Literatura israelense,

Outro lugar

Em novo romance, escritora tematiza o antissemitismo nos Estados Unidos em tempos de Black Lives Matter. Leia trecho exclusivo

01mar2022 | Edição #55

1

Olho para esses dedos pequeninos, do bebê que acabou de nascer, e tento compreender como é possível que vão crescer para serem os dedos de um assassino. O menino morto chama-se Jamal Jones. Na foto do jornal, os olhos dele são negros como veludo negro. O meu filho chama-se Adam Shuster. Os olhos dele são da cor do mar de Tel Aviv. Estão dizendo que ele o matou. Mas isso não é verdade…

2

Não me chamo Lila. Para os americanos é difícil pronunciar Lilach, então todos aqui me chamam de Lila. Mas eu não me chamo Lila.

No caso de Michael é fácil. Eles simplesmente o chamam de Maikael.1 Ele nunca os corrige. Não seria bem-educado. E diferentemente de mim, que sempre digo Lilach na primeira vez e depois deixo que o novo conhecido usufrua da dúvida e me transforme em Lila, sem criar caso por causa disso — mas também sem colaborar —, Michael já há muito tempo começou a dizer “Maikael”. Ele alega que não faz diferença, é quase a mesma coisa. Mas, na minha imaginação, quando o conectaram ao polígrafo e perguntaram como ele se chamava, quatro meses e meio depois que Jamal morreu, ele disse Maikael, e a agulha começou a tremer.

Quando transamos, eu o chamo de Michael. Uma vez o chamei de Maikael, e a sensação foi de que estava deitada com outra pessoa.

E, quando Adam nasceu, nós lhe demos um nome neutro. Um desses que funcionam tanto em inglês como em hebraico. Um nome que deslize na garganta dos americanos como um bom vinho da Califórnia e não fique atolado no esôfago, como Lilach e Michael, e que no momento em que os leem no passaporte tudo se revela — não são daqui. Criamos um filho na América. O nosso traço israelense, nós o zeramos no armário, junto com as taças do futebol que Michael guarda desde o ensino médio — guardou só como lembrança, não porque tenham alguma utilidade. Criamos um menino americano, que foi para o colégio junto com meninos americanos, e agora dizem que ele matou outro menino, americano.

3

Jamal Jones. O seu rosto, Jamal, é bom, mas o seu tamanho é ameaçador. Os seus ombros são largos, tão largos que parecem surpreender até mesmo você. Talvez tudo tenha acontecido de uma só vez, este salto do crescimento, um verão no qual você, de menino magro e baixo, passou a ser, sem aviso prévio, um rapaz imenso e largo. Mas o rosto não acompanhou o ritmo das outras partes. O corpo se tensionou e dilatou, e os olhos continuaram a ser olhos de menino, e também os lábios, sem sombra de bigode, um tanto espichados para frente, num gesto tão doce, de criança.

À noite, na rua, eu teria medo de você. Não me deteria para dar uma espiada nos seus olhos, que agora, na foto no jornal, me parecem gentis e agradáveis. Provavelmente apressaria o passo, a mão no bolso para me certificar de que o telefone estava lá, caso precisasse. Passaria para o lado iluminado da rua e esperaria até que a sua silhueta — de um rapaz negro de ombros largos — passasse por mim e desaparecesse na curva seguinte.

Pensar que todo esse tempo eu tive medo de você, quando talvez você é que devesse ter medo de mim

E se Adam estivesse comigo, eu sentiria ainda mais pressão. Não apenas uma mulher na rua e um homem negro atrás dela, mas uma mulher com um menino pequeno, que ela tem de proteger. E não importa que vocês dois tenham a mesma idade. Você é um homem, Jamal, e Adam é um menino. Magro, baixo, os ombros meio caídos, feito um filhote de passarinho que ainda não conseguiu abrir as asas. E por isso eu não consigo compreender. Sua foto no jornal, os olhos generosos, os ombros largos. Pensar que todo esse tempo eu tive medo de você, quando talvez você é que devesse ter medo de mim, daquilo que sou capaz de fazer nascer de dentro de mim.

