Literatura israelense,

Mindfulness Ltda.

Em ‘Happycracia’, professora da Universidade Hebraica de Jerusalém e psicólogo debatem a busca pela felicidade. Leia capítulo inédito.

23nov2021 | Edição #52

A oferta e a demanda crescentes por terapias, serviços e produtos da felicidade nos últimos anos deveriam ser interpretadas na verdade tanto como sintoma quanto como causa de uma tendência cultural crescente de olhar para dentro de nós em busca das chaves psicológicas e da força de vontade necessárias para lidar com incertezas e com sentimentos de impotência e encontrar soluções para situações pessoais de insegurança.

O mindfulness é um bom exemplo disso. Essa técnica transmite a mensagem de que voltar nossas prioridades para dentro não representaria nenhum tipo de derrota ou desesperança, mas, antes, seria a melhor forma de nos desenvolvermos e nos empoderarmos em meio a uma realidade frenética e tumultuosa. Esteja ele envolvido por uma aura espiritual ou por uma linguagem mais científica e secular, o mindfulness encoraja as pessoas a acreditar que tudo na vida dará certo caso elas acreditem nelas mesmas, sejam pacientes, não julguem demais e aprendam a se desapegar.

Nesse sentido, os treinadores de mindfulness instruem seus clientes a se concentrar em suas paisagens interiores e autênticas, aceitar o momento presente e os sentimentos autênticos, aproveitar as pequenas coisas da vida, priorizar interesses e alcançar atitudes positivas, despreocupadas e resilientes, independentemente do mundo exterior. Por exemplo, uma edição especial de 2016 da revista Time, intitulada “The Science of Happiness: New Discoveries for a More Joyful Life” (A ciência da felicidade: novas descobertas para uma vida mais alegre), dedicada de maneira extensiva a questões relativas ao mindfulness, à espiritualidade e à neurociência, recomendou em muitos de seus artigos que as pessoas deveriam “viver no presente” como forma de serem “mais produtivas e felizes”, deveriam resguardar um tempo para si mesmas “contra pessoas que precisam do seu tempo, como sua família”, e deveriam “descobrir o prazer” mesmo nas atividades mais mundanas, como “cortar os vegetais em pedaços iguais, por exemplo”. Um artigo, intitulado “The Art of Being Present” (A arte de estar presente), conta a história de Tim Ryan, congressista democrata de Ohio que ficou tão fascinado com sua experiência de mindfulness que decidiu defender o uso de recursos federais para pesquisas na área:

“Estressado e exausto, Ryan participou de um retiro de mindfulness conduzido por Kabat-Zinn em 2008, logo depois da eleição. Ryan entregou seus dois celulares e terminou a experiência após um período de 36 horas de silêncio. ‘Minha mente ficou muito quieta, e senti a experiência de ter minha mente e meu corpo sincronizados de verdade’, disse. ‘Fui até Jon e disse, ‘puxa vida, precisamos estudar isso — levar para nossas escolas, para nosso sistema de saúde’.”

O ‘mindfulness’ se tornou uma indústria global que arrecada mais de 1 bilhão de dólares por ano

De fato, nos últimos anos o mindfulness realmente se estabeleceu como o principal tema nas políticas públicas, nas escolas, nas instituições sanitárias, nas prisões e nas Forças Armadas — e alcançou até programas psicológicos voltados ao oferecimento de tratamentos eficientes e de baixo custo para pessoas pobres com depressão (e que alcançam desde mulheres afro-americanas socialmente excluídas em Chicago até pessoas sem-teto abrigadas nos albergues de Madri).

O assunto também cresceu como tópico de discussão acadêmica. Introduzido em fins dos anos 80 e popularizado por psicólogos positivos no início da década de 2000, o interesse no conceito cresceu rápido após 2008. Para darmos apenas um exemplo, enquanto pesquisas no motor de buscas PubMed de 2000 a 2008 retornavam cerca de trezentas publicações com “mindfulness” no título ou no resumo, as mesmas pesquisas, realizadas entre 2008 e 2017, apresentavam mais de 3 mil artigos, que agora incluíam as áreas da economia, da administração de empresas e da neurociência.

