Flip, Literatura Negra,

A solidão de estar à frente do próprio tempo

Pouco se sabe da vida de Maria Firmina dos Reis, mas deve ter experimentado há duzentos anos o que mulheres negras em posições de poder sentem até hoje

01nov2022

A construção da imagem de mulheres negras vitoriosas costuma passar ao largo da solidão em que elas vivem. Não a solidão afetivo-sexual de maneira específica, mas o quase absoluto isolamento nos espaços de poder conquistados, inclusive o poder de usar a palavra.

O lugar da fala, escrita ou vocalizada, é arena pública, campo modelar de imaginários, anterior à disputa de narrativas. O livro não é a aldeia de intimidade que pretendem imputar às mulheres que escrevem, como se tudo fosse um diário juvenil. O livro é o espaço daquilo que se quer tornar público e isso pode ser também a intimidade.

As biografias das mulheres de vida pública, principalmente quando baseadas nos valores de abnegação e sacrifício cristãos que orientam homens e mulheres no Ocidente, costumam enfatizar quanto elas foram dedicadas a causas humanitárias e à maternidade, como elementos intrínsecos da inscrição de uma mulher no mundo. Essa é também uma maneira de domesticá-las, de amputar delas o direito à insurgência, à ira e ao revide, como nos chama a atenção a literatura de Audre Lorde, Saidiya Hartman, Buchi Emecheta, Carolina Maria de Jesus e Marilene Felinto, entre outras autoras.

Morrer na pobreza, quando se teve uma vida fértil e transformadora, sempre me faz refletir sobre o provável abandono em que essa pessoa viveu

Os dados biográficos e a inserção social de mulheres como Maria Firmina dos Reis agitam as águas de minhas reflexões sobre a solidão das mulheres negras que ocupam espaços de poder, quase sempre isoladas, sem interlocução, sem a companhia de outras iguais, principalmente da mesma geração.

Lembro-me de contemporâneas que já se foram e experimentaram essa situação em sua prática intelectual e política: Luiza Bairros, em campanha cotidiana de convencimento de seus colegas ministros, no primeiro governo Dilma, para que suas pastas se envolvessem no combate ao racismo e às desigualdades raciais; Thereza Santos, artista comunista exilada em África, em fuga para não ser presa pelos agentes da ditadura civil-militar no Brasil; Lélia Gonzalez e sua voz solitária a gritar pelo mundo os horrores do racismo brasileiro nos anos 70 e 80; Beatriz Nascimento, intelectual de peso, vítima de feminicídio quando defendia uma amiga acossada pelo agressor; Neusa Santos Souza, autora do clássico Tornar-se negro, que suicidou-se.

Existências

Firmina teve uma vida longa. Morreu aos 95 anos, em 1917, “pobre e cega”, informação encontrada em compêndios que a apresentam. Naquela segunda década do século 20, Lima Barreto publicava ativamente na imprensa carioca e era um escritor preocupado com os direitos das mulheres. Teria tido alguma notícia da existência dessa intelectual negra no Maranhão?

Firmina deixou um filho adotivo que não tem seu sobrenome, Leude Guimarães. Este perdeu boa parte da documentação literária e de vida da mãe em um assalto, mas sabemos que aos 58 anos Firmina se tornou mestra régia no sistema de ensino que substituiu o jesuítico, depois de aprovada em primeiro lugar na cadeira de história da educação brasileira. Fundou, em 1880, uma escola gratuita que abrigava meninas e meninos no distrito de Maçaricó, pertencente a Guimarães, no interior do Maranhão. Foi duramente criticada e perseguida por criar uma escola mista, sendo obrigada a fechá-la dois anos e meio depois de tê-la aberto.

Morrer na pobreza, quando se teve uma vida fértil e transformadora, sempre me faz refletir sobre o provável abandono em que essa pessoa viveu ao longo de sua existência. Que outras mulheres compartilharam esse sonho com Firmina? Os recursos financeiros para constituir e manter a escola gratuita teriam vindo de sua atuação como professora? Algum recurso de família? Da avó ou da tia que a criaram, já que ficara órfã aos oito anos, filha de uma mulher que não era casada (falamos de 1822) com um pai que não chegou a conhecer? Seria seu pai um homem negro e sua mãe, uma mulher branca? O que significa “morrer na pobreza”? Ela perdeu tudo? Por que perdeu? Como perdeu? Ou nunca teve nada? Ou tudo o que teve investiu nos sonhos libertários? Será que manter-se sozinha (sem um amor romântico) foi uma condição para conseguir sonhar?

Firmina publicou o romance abolicionista ‘Úrsula’ em 1859, mesmo ano em que Luiz Gama lançou ‘Primeiras trovas burlescas de Getulino’

Firmina publicou o conhecido romance abolicionista Úrsula em 1859, mesmo ano em que Luiz Gama lançou Primeiras trovas burlescas de Getulino; ela no Maranhão, ele no Rio de Janeiro. Será que um sabia da existência do outro? Mulheres intelectualizadas naquele período eram poucas. Se tivessem um clube de leitura, por exemplo, uma intelectual negra como Firmina poderia participar? Mulheres respeitáveis não iam a bares, à tribuna, aos cafés, à redação dos jornais, não tinham o espaço de convívio das ruas, desfrutado até pelos homens negros livres como Gama. Será que ele, sabido por tantos e sabedor de tantos, sabia da existência de Firmina, assim como conhecia outros intelectuais abolicionistas no Norte do Brasil?

No tempo em que viveu, o que terá significado para Firmina publicar poemas e contos em jornais como Publicador Maranhense, A Verdadeira Marmota e O Jardim das Maranhenses (todos em 1861) e em outros veículos, como Porto Livro, Eco da Juventude, Semanário Maranhense e Revista Maranhense, em momentos variados de 1863 a 1887? Qual terá sido a reverberação dessas publicações em termos de diálogo e interlocução com outros pares das letras, provavelmente homens, pela simples ausência de mulheres? Se estas existissem, sendo brancas, elas tratariam uma negra como igual, a aceitariam em seu círculo de relações livres e libertárias?

Para encontrar as respostas, basta olhar para hoje, passados duzentos anos do nascimento de Firmina: as mulheres negras que ocupam espaços de poder, salvo raríssimas exceções, são únicas.

Quem escreveu esse texto

Cidinha da Silva

Escritora e editora na Kuanza Produções, é autora de A menina linda e outras crônicas (Oficina Raquel).