Agora eu tenho medo o tempo todo, Jamal. Medo de tudo. Mas então eu não tinha tanto medo, só muito espaçadamente. Lembro que toda noite nós três descalçávamos os chinelos no chão de carpete e íamos dormir. Na cama de casal eu lia no telefone as notícias de Israel, até Michael dizer “É tarde” e baixar as persianas apertando um botão. Do outro lado das persianas ficava o quintal, e depois do quintal um espaço verde e tranquilo, que se juntava a uma alameda verde e tranquila, numa das cidades mais verdes, tranquilas e seguras da América.

4

Na véspera de Rosh Hashaná um homem empunhando um facão entrou numa sinagoga reformista em uma das cidades mais verdes, tranquilas e seguras da América. Na sinagoga havia duzentas e vinte pessoas rezando, e quinze funcionários da firma de catering. No grande salão, em geral usado nas comemorações de bar-mitzvá, já estavam arrumadas as mesas para a comemoração de Rosh Hashaná. Junto às paredes havia cadeiras com dispositivos especiais para bebês e crianças, pois, embora os fiéis assíduos da sinagoga fossem na maioria pensionistas, para as festas vinham também famílias mais jovens, e netos e bisnetos. A oração no andar de cima acabara de terminar e as pessoas começavam a descer pela escada. No salão do primeiro andar os funcionários estendiam toalhas brancas nas mesas e dispunham sobre elas tigelas com maçãs e vidrinhos com mel de Israel.

Depois, no noticiário, disseram que eles tiveram sorte, o homem que atacou a sinagoga em Pittsburgh estava armado com um fuzil semiautomático, e conseguiu matar dez pessoas que estavam rezando, antes de ser preso. Aqui em Palo Alto quatro pessoas ficaram feridas e só uma mulher foi morta. Entendi ao que eles estavam se referindo no noticiário, mas eu sabia que os pais de Lia Weinstein não tiveram sorte alguma. A filha deles estava junto à porta de entrada quando o rapaz entrou correndo com o facão…

Na foto no noticiário ela parecia mais jovem do que seus dezenove anos. Talvez por causa da maquiagem. Tinha um rosto redondo e olhos castanhos e suaves, e a maquiagem, em vez de fazê-la parecer mais velha, ressaltava ainda mais a inexperiência de suas mãos. Nas fotos que foram tiradas pouco antes do atentado ela está na entrada da sinagoga, num vestido branco de festa, as mãos abraçando o corpo num gesto de alguém que na verdade não gosta de ser fotografado, mas sabe que é preciso, que a família não abriria mão. Uma garota educada, mas, quando aquele homem correu para a sinagoga com o facão na mão, Lia Weinstein não se comportou como uma garota. Ela empurrou a avó para trás e pôs-se na frente dela, e isso foi a última coisa que ela fez.

Michael entrou e disse ‘Houve um atentado’, e quando Iael perguntou, onde, em Israel, ele disse, ‘Em Israel não, aqui’

Vi as imagens algumas vezes nos dias que se seguiram ao atentado. A jovem gorducha de vestido branco está de pé no vestíbulo, junto ao avô e à avó. Ao fundo ouvem-se as vozes do coro da sinagoga entoando um pot-pourri de canções festivas. É difícil identificar o momento exato em que o rumor alegre de canções e conversas se transforma em gritos de pavor. Primeiro ouvem-se algumas vozes no lado de fora, mas ainda não dá para saber que são gritos de garotas, e às vezes é difícil distinguir entre sons de riso e sons de pânico. E subitamente, de uma só vez, já não pode haver engano: os sorrisos se apagam dos rostos, as pessoas então procuram abrigo. O homem com o capuz corre para dentro e todos fogem dele, pisoteando-se, menos Lia Weinstein, que, em vez de fugir, empurra a avó para trás, e talvez tenha sido esse movimento, diferente dos outros movimentos, que atraiu o olhar do homem que corria, e o dirigiu para ela. No vídeo, ele se curva sobre ela por um momento, só um instante rápido, e então puxa a faca e continua a correr para dentro da sinagoga. Quem filmou tudo isso, um dos fiéis no vestíbulo superior, documentou o atacante continuando a correr, por isso é impossível ver o que aconteceu exatamente com Lia nos momentos seguintes, apesar de ouvirem bem os gritos do avô e da avó dela, e também os de um garotinho que estava ali perto e que não conhecia Lia antes disso, mas viu a garota de branco desabar subitamente, coberta de sangue. Até que as ambulâncias tivessem permissão para entrar, Lia já tinha perdido tanto sangue que não puderam fazer nada.

