Literatura, Um benguelense em Berlim,

A coisa aqui tá africana

Ser negro em Portugal não é uma experiência única: existem vontades e ideias dissonantes nessa luta comum para descolonizar a sociedade

01jun2018

Kalaf Epalanga

Eu ando aflito pra fazer você ficar
A par de tudo que se passa

Chico Buarque, “Meu caro amigo”

No Verão Quente de 1975, período de profunda instabilidade política que colocou Portugal à beira de uma guerra civil, dona Albertina, brasileira e mãe do teatrólogo Augusto Boal, aterrou em Lisboa acompanhada pela filha Ida. As duas foram recebidas com entusiasmo pelo grupo de brasileiros exilados num apartamento alugado pelo fundador do Teatro do Oprimido no Campo Pequeno. Depois da troca de abraços e beijos, dona Albertina entregou a cassete que Chico Buarque enviara para o seu filho. Naquele momento, nem a própria, nem nenhum dos presentes (entre eles Darcy Ribeiro e Paulo Freire), faziam a mais pequena ideia de que, com aquele gesto, dona Albertina Pinto, oriunda de Justes, Vila Real e carioca de adoção, estava prestes a se transformar na portadora de correspondência mais famosa da música popular brasileira. 

Aquele foi também o Verão dos retornados. De Moçambique, a maioria dos 250 mil portugueses que lá viviam deixaram o país, alguns expulsos pelo governo da Frelimo de Samora Machel, outros fugindo com medo. De Angola o número rondou os 350 mil. Meu avô, que foi testemunha desse processo, dizia que foi tudo tão rápido e caótico que os antigos colonizadores mal tiveram tempo de fazer as malas. Para trás deixaram ficar bens e memórias de toda uma vida passada numa terra que amaram como se fosse sua, pois para muitos foi a única terra que conheceram. Na mala, com os poucos pertences que lhes fora possível salvar, trouxeram uma mão cheia de medos e ressentimentos para com os pretos que lhes roubaram os sonhos, pretos que desavindos entre eles e instigados pelos actores principais da Guerra Fria, destruíram tudo aquilo que havia sido construído até então. 

Mas nem só de brancos se fez o êxodo das ex-colónias. Entre os cerca de quinhentos mil retornados que vieram parar a Portugal, um grande número de negros e mestiços, temendo o que lhe poderia acontecer, escolheram abandonar a terra que os vira nascer. Ficar numa África livre mas politicamente instável não era opção. Eram os ditos negros assimilados, muitos deles pertencentes a uma classe de funcionários públicos cujo estatuto alcançado na sociedade colonial lhes garantia privilégios que os tornava vulneráveis à luz da nova conjuntura política e, consequentemente, alvo de retaliações se tivessem permanecido em África. 

A partir dos anos 80, os grandes centros voltaram a ser multiculturais e Lisboa, a cidade mais negra do país

Antes da Revolução dos Cravos, eram poucos os negros a residir em Portugal. A pequena comunidade de cabo-verdianos que nos anos 60 desembarcara em Portugal para trabalhar nos projetos de obras públicas (como a construção do metropolitano de Lisboa) não era significativa o suficiente para se estabelecer um senso e identificar em termos estatísticos o número e a forma como estes foram absorvidos pela sociedade, até porque esta presença africana teve maior impacto na capital, contrastando com as restantes zonas do país. Essa realidade sofreu uma ligeira mudança com a chegada dos retornados, luso-africanos brancos e negros que decisivamente mudaram o rosto das cidades em Portugal. 

Mudança cromática

No entanto, a partir dos anos 80, essa mudança cromática ganhou contornos mais significativos com a chegada de imigrantes africanos e desde então, e tal como no século 16, os grandes centros urbanos voltaram a ser visivelmente multiculturais e Lisboa, a cidade mais negra do país. Foi na década de 80 que a presença africana em Portugal ganhou nova dimensão, tal como em outras sociedades pós-coloniais na Europa, Portugal tivera que aprender a lidar os movimentos migratórios motivados por razões económicas provenientes dos Palops que não só se limitaram a ocupar espaço na urbe, como também redesenharam o tecido urbano e cultural das cidades que os receberam. Numa primeira fase a imigração africana era constituída essencialmente por homens cuja força fora canalizada para as grandes obras públicas, os anos 80 veio representar a reunião familiar.

Minha relação com Lisboa começou com os discos. Eles que me levaram até a poesia que se produzia na Casa dos Estudantes do Império pelas mãos dos nossos futuros líderes — Agostinho Neto, Amílcar Cabral, António Jacinto, entre muitos. A geração da utopia como Pepetela escreveu. Deles herdei o que sei sobre o ser preto.

