Mercado editorial,

O dilema das megalivrarias

O crescimento desenfreado de Saraiva, Cultura e FNAC foi um equívoco, mas seu desaparecimento pode ser pior ainda

15maio2020

Ao longo de vinte anos, as redes Saraiva, Cultura e FNAC se espalharam pelo Brasil. Praticamente todas as capitais e grandes cidades do país ganharam suas megalivrarias, algumas delas luxuosas. Talvez até desmentindo a crença de que a população brasileira não se interessa por livros, elas se tornaram locais de visitação e pontos mais frequentados de shopping centers.

Pode-se dizer que tal crescimento foi uma decisão equivocada de seus executivos e acionistas. Mais ainda: várias vozes críticas denunciaram as práticas predatórias que acompanharam tal expansão e a concorrência por vezes brutal com as pequenas livrarias, muitas das quais foram obrigadas a fechar as portas. Usando sua força de venda, essas redes puderam também impor suas condições aos fornecedores e, como consequência natural em um ambiente de concentração, passaram a condensar seus negócios com cada vez menos editoras.

Com o poder adquirido, impuseram descontos e prazos de pagamento que podiam ser absorvidos apenas por pouquíssimas editoras. Tornou-se comum práticas como a de cobrarem pelo espaço na vitrine ou nos folhetos de propaganda, em um jogo no qual a maioria das editoras não tinha como competir. O resultado deste processo: concentração de lado a lado e perda substancial da bibliodiversidade.

O problema agora é que o desaparecimento dessas grandes redes não provocará o ressurgimento imediato das tantas pequenas livrarias que desapareceram por causa delas, ainda mais em meio à crise atual. A PL 2148, que espera a aprovação do Senado, traz medidas para apoiar as pequenas e médias livrarias em meio à crise decorrente da pandemia — medidas de emergência para impedir que o mercado livreiro brasileiro desapareça. Ela tem o apoio daqueles que acreditam que o livro e a cultura são algumas das ferramentas essenciais para a recuperação nacional. Mas a PL 2148 não tem o objetivo de ajudar a criação de novas livrarias, muito menos de dar dinheiro para cobrir as dívidas de gigantes como Saraiva e Cultura.

A ausência agora dessas grandes livrarias de rede significará apenas isso: sua ausência. Já vimos isso acontecer: com o fechamento das grandes livrarias de redes, algumas regiões simplesmente ficaram sem livrarias. Se de fato acreditamos na importância do livro para a construção de um país, só podemos ver tal situação como uma tragédia.

Acreditar que grupos varejistas especializados em eletrodomésticos possam se interessar em substituir televisores por livros em suas prateleiras parece uma ilusão. Mais ilusória ainda parece a esperança de que, em tal crise do varejo, esses grupos varejistas ampliem suas redes adquirindo essas livrarias.

O final da concentração do mercado nas mãos de Saraiva, Cultura e FNAC significará apenas maior grau de concentração nas mãos de uma corporação estrangeira, a Amazon, que passará assim a ter sozinha mais de 50% das vendas de livros no Brasil.

Para seus grandes acionistas, o fim dessas redes pode ser uma frustração, que curarão nas diversões de uma aposentadoria bem confortável. Para os grandes executivos, trata-se apenas de manter o olhar vitorioso e arrumar uma colocação nas diretorias de outras grandes empresas, que podem ser de sabão em pó ou bitcoins. Mas para os trabalhadores da linha de frente dessas livrarias e aqueles que as construíram, significa o desemprego. Para as editoras, que financiaram a construção de tais redes, entregando seus livros hoje para começarem a receber (aos poucos) dois ou três meses depois, a situação agora significa perder até 50% de seu faturamento.

Por isso, neste momento, quero lembrar que tais livrarias podem ter surgido nos sonhos de grandeza de seus diretores, mas foram de fato construídas por seus trabalhadores e existiram porque tinham os produtos fornecidos pelas editoras. Não é justo agora que sejam os trabalhadores e as editoras os mais prejudicados pelo desaparecimento da Saraiva e da Cultura. Todos vimos que a existência dessas livrarias é do interesse dos leitores. Resta agora lutarmos, trabalhadores e editoras, para que elas se mantenham, sem as ambições de lucros irreais, sem as práticas predatórias. Diretamente, sem os delírios de executivos.

Se conseguimos construir tais livrarias, somos os únicos que podem fazê-las continuarem a existir. É urgente colocar na mesa planos de recuperação alternativos aos apresentados até agora. É urgente e, sobretudo, possível. Transformá-las em cooperativas de trabalhadoras, trabalhadores e credores sob uma governança completamente nova pode ser o caminho.

Rogério de Campos é diretor da editora Veneta.

Quem escreveu esse texto

Rogério de Campos

É editor.