Literatura israelense,

O intérprete

Tradutor de escritores como Amós Oz e David Grossman, Paulo Geiger verte para o português seu centésimo livro

01abr2022

Paulo Geiger tinha 73 anos quando começou sua carreira como tradutor. Já havia feito alguns poucos trabalhos anteriores na área, de forma esporádica, mas a tradução como atividade principal veio tarde na vida de um homem que esteve sempre às voltas com a palavra. O marco inicial dessa nova fase foi Rimas da vida e da morte, do israelense Amós Oz, lançado em 2008 pela Companhia das Letras. Até então, sua experiência se resumia a ter traduzido três obras de não ficção do inglês para o português, em 1993 e 1994: Os judeus e o judaísmo, A Bíblia para crianças, de Adão a Moisés e Dicionário judaico de lendas e tradições. Hoje, quinze anos depois da estreia com Oz, ele está traduzindo seu centésimo livro.

Atualmente, quem tem feito mais companhia a Geiger é outro autor israelense, David Grossman. O lançamento de A vida brinca muito comigo assinala a quarta “parceria” dos dois, iniciada quando a editora Nova Fronteira o chamou para fazer a revisão da tradução de Ver: amor em 1994. Em 2011, foi convidado pela Companhia das Letras para traduzir O livro da gramática interior. Vieram depois O inferno dos outros e Fora do tempo — este o mais trabalhoso que Geiger já traduziu. “Grossman tem um hebraico muito peculiar. E esse livro é cheio de semirrimas, que chamo de ressonâncias. É uma prosa às vezes dividida em versos, que tive que pegar e aplicar em português”, conta.

No mais recente, A vida brinca muito comigo, há outra dificuldade. “A protagonista comete erros porque fala o hebraico deturpado pela língua original dela, servo-croata. Tive que achar adaptações paralelas em português.”

Segundo Geiger, para transmitir bem o conteúdo de um livro em outra língua é preciso conhecer a obra e o autor. “Tenho que estar em sintonia com seus sentimentos, suas motivações e seus pensamentos, compreender os contextos e as circunstâncias, entrar o máximo possível em sua cabeça, seu coração e seu estômago.” No caso de Grossman e Oz, isso é facilitado pelas afinidades políticas. “Os dois são, como eu, sionistas de esquerda, que defendem a ideia de dois Estados para dois povos. Traduzo os livros de política de Oz quase como se estivesse repetindo o que penso.”

O encontro com Oz começou em 2007, quando a revista Piauí pediu que traduzisse o conto “Cenas da vida na aldeia”. Meses depois, a Companhia das Letras encomendou a ele a tradução de Rimas da vida e da morte, ao qual se seguiram Cenas da vida na aldeia, Uma certa paz, O monte do Mau Conselho, Entre amigos, Judas, Como curar um fanático, Mais de uma luz, Sumchi, Do que é feita a maçã e os ainda inéditos Terras do chacal e Outro lugar. Geiger se consultou por e-mail com Oz até a morte do escritor, em 2018.

‘Traduzo os livros de política de Oz quase como se estivesse repetindo o que penso’

No momento, Geiger se dedica simultaneamente a cinco traduções: um texto em hebraico para o cineasta Amos Gitai e quatro livros em inglês para as editoras Sextante, Companhia das Letras e LeYa. Entre eles está O mundo e nós (LeYa), do filósofo Roberto Mangabeira Unger, um projeto de fôlego que chega às livrarias neste mês, junto com outro inédito de Unger, A religião do futuro, e obras do filósofo já lançadas, mas que precisavam de atualização. “Paulo é um profissional raríssimo, em qualificação, empenho e parceria”, diz Leila Name, diretora-geral da LeYa.

Rotina

O tradutor passa boa parte do dia em seu escritório — chamado por uma sobrinha de “batcaverna” —, que ocupa um espaço onde antes ficavam o ar- -condicionado central e um quarto de empregada em seu apartamento em Copacabana. Segue uma rotina disciplinada: divide o número de laudas pelos dias que tem até a entrega e faz uma média diária. “No caso do Unger, são sete laudas por dia. Só encerro o trabalho após concluir essa cota.” Há épocas em que trabalha das 8h30 às 19h, seis dias por semana. Eram sete, mas reduziu para descansar os olhos por um dia. A maior parte das traduções que faz é do inglês. “E de livros de não ficção, já que a ficção usa muito o inglês informal e nunca vivi num país de língua inglesa.”

