Literatura,

Onde vive o horror

Escritoras latinas dão fôlego a movimento literário sob e sobre a violência constante no continente

30jan2023

A decisão de uma professora de língua e literatura de sequestrar a própria aluna é tema de Mandíbula (Autêntica), da equatoriana Mónica Ojeda. Logo no início, o romance, que se desdobra na cidade de Guayaquil, descreve os apuros da jovem que desperta em cárcere. Com o passar do tempo, o cenário nebuloso revela a impossibilidade de manter vítima e malfeitora em lados opostos, já que são personagens obtusas e carregadas de complexidade. Atravessado por questões psicológicas, o enredo escancara, a partir de uma narrativa polifônica, a crueldade que entremeia as relações íntimas. A pulsão de submeter o outro aos próprios desejos acomete mães, filhas, amigas e professoras.

Ojeda é exemplo de um movimento que, embora não seja inédito, ganhou novo fôlego na América Latina nos últimos anos. Sob diferentes abordagens, escritoras de língua espanhola têm se dedicado a construir uma ficção que partilha o interesse por situações hostis. Essa curiosidade ganha espaço no Brasil por meio de traduções e propõe reflexões sobre a inexistência de um lugar seguro frente à sistematização de violações.

“Não acho que exista uma obrigação de falar sobre isso agora, mas quando se vive em um lugar em que a violência é o pão de cada dia, ou os seus afetos estão em uma zona de perigo, fica difícil evitar que isso não se reflita em uma obra”, diz Ojeda à Quatro Cinco Um. Ela destaca ainda o papel da literatura no processo de reparação, crucial no enfrentamento de traumas. “Uma vez vítima, você pode perder a voz e a capacidade de articular um relato sobre o que aconteceu. Os atos de ler e escrever, em contrapartida, auxiliam na restituição emocional ao permitir que você percorra locais obscuros, onde a experiência psíquica finca raízes.”

Esse exercício subjetivo de narrar o hediondo conecta Ojeda a outros nomes de sua geração, como as colombianas Pilar Quintana (A cachorra e Os abismos, lançados em português pela Intrínseca) e Vanessa Londoño (Cerco animal, lançado pela Peabiru) e a mexicana Fernanda Melchor (Temporada de furacões e Páradais, lançados pela Mundaréu). Nas histórias de Melchor, por exemplo, é possível observar a barbárie sob diferentes ângulos, desde a aparição de um cadáver putrefato na periferia até a sordidez da misoginia oculta pelas elites no litoral.

A Argentina também vem atuando como uma fértil exportadora de publicações do gênero. Os livros As coisas que perdemos no fogo e Nossa parte de noite (Intrínseca) tornaram a portenha Mariana Enríquez bastante conhecida por aqui. Com frequência, ela ambienta seus contos e romances na cidade de Buenos Aires, à qual atribui um estado permanente de medo por meio de personagens como crianças assassinas, membros de seitas secretas e até jovens que veem na decisão de atear fogo aos próprios corpos a salvação para abusos iminentes.

“Eu me pergunto se as mulheres não estariam mais próximas do que os homens de alguns tipos de violência, e se isso não influencia diretamente o que ocorre na nossa literatura”, diz Samanta Schweblin, autora de Pássaros na boca e Sete casas vazias (Fósforo), vencedor do National Book Award em 2022. “Independentemente do que fizermos, não é tão fácil se desvencilhar do contexto em que está imersa a América Latina, muito menos pedir que alguém abandone uma carga pessoal de emoções no momento em que faz a leitura”, diz. “Se um texto, mesmo que menos violento, é lido em um contexto em que o horror é experienciado de forma contínua, o leitor pode refleti-lo. Uma obra não reflete apenas seu autor, mas também quem a lê.”

Violência institucionalizada

Esquivando-se de interpretações panfletárias ou mesmo românticas do tema, as escritoras concordam que a produção atual foi influenciada pelos anos em que países da região elegeram governos neoliberais. Em muitos casos, a violência foi institucionalizada. “As políticas adotadas nesse período excluem a maioria da população e agravam o problema, visto que os territórios mais pobres são também os que mais se deparam com a indiferença”, afirma a argentina Dolores Reyes, autora do romance Cometerra (Moinhos). “Falar sobre violência na América Latina nos leva a pensar que estamos em um território heterogêneo, mas o horror, especialmente quando motivado por razões políticas, impacta os corpos de todas nós desde a infância.”

‘Ler e escrever auxiliam na restituição emocional ao permitir que você percorra locais obscuros’, diz Ojeda

Sob a perspectiva de uma criança órfã, que adquire o poder de rastrear desaparecidos após comer porções da terra em que a vítima pisou, a história expõe a incapacidade do Estado de lidar com o crescente número de violações contra mulheres e a burocracia existente na luta por justiça. Para Reyes, que nasceu no auge da ditadura militar argentina (1976-83), encarar essas questões é fundamental para a construção de leitores ativos, capazes de estabelecer e preservar a memória histórica.

A boliviana Giovanna Rivero, que aborda situações-limite, barbárie e morte nos contos da coletânea Terra fresca da sua tumba (Incompleta/Jandaíra), tem visão similar. A escritora lembra que a América Latina criou seus próprios métodos de abordagem do horror cotidiano, dissociando-se com frequência de moldes clássicos impostos por produções de língua inglesa. “A figura do serial killer, por exemplo, foi menos frequente por aqui”, diz ela. “Me parece que o continente tem seu próprio conceito de produção em série quando se trata de violência, já que sobreviver na informalidade e no dia a dia podem ser coisas tão violentas e sequenciais quanto o fato de ser perseguido por alguém.”

Essa gama de ameaças faz-se evidente em seus contos, marcados por uma sensação de deslocamento e uma vasta ordem cultural, que expõe a diversidade de seu país de origem. Não raro, o leitor se depara com a presença de pessoas invisibilizadas, em sua maioria imigrantes latinos que partem rumo à América do Norte e tentam manter vivas suas identidades. “O grande monstro que gera monstros humanos é a economia, o que me leva a crer que é muito mais interessante observar a refletir essa instabilidade coletiva em termos literários”, diz Rivero. “Só a literatura pode nos conectar a valores transcendentais, entre os quais está a capacidade de se comover com a dor alheia.”

Quem escreveu esse texto

Guilherme Araújo

É jornalista