Literatura,

A mulher desobediente

Para serem reinseridas na sociedade, heroínas de Shakespeare teriam de aceitar que amor e honestidade não são úteis para o patriarcado

24ago2021

Ou você faz o que eu quero ou você morre. A frase imperativa que inicia este texto poderia ser ouvida durante um assalto. Porém, essa mesma frase vem sendo usada de maneira silenciosa por séculos, protegida pela cultura machista. Ao traçar elementos comparativos entre algumas obras clássicas sobre a desobediência da mulher como característica narrativa e propulsora do desenvolvimento e ápice dramático da trama, é possível desenvolver um debate sobre a potência do patriarcado como peça-chave desse “mau comportamento”.

O conflito do domínio patriarcal pode derivar de um desequilíbrio na relação entre mulher e homem dentro de uma instituição como o casamento, por exemplo. Mas, em sua base, a identificação do pai como ponto de partida para a fragilização do comportamento feminino e que é normalizada pelo marido é fundamental para a compreensão do padrão machista que se inicia com a proteção — domínio — paterna. Portanto, antes do marido há, estruturalmente, o pai; e rebelar-se, na literatura, envolve cortar laços consanguíneos, o que traz consequências cruéis e trágicas.

Quando o rei Lear, na tragédia de William Shakespeare, decide dividir as terras do seu reino entre as três filhas, ele propõe um jogo que não está disposto a perder. Em um teste para saber quem mais o ama entre as três filhas para poder, assim, receber um dote maior, ele se vê diante da filha mais nova, Cordélia, que, com o orgulho da integridade, se recusa a participar do jogo de confetes. Ao dizer que nada tem a falar sobre o seu amor pelo pai, Cordélia, confiando na inteligência de Lear, espera que ele, por maturidade, sabedoria ou experiência, compreenda a tolice da arguição entre irmãs, tendo de arcar com as consequências daquela honestidade. Em vez de “remendar o seu discurso”, como o próprio pai lhe aconselha, Cordélia escolhe comprar a briga e é expulsa do reino.

O ato de Cordélia é fundamentado em bravura, mas também em risco, já que, na condição de mulher, ela não é dona das suas palavras. Como das irmãs, Goneril e Regan, o que se espera de Cordélia é um mínimo de juízo, mesmo que seja desonesto. Essa desobediência de Cordélia se relaciona com a de outra heroína shakespeariana. Julieta Capuleto chega a expressar para a mãe e a dama de companhia que não quer se casar com Páris, marido arranjado pelo pai. Mas que consolo tem aquela adolescente diante dessas duas mulheres, que consideram um privilégio o interesse de Páris? Diferente de Cordélia, que demonstra imensa integridade e inflexibilidade de caráter, Julieta se apossa da paixão por um estranho, inimigo da sua família, como subterfúgio para romper laços e expressar sua infelicidade.

É dessa desobediência que rastreamos violências diversas, notadamente o feminicídio e a subestimação da capacidade de gênero. A relação de poder entre provedor e subalterno, no caso homem e mulher, respectivamente, tem sido normalizada. Quanto da maternidade não deve ter existido ou ainda existir como resultado de uma negociação silenciosa na qual a mulher sabe quais tarefas deve executar para a manutenção adequada de uma instituição matrimonial? “Colocar-se no seu lugar” significou para a mulher entregar seu corpo como moeda de câmbio tendo como retorno um teto todo seu, ainda que, oficialmente, nunca tenha sido reconhecida como proprietária.

Na literatura clássica, um número mais reduzido de mulheres tem tentado quebrar as correntes viciosas desse círculo, impondo-se contra a figura do pai antes de conviverem com o marido, como fizeram Cordélia e Julieta. Nesse recorte shakespeariano, o aspecto problemático do desejo de liberdade da mulher se consolida ao aceitarmos como antagonistas diabólicas as irmãs de Cordélia: Goneril e Regan. Amplamente caracterizadas como vilãs da mais sórdida natureza, as duas filhas mais velhas de Lear têm ambição e aceitam jogar o que lhes propõe o pai. Seriam mulheres de negócio com avançada capacidade estratégica e de planejamento para desfrutarem de poder. Estariam erradas? E como julgar o ímpeto de Julieta em escapar de uma vida que, a cada dia, se espelharia mais na de sua mãe?

Afinal, o que teria acontecido se Julieta voltasse viva para casa depois de um mês de paixão com Romeu? E como viveria Cordélia se Lear não a expulsasse, e ela tivesse que viver com a humilhação de ter questionado a autoridade do pai? A resposta é simples: tanto uma quanto a outra seriam consideradas caprichosas e imaturas, e para serem reinseridas socialmente teriam que se corromper, aceitando que o amor verdadeiro e a honestidade não são virtudes úteis na rotina do patriarcado.

Seguir as regras

A desobediência só é possível dentro de uma organização que seja fundamentada em regras. O contrário seria a liberdade, traço impossibilitado e incompatível ao gênero feminino em várias narrativas clássicas. Em algumas estruturas da literatura clássica, o rompimento das regras sociais e institucionais tem campo fértil nas relações matrimoniais. Mesmo quando Luísa, de O primo Basílio, e Emma, de Madame Bovary, se envolvem em relações extraconjugais, o conflito vivido por elas está diretamente associado à desobediência da convenção de um modelo de casamento herdado de suas antecessoras, incapaz de prever a insatisfação e a solidão como motivos suficientes para qualquer revolta que justifique uma traição.

No livro Cercando Emma (Procurando Emma), a escritora italiana Dacia Maraini aprofunda-se na duplicidade da vida de Emma e propõe uma interpretação menos escandalizada em relação à sedução da protagonista por uma vida de amantes. A desobediência da sra. Bovary não é tão diferente daquela de Luísa e, apesar das extravagâncias ou fartura concedidas pelo casamento, Emma e Luísa parecem estar dispostas a arriscar um flagrante que lhes confiscaria o tão pouco que sentem ter. Afinal, estão constantemente atraídas por uma vida boêmia e libertadora que se coloca em conflito direto com o comportamento moralista e monogâmico cobrado delas. Esse tipo de “rebeldia” está estreitamente associado à inclinação de desafiar a estrutura patriarcal e colocar em risco o conforto que o marido, como provedor, proporciona. Com essa dinâmica suja e injusta em mente, quem teria a coragem de culpar Luísa e Emma Bovary?

Quem escreveu esse texto

Nara Vidal

Escritora, é autora de Mapas para desaparecer (Faria e Silva), Eva (Todavia) e Shakespearianas: As mulheres em Shakespeare (Relicário).