Literatura israelense,

Contos inéditos de Etgar Keret

‘Versão do diretor’, ‘Opiniões cabais sobre questões candentes’, ‘Azeitonas ou blues do fim do mundo’ e ‘Fora’

26abr2021

Versão do diretor

Maček Smolansky era cineasta, empresário e filósofo. Mas, antes de mais nada, era um perfeccionista. Portanto, ninguém ficou muito surpreso quando anunciou que seu novo filme, que se chamaria “Vida”, seria filmado com três câmeras e teria precisamente a duração de uma vida. As filmagens começaram a partir do nascimento de Mateusz Krotoczowski, o protagonista introvertido, e duraram 73 anos. Nas gravações da cena final, na qual Mateusz se mata enforcado no porão da sua casa após ser diagnosticado com câncer de próstata em estágio avançado, toda a equipe chorou, mesmo quando as ordens de fazer silêncio do sonoplasta não conseguiram deter as lágrimas.

A edição durou 114 anos. Alguns meses depois do início, Maček morreu em idade avançada. A edição de som durou outros 96 anos, e muitas reclamações foram ouvidas nas redes sociais sobre o modo descuidado como foi feita.

Críticos veteranos de cinema foram convidados para a sessão de estreia, e os ingressos limitados oferecidos ao público foram vendidos no mercado paralelo por um preço exorbitante. A sessão durou, como fora prometido, 73 anos. Quando subiram os créditos finais e as luzes da sala foram acesas, os funcionários do cinema descobriram que, exceto por um espectador — ele próprio já não jovem —, todo o público tinha morrido. A maioria fedia muito. Mas entre todos esses cadáveres putrefeitos estava sentado o único espectador vivo, nu e careca, chorando como um bebê, que, quando não teve mais o que chorar, enxugou os olhos, levantou-se e começou a caminhar em direção à saída como se nada tivesse acontecido.

Esse homem careca era filho de uma crítica de cinema famosa, que quando entrou na sala ainda não sabia que estava grávida. Ele nasceu no oitavo mês de sessão e cresceu na sala escura do cinema, hipnotizado pela tela. Quando abriu as portas e saiu para a rua, o sol o cegou. As dezenas de repórteres que aguardavam fora da sala avançaram em direção a ele com seus microfones, perguntando o que tinha achado do filme. “Filme?”, disse o homem careca, enquanto seus olhos piscavam na luz do sol. Ele tinha total certeza de que aquilo era a vida.

Opiniões cabais sobre questões candentes

Era pequena e estava afixada no final da coluna de obituário, como uma órfã amedrontada que se esconde entre as lápides: “Você tem opiniões cabais sobre questões candentes?”, perguntava o título e, abaixo dele, como uma resposta pronta para uma pergunta totalmente diferente, estava escrito: “Agora você pode ganhar muito dinheiro com as suas opiniões”; tudo em letras pretas, exceto as palavras “cabais”, “candentes” e “dinheiro”, destacadas em vermelho.

A entrevista de emprego teve lugar em um escritório improvisado, sem janelas, no andar do estacionamento do Edifício Clal, com uma mulher baixa, na verdade uma anã, de rosto agradável.

“Vocês com certeza devem ter sido inundados por candidatos, com a recessão e tudo”, Yinon tentou explorar o terreno.

“Na verdade, não”, disse a anã, “infelizmente, está abaixo do esperado.”

“É por causa da localização”, consolou Yinon, e completou: “O jornal fodeu com vocês. No lugar de terminar o anúncio na página de vagas de emprego, ele só foi acabar na página de obituários”.

“Fodeu com vocês”, a anã repetiu as palavras dele com um sorriso. “Ótimo, está entendendo? Você já deu uma opinião peremptória sobre questões de comunicação.”

“Tenho mais uma porção de opiniões”, Yinon se entusiasmou, “de verdade.”

“Ótimo”, disse a anã, “você está disposto a detalhar, por favor?”

E Yinon pigarreou e disse: “Acho que depois da morte existe alguma coisa, algo que, apesar de não ser possível lhe dar um nome, é muito tangível, triste e solitário. Acho que as crianças precisam respeitar os mais velhos. Acho que o medo faz com que as pessoas tomem decisões ruins. Acho que os jogadores de futebol israelenses não têm por que estar nas principais ligas da Europa…”.

“Não tenho certeza se você é a pessoa que combina com a gente”, disse a anã acendendo um cigarro longo e fino.