Já as obras em hebraico costumam ser de ficção — afinal, a língua entrou cedo na vida do judeu nascido em 1935, na Tijuca. Seus avós paternos eram de uma cidadezinha da antiga Palestina, Safed. Os avós maternos eram de Moghilev Podolski, na Ucrânia, e fugiram do forte antissemitismo. Sua mãe veio muito jovem para o Brasil, onde foi registrada novamente. Ao se casarem, seus pais foram morar com os avós maternos. Em casa, conversavam em ídiche, mas o pai falava também em hebraico, e, ainda criança, Geiger já dominava o idioma.

Estudou em dois colégios judaicos da Tijuca, até que, aos dezoito anos, quis se aprofundar no hebraico e passou um ano em Israel: seis meses em um curso em Jerusalém, seis meses em um kibutz. No curso de cinco turmas, ele era o aluno mais adiantado da classe mais avançada — tanto que,quando os estudantes foram conhecer o presidente de Israel, ele foi escolhido para saudar o governante. Falou de improviso. À época, já militava no movimento juvenil judaico. “A militância não era uma coisa paralela à vida. Era uma dedicação total”, lembra ele, que ao retornar ao Brasil virou editor da revista e do jornal do movimento.

Em 1958, aos 23 anos, foi fazer a aliá — termo que designa a migração judaica para Israel. Lá, voltou a viver num kibutz por seis anos. “Foi uma experiência única. Eu plantava, semeava, arava, adubava, colhia. Fui agricultor, regente do coro, fiz o exército, participei de cursos. Não tinha geladeira nem TV. No começo, o banheiro ficava do lado de fora. Mas era uma vida plena, não sentia falta de nada. Entendo o kibutz como uma forma de vida ideal para a humanidade. É uma vivência solidária, em que se partilham as coisas. Você não tem nada, mas ao mesmo tempo tem tudo.” Casou-se no kibutz com Lea Erlich, com quem divide mais de sessenta anos de união.

Geiger editou cerca de cinquenta enciclopédias e dicionários, como a ‘Barsa’ e o ‘Aurélio’

De volta ao Brasil, cursou design na Escola Superior de Desenho Industrial e, em 1965, começou uma bem-sucedida carreira no mercado editorial. Foi editor e editor executivo de cerca de cinquenta dicionários e enciclopédias, como Barsa, Mirador e Delta Larousse. Tornou-se amigo de nomes como Otto Maria Carpeaux e Mauro Villar e trabalhou ao lado de duas figuras que marcaram sua vida: o publisher Abrahão Koogan e o filólogo Antônio Houaiss.

Na Nova Fronteira, foi editor executivo do dicionário Aurélio, cuja edição eletrônica — empreitada pioneira no Brasil — planejou e coordenou ao lado dos colegas. Mais tarde, na Lexikon, criou vários dicionários Caldas Aulete: o Novíssimo Aulete, o Aulete escolar, o Aulete com a Turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo e o Aulete com a Turma do Cocoricó, todos adotados pelo MEC, além do Aulete com a Turma da Mônica. Com uma cultura literalmente enciclopédica, Geiger pode traduzir obras de várias áreas do conhecimento. “Minha lente é grande-angular.”

Apesar da longa e afetiva relação com as palavras, Geiger nunca se aventurou a ser escritor — com exceção da coautoria de A nova ortografia sem mistérios e Dicionário histórico de religiões. Se lhe perguntam a razão, responde com a modéstia habitual: “Não há nada que eu possa dizer que já não tenha sido dito melhor”.

Essa editoria tem apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Mauro Ventura

Escreveu O espetáculo mais triste da Terra: o incêndio do Gran Circo Norte-Americano (Companhia das Letras).