Estávamos em casa quando noticiaram o atentado. Lembro exatamente onde estava cada um de nós. Michael, junto à churrasqueira, lá fora, com o irmão dele, Assi, que tinha chegado de Israel naquele mesmo dia para uma visita, com Iael e as crianças. Adam estava na piscina atrás da casa, com Tamir e Aviv. Eu e Iael estávamos na cozinha, tentando salvar um bolo de mel que não tinha crescido como deveria. Michael entrou de repente, o telefone na mão, e disse “Houve um atentado”, e quando Iael perguntou, preocupada, onde, em Israel, ele balançou a cabeça negativamente e disse, “Em Israel não, aqui”.

Ficamos acompanhando as notícias durante todo o jantar. Após a sobremesa as crianças subiram para ver alguma coisa no computador e nós ficamos na sala de estar assistindo aos relatos na televisão. Tarde da noite, quando já estávamos na cama, alguém enviou pelo WhatsApp a filmagem da sinagoga. Eu não sabia se deveríamos assistir. Disse a Michael que talvez fosse um desrespeito às pessoas que estiveram lá. Não era um filme de ação. Eram pessoas reais, e aquele tinha sido o momento em que suas vidas foram destruídas. Mas Michael insistiu e quis assistir. Disse que era importante. “Não estamos assistindo como diversão”, ele disse, “estamos assistindo para compreender o que aconteceu lá, e para pensar como é preciso se comportar se acontecer novamente.” Assistimos uma vez, e mais uma. Quando Michael se dispôs a assistir mais uma vez, eu disse basta.

Tarde da noite minha mãe ligou de Israel e quis ouvir mais detalhes. A notícia que eu tinha encaminhado a ela assim que soubemos do atentado não lhe bastara. Assegurei mais uma vez que estávamos todos bem. Contei o que já se sabia aqui.

“Disseram aqui no noticiário que ele é negro”, ela disse. “Desde quando negro ataca judeu? Isso sempre foi coisa de branco.”

“Um ataque exatamente na véspera de Rosh Hashaná”, disse ela, “quer dizer que ele planejou isso antecipadamente”, e acrescentou que tinha enviado naquele dia, pelo correio, um presente de Rosh Hashaná para Adam, que com certeza ele receberia dentro de alguns dias.

“Você viu a filmagem da sinagoga?”, perguntou. “Sim”, respondi. “Que coisa terrível”, minha mãe suspirou ao telefone. “Só não me diga depois que aí onde vocês estão é um lugar mais sadio para criar os filhos.” De noite tive pesadelos dos quais não consegui me lembrar quando acordei, mas sabia que a garota da sinagoga estivera neles. Naquela manhã pedi a Adam que não assistisse à filmagem, se alguém a enviasse para ele. Ele perguntou se Michael e eu tínhamos assistido. Eu disse que não.

Na manhã do enterro, Michael e eu levamos Adam para a escola e depois fomos juntos até o cemitério. Não conhecíamos a família e não frequentávamos a sinagoga reformista, mas queríamos demonstrar solidariedade. Quando chegamos, vimos mais israelenses, que também vieram expressar seu apoio. Alguém nos contou que Lia Weinstein tinha terminado o ensino médio na escola de Adam dois anos antes, e estudava em Boston. Seus pais tinham comprado uma passagem aérea para ela voltar para casa por ocasião da festa de Rosh Hashaná. No estacionamento do cemitério os israelenses se aglomeravam e falavam hebraico, e não longe deles estavam os judeus americanos, falando baixinho em inglês, e nos dois grupos dizia-se a mesma coisa: que era inconcebível que isso tivesse acontecido aqui, em Palo Alto. Depois entramos no cemitério. Os pais de Lia Weinstein choravam amargamente. Ela era filha única.

