores que exerceram ao mesmo tempo uma atividade literária ou jornalística, de Ary Barroso a Vinicius e Chico Buarque

Em 1975, convidado por Ziraldo a escrever no jornal que desafiava a ditadura, Aldir levou para seus textos as conversas de botequim, onde se faz piada sobre tudo: a mãe, a doença, o chifre. Reconstituiu episódios de sua infância em Vila Isabel ­— o próprio narrador assume-se uma criança —, repletos de personagens reais com nomes e apelidos inacreditáveis: Esmeraldo Simpatia É Quase Amor, Belizário, Paulo Amarelo, Pelópidas, Waldir Iapatec, Tuninho Sorvete e, não por último, Ceceo Rico, pai do escritor, o funcionário público Alceu Mendes.

As crônicas dessa época estão reunidas em dois volumes, Rua dos artistas e arredores e Porta de tinturaria, relançados pela Editora Mórula em 2017. Confirmam Aldir Blanc como alto representante do gênero, tão brasileiro e tão carioca, na vertente aberta por Nelson Rodrigues ao retratar o bairro da Aldeia Campista e por Stanislaw Ponte Preta, a persona criada por Sérgio Porto, que fez a ponte entre as zonas Sul e Norte da cidade: o clã dos Ponte Preta — Tia Zulmira, Primo Altamirando, Rosamundo — tinha raízes na antiga Boca do Mato, vizinha do Méier. “Não vejo a menor razão para usar o verbo no passado: Sérgio Porto é meu ídolo”, escreveu Aldir no prefácio de As cariocas. “O avô português chegava em casa com a Última Hora, os livros de bolso e as frutas. Eu roubava o jornal ansiosamente —  e não só pelas Certinhas do Lalau. Sérgio Porto, via Stanislaw Ponte Preta — um alter ego inspirado em Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade —, representava, em tempos violentos e caretas da ditadura militar, o risonho escárnio nacional, ainda mais para jovens como eu, com a pontaria meio dispersa, mas dispostos a atirar contra tudo e todos.”

Humor é pé na cara’ 

Em sua produção na imprensa (além do Pasquim, colaborou nos jornais O Dia, Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo e nas revistas Status, Homem e Bundas, entre outros periódicos), Aldir seguiu à risca um conselho que ouviu de Henfil: “Humor é pé na cara”. Um livro quase secreto escancara o lado noir de Blanc: Guimbas, lançado pela editora Desiderata em 2008. São pequenas anedotas, pensamentos, aforismos, tiradas de balcão que enfrentam a censura que se esconde dentro do conceito do politicamente correto. Eis alguns exemplos: “Pedofilia não é uma coisa muito católica. Pensando bem, é sim”; “A diferença entre cachorros e balzaquianas que rebolam em blocos carnavalescos é que o latido das segundas tem um U a mais: uau!”; “A grande maioria dos brasileiros vê o túnel no fim da luz”; “O sonho dos membros do Supremo Tribunal Federal é serem transferidos para a diretoria da Liesa”; “O siri-patola, em que pese o nome, não é homossexual, embora participe, disfarçadinho, em molho de pirarucu”; “O torturador solícito sempre pergunta: cumé qui cê vai querê os ovos?”.     

Na apresentação para o livro Um cara bacana na 19ª, de contos, poemas e crônicas, editado pela Record em 1996, com desenhos e caricaturas de Chico Caruso, Ivan Lessa diz que, quando era garoto e achava que um dia poderia “escrever umas coisinhas”, nunca se preocupou com o que iria dizer, e sim com “o som, a embocadura”. Ou seja, ele queria escrever como Jorge Veiga, o Caricaturista do Samba, cantava. Ou como Aldir Blanc. 

Aldir se insere na tradição dos compositores que exerceram ao mesmo tempo uma atividade literária ou jornalística, linhagem extensa que no Brasil vai de Ary Barroso e Orestes Barbosa a Vinicius de Moraes e Chico Buarque, passando por Haroldo Barbosa e Luiz “Cabeleira” Reis, que eram orgulhosamente cronistas de turfe. As armas do estilo em Ivan Lessa (que não fez música, mas imitava Billy Eckstine à perfeição) e Aldir Blanc carregam as mesmas munições: bordões antigos e gírias recentes, construções de português castiço ao lado da fala das ruas, referências da cultura popular e da erudita, imagens poéticas e grotescas, a praça Mauá e o Jardim Botânico, o Rio do passado que se recusa a morrer e o Rio do presente que busca a morte. 

Aldir dava a impressão de ter lido tudo. Sua biblioteca com mais de 15 mil títulos espalha-se por todo o apartamento: no escritório-bunker, nos quartos, nos banheiros, nas áreas de serviço e até em cima de uma mesa de sinuca oficial que dominava a sala antes de ser passada nos cobres em meio a uma crise financeira. São gibis, ensaios, biografias, memórias, diários, relatos históricos, compêndios de psiquiatria, humor, poesia, mas sobretudo livros de ficção. Mantinha-se informado acerca dos últimos lançamentos ou de velhas edições com uma linha de compra permanente nas livrarias Leonardo da Vinci e Folha Seca e no sebo Berinjela. Diante de uma obra não lida de autor de sua predileção, sofria de pura ansiedade até ter o livro nas mãos; foi assim com o romance 2666, de Roberto Bolaño, cujas mais de 850 páginas foram consumidas em cinco dias. Aldir odiava a pergunta “Você já leu tudo isso?”. 

Os policiais, ele não leu: devorou. Era viciado no gênero. Na coletânea de artigos O gabinete do doutor Blanc: sobre jazz, literatura e outros improvisos (Mórula, 2016) é possível elencar seus autores preferidos: Hammett, Chandler, Ross Macdonald, Vázquez Montalbán, James Ellroy, Lawrence Block, Henning Mankell, Luiz Alfredo Garcia-Roza. Embora também se divertisse com a velha guarda anglófona: John Dickson Carr, Ngaio Marsh, Margery Allingham, P. D. James, Ruth Rendell. No altar, o Sherlock Holmes de Conan Doyle. Tamanha intimidade com as histórias de detetive pode tê-lo assombrado na hora de escrever o próprio romance policial, aquele cujo manuscrito, por enquanto, jaz na caixa de plástico.  

Aldir (também chamado de Bidu pela família) confidenciara a amigos que, quando morresse, não queria choro nem vela. Nada de gurufim, a prática, comum entre os sambistas, do funeral com música, dança, canto, brincadeiras, homenagem ao morto desagravando a atmosfera pesada. O desejo, que parecia impossível de se tornar realidade, cumpriu-se. Como acontece com as vítimas do novo coronavírus, uma cerimônia-relâmpago (dois minutos) marcou a despedida: a mulher, filhas e netas à distância de quatro metros do caixão lacrado. 

Eu passei aquele dia cantando, baixinho, os versos de Aldir feitos para a canção “Resposta ao tempo”: “E o tempo se rói/ Com inveja de mim/ Me vigia querendo aprender/ Como eu morro de amor/ Pra tentar reviver”.  

Quem escreveu esse texto

Alvaro Costa e Silva

É colunista da Folha de S.Paulo e autor de Dicionário amoroso do Rio de Janeiro (Casarão do Verbo)