Mais do que a quantidade de melanina que carregamos na pele, ser preto foi me apresentado como sendo um acto político e a música foi o veículo. O disco Monangambé de Ruy Mingas é exemplo disso. A edição em vinil, que guardo com religiosidade, encontrei-a na Discolecção quando esta se encontrava no centro comercial Palladium na avenida da Liberdade. Um lugar mágico que me ajudou a descobrir o caminho de volta para a casa, através dos vinis do antigamente. Foi naquele santuário de raridades musicais frequentado por lendas do restrito e fascinante mundo dos colecionadores de discos, verdadeiros melómanos, como o saudoso Zé da Guiné — o maior lisboeta que tive o privilégio de conhecer. Um senhor, um desses homens musicais que só nascem muito de vez em quando. Um homem que ensinou Lisboa a sair para balada no início da década de 80 com as suas lendárias festas no Largo do Conde Barão, a que batizou de Noites Longas.

E foi também naquela altura, nos loucos anos 80, que se deu aquela que é a mais abrangente das manifestações culturais de origem africana que ocupam o espaço de Lisboa. A Kizomba! Ela carrega uma profundidade emocional e uma envolvência  libidinosa,  transcendendo e desafiando a lógica do espaço e a intimidade que cada indivíduo se permite experienciar em público. Temo-la como alimento e respiramo-la em todos os desdobramentos de sotaques que a língua portuguesa consegue agraciar. 

Hoje já ninguém se impressiona mas sempre que passa na rua uma viatura a tocar Kizomba aos altos berros, se olharmos quem vai ao volante, 99% das vezes, é um caucasiano. A cidade está a descobrir-se através da música. É com ela que os corpos negros deixaram de ser invisíveis. A identidade passou a ser sinónimo de sobrevivência e a Kizomba a sua banda sonora secreta.

Africanos em Portugal

Existem entre 300 e 500 mil africanos em Portugal. Talvez um pouco menos, talvez mais. Não me é possível precisar, com certeza, quantos são, uma vez que os números apresentados não são oficiais. Digamos que os números são, eles próprios, matéria delicada, porquanto identificar e classificar a população em raças é entendido como sendo um ato discriminatório, igual ou pior do que negar a existência de um determinado grupo cultural ou étnico-linguístico. Contudo, a recolha de dados étnico-raciais, reivindicada há anos por pessoas e coletivos que têm combatido o racismo institucional, a discriminação racial e a xenofobia e recomendada por vários organismos internacionais, será uma realidade. O próximo Censos 2021 vai tentar responder pela primeira vez questões como qual a composição étnico-racial da população portuguesa.

O projeto museológico, a ser exemplar, terá de ser capaz de abrir essa História à sua diversidade, mostrando os aspectos obliterados por um olhar colonial e colonizante 

E entendamos. Ser negro em terras lusitanas não é uma experiência única. As sensibilidades são distintas. Existem vontades e pensamentos dissonantes nessa luta comum que é descolonizar da sociedade portuguesa. Em 2017, a Djass — Associação de Afrodescendentes apresentou ao Orçamento Participativo de Lisboa uma proposta de criação de um memorial de homenagem às pessoas escravizadas pelo Império Português. O projeto foi um dos mais votados e acabou por ser um dos vencedores desta iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, que o incluiu no seu orçamento de 2018. O memorial vai ser uma realidade. Um grupo de académicos e figuras ligadas à cultura veio a público mostrar estar em desacordo com a criação do Museu das Descobertas proposto pelo presidente da Câmara de Lisboa. No manifesto, lia-se: Um tal projeto museológico deverá considerar a forma como a dita “grandiosidade” da história de Portugal foi forjada com iniciativas de rasgo que de facto rasgaram e destruíram outros tecidos culturais e sociais, através de violência explícita ou insidiosa, cuja história e existência têm sido na sua maioria ignoradas. Ou seja, este projeto museológico, a ser exemplar de novos modos mais inclusivos de museologia e investigação, terá de ser assumidamente polivocal e capaz de abrir essa História à sua diversidade e complexidade, mostrando os aspetos obliterados por um olhar hegemónico — colonial e colonizante. 

O que me leva a concluir, resgatando a melodia e torcendo a métrica e os versos contidos na cassete que dona Albertina trouxe até Lisboa no Verão Quente de 75:

Aqui em Lisboa começamos a descolonizar
Tem muita Kizomba, muito Kuduro e Afro House
Uns dias chove, noutros dias bate o sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá africana.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).