‘Disseram aqui no noticiário que ele é negro’, ela disse. ‘Desde quando negro ataca judeu? Isso sempre foi coisa de branco’

Na mesma tarde fomos buscar Adam na escola e fomos todos à sinagoga onde isso havia acontecido, para acender uma vela e depositar uma flor nos degraus do lado de fora. Havia muita gente na praça diante do templo, além de algumas equipes de noticiários. Uma repórter de televisão com cabelos louros de corte curto falava para a câmera com expressão séria. Ficamos todos prestando atenção nela, como se a essa mulher estranha coubesse a prerrogativa de nos contar quem éramos nós, o que acontecera conosco. “Paul Reed nasceu em cresceu em East Palo Alto. Quando Palo Alto foi inundada pelas pessoas do Hi-Tech que vieram trabalhar no Vale do Silício, os aluguéis subiram também nos bairros mais pobres, e a família Reed teve de mudar para Oakland. Cerca de uma hora antes de sair de casa com o facão na pasta e entrar no ônibus para Palo Alto, Reed publicou uma postagem antissemita no Facebook. Seus pais contam que nas últimas semanas seu estado de espírito foi desmoronando. No passado ele foi internado duas vezes num instituto psiquiátrico.”

“Ele não tem problemas psiquiátricos”, resmungou Assi, baixinho, “ele é um merda de um antissemita e terrorista. Que não façam dele um maluco irresponsável por seus atos e depois o libertem.” “Ninguém vai libertá-lo”, disse Michael. “Mas é preciso levar em consideração que este homem foi internado duas vezes. Pode ser que assim como atacou uma sinagoga ele poderia ter atacado uma mesquita, ou um banco, e aí não seria exatamente um incidente antissemita.”

‘O FBI ainda não concluiu se Paul Reed agiu sozinho ou se é parte de um grupo de ódio’

Assi fez um gesto de desprezo com a mão. “Se os seus malucos na América podem atacar qualquer outro lugar, por que, de algum modo, no fim eles sempre chegam numa sinagoga?”

A repórter estava escutando alguma coisa que lhe estava sendo dita nos fones de ouvido, e então assumiu de novo uma expressão séria e encarou a câmera. “Testemunhas oculares na sinagoga de Palo Alto disseram que viram dois homens nas proximidades do lugar antes do atentado. Estão fazendo varreduras no lugar. O FBI ainda não concluiu se Reed agiu sozinho ou se é parte de um grupo de ódio capaz de atacar novamente.”

A última frase provocou murmúrios no público. Iael e Assi trocaram olhares. Adam disse: “Mãe, se é um grupo de ódio, então o mais lógico é que eles venham aqui para fazer mais um atentado, pois neste momento tem muitos judeus na rua”. Michael pôs a mão no ombro dele. “Esta jornalista está criando um pânico generalizado à toa. Eu posso dizer que em noventa e nove por cento dos casos quem realiza atentados como esse são psicopatas que agem sozinhos.” “Não podemos ter certeza disso”, eu disse. E vi nos olhos das pessoas à minha volta o mesmo ponto de interrogação. As fileiras de velas acesas nos separavam da rua. Barreiras policiais nos cercavam do outro lado do gramado. Tensos a cada rumor, olhando para os lados, aproximamo-nos uns dos outros feito carneiros na noite. (Tradução de Paulo Geiger).

Nota do editor
Outro lugar será lançado em 2022 no Brasil pela editora Todavia.
Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Ayelet Gundar-Goshen

Psicóloga clínica, escreveu Uma noite, Markovitch (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #55 em outubro de 2021.