Lucros

Nesse mesmo intervalo de tempo, o mindfulness se tornou uma indústria global lucrativa que arrecada mais de 1 bilhão de dólares por ano. Inúmeros produtos que recebem o rótulo “mind- fulness”, como cursos, encontros on-line, retiros em grupo e até mesmo aplicativos de celular estão em expansão exponencial de popularidade e colhem lucros significativos.

Tomemos como exemplo o Head- space, o principal dentre mais de mil aplicativos de mindfulness hoje disponíveis no mercado, que já foi baixado mais de 6 milhões de vezes e que, sozinho, faturou mais de 30 milhões de dólares em 2015. Na esfera do trabalho, cada vez mais corporações multinacionais, como General Mills, Intel, Ford, American Express e Google — que recentemente inaugurou o programa Search Inside Yourself (busque dentro de você mesmo) — estão implementando técnicas de mindfulness a fim de ensinar seus empregados a lidar melhor com o estresse e a insegurança e a transformar a administração emocional em um comportamento mais produtivo e flexível. O mindfulness atingiu até mesmo a bem estabelecida indústria do coaching: atualmente, o coaching de mindfulness é uma tendência em voga.

Multinacionais estão implementando técnicas de ‘mindfulness’ a fim de ensinar seus empregados a lidar com o estresse e a insegurança

Hoje, o mindfulness é valorizado por todos os especialistas em felicidade que contaminam o espectro social, com os psicólogos positivos na dianteira. Sem dúvida, o mindfulness se harmoniza bem com uma ciência e uma prática profissional da felicidade que reificam a interioridade, interiorizam a responsabilidade e transformam a atenção obsessiva com nossos Eus interiores, nossos corpos e nosso autoaperfeiçoamento psíquico em imperativos morais, necessidades pessoais e vantagens econômicas. Também está em sintonia com os pressupostos individualistas e a noção limitada de social que são típicos a esses acadêmicos e profissionais da felicidade, assim como com a visão neoliberal do mundo como um todo.

Como muitos outros conceitos e técnicas apoiados pelos cientistas e especialistas da felicidade, o mindfulness viceja na promessa de atuar como uma panaceia contra muitos dos problemas endêmicos que afligem as sociedades neoliberais de hoje. Ele também floresce da crença de que a origem desses problemas pode ser encontrada nos próprios indivíduos, e não na realidade socioeconômica. Supostamente, não seria a sociedade que precisaria ser alterada, mas seriam os indivíduos que teriam que se adaptar, mudar e melhorar.

Como muitos de seus equivalentes semânticos, o mindfulness também fornece às pessoas uma sensação de paz, de normalidade e de oportunidade em uma economia de mercado insegura. O que seus seguidores encontram, contudo, não vai além de técnicas que fazem com que suas atenções se voltem para si mesmos, e não para o mundo ao redor — e nem sempre com os efeitos benéficos esperados e prometidos. Como Miguel Farias e Catherine Wikholm indicam em seu livro The Buddha Pill (A pílula de Buda), é frequente que o mindfulness intensifique sentimentos de depressão e de ansiedade, além de criar certa sensação de afastamento da realidade como consequência de seu excessivo autocentramento.

E as mesmas mensagens de preocupação consigo mesmo e autocrítica obsessivas se aplicam à felicidade em todas as suas não-tão-diferentes variáveis, sejam elas provenientes da insistência irritante dos livros de autoajuda; dos ensinamentos dos gurus de mindfulness em cursos de oitocentos dólares; dos exercícios de automonitoramento dos aplicativos de celular; ou dos corredores sagrados do templo do conhecimento científico objetivo: o que os defensores da felicidade prometem como solução para os problemas da humanidade é pouco mais do que uma “fuga para dentro”. Na verdade, o que é efetivamente compartilhado pelo mindfulness e pelos muitos outros conceitos e técnicas relativos à felicidade propostos pelos especialistas e pela indústria é um individualismo profundo e uma compreensão limitada do social. (Tradução de Humberto do Amaral)

Nota do editor: Happycracia vai ser publicado no Brasil em 2022, pela Ubu.
Este texo foi realizado com o apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Eva Illouz

É professora de sociologia na Universidade Hebraica de Jerusalém.

Edgar Cabanas

É doutor em psicologia pela Universidade Autônoma de Madri.

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.