“Mas por quê?” protestou Yinon, “porque falei em crianças? Para mim é importante destacar que, no fundo, eu sou uma pessoa muito liberal e calorosa…”

Contudo a anã o interrompeu novamente: “O anúncio frisou explicitamente que as opiniões precisam ser contundentes e se ocupar de temas candentes. E, com todo o respeito aos mais velhos, trata-se de uma questão longe de ser atual…”.

“Acho que é preciso restaurar a pena de morte”, explodiu Yinon. “Por que Eichmann foi enforcado e os árabes, não? Por quê? Só porque ele é alemão? Isso é uma discriminação reversa. Discriminação de europeus, é isso o que eu penso.” E depois de um momento de silêncio, bateu com força na mesa e continuou: “Isso é um disparate”.

“Ok”, disse a anã, “venha, eu te contarei mais sobre o trabalho.”

*

A anã mandou Yinon fazer entrevistas nas pesquisas de rua. Inicialmente em canais locais, mas prometeu que isso seria por alguns meses apenas, para que ganhasse experiência, e que, depois disso, poderia passar para canais nacionais. Caso se saísse bem nas pesquisas, ela disse, ele seria promovido até mesmo para a função de debatedor ou de comentarista. Isso era estimulante e demandava uma dose adequada de todo tipo de assunto, além de ser preciso expressar uma opinião que refletisse o estado de espírito do povo ou que pudesse provocar os espectadores. E era preferível que fossem os dois. Nas primeiras vezes, na imagem que aparecia na parte inferior da tela quando ele falava, estava escrito “Yinon Mankin: técnico em odontologia”. Contudo, a anã lhe explicou que isso era temporário, só até o conhecerem um pouco mais, e de verdade, bem rapidinho, o título foi substituído por “Yinon Mankin: sr. sabe tudo”.

As pessoas começaram a reconhecê-lo na rua. As reações eram positivas ou de indiferença, mas nunca negativas. Uma moça chamada Debbie lhe disse no supermercado: “Me lembro de você! Você é aquele que berrou ontem no noticiário. Sobre o que foi mesmo?”, e a pergunta singela evoluiu para uma conversa, e a conversa para amizade, e a amizade conduziu mais tarde, em Rosh Hashaná, para ser mais exato, para sexo consensual. Na véspera de Yom Kipur, eles caminharam lentamente pela Dérech Hashalom — o Caminho da Paz — e crianças com cabelos espetados os rodearam de todos os lados em patinetes elétricas e em bicicletas.

“Não acho que as crianças devem andar de bicicleta justamente na véspera do Yom Kipur”, ele disse para Debbie. “É como fazer de propósito. E um povo que educa suas crianças a fazer de propósito contra a sua tradição e seus costumes é um povo que…”

“Agora intervalo”, Debbie riu para ele e lhe estendeu a mão e dessa forma os dois caminharam de mãos dadas pelo meio da rua por um bom tempo sem dizer uma palavra.

*

Na mesma quinta-feira ele foi convidado como debatedor em um programa de política. A mulher sentada à sua esquerda — árabe, se ele não está enganado, ou religiosa, alguém com um pedaço de pano na cabeça — gritou repetidas vezes com o moderador que tratasse de ter vergonha na cara. E quando chegou a vez de Yinon falar, antes mesmo de ter tempo de dizer uma palavra, ela resmungou com raiva para si mesma e para o microfone: “branco privilegiado”. Yinon quis lhe responder com algo contundente, mas também esclarecedor, algo sobre um amor que pode curar quase tudo e como, desde que tinha encontrado Debbie, ela iluminava a sua vida como um sol que pinta a realidade com delicadas cores de aquarelas, mas, como sabia que tudo isso não ficaria bem na televisão, ele gritou: “Cale a boca, sua parasita. Só graças a privilegiados como eu que cumprem o serviço militar de reservistas e pagam impostos é que este país segue sobrevivendo”. Nesse ponto, a plateia já batia palmas em êxtase, e Yinon sabia que poderia voltar a se ocupar de todos os mesmos pensamentos acalorados e agradáveis que inundaram sua consciência e que o debate já rolaria por conta própria.  

Por que Eichmann foi enforcado e os árabes não? Por quê? Só porque ele é alemão? Isso é uma discriminação reversa’, explodiu Yinon

*

Esse foi o último programa de sucesso de Yinon. Depois disso, ele esfriou. A anã o chamou para conversar cara a cara e lhe disse que estava preocupada, e ele, por sua vez, pediu para ser mandado de volta para as entrevistas de rua, mas ela explicou que já não era possível porque ele era muito conhecido, e depois de mais algumas apresentações fracassadas no painel, eles se separam amigavelmente. 

Menos de uma semana depois, ele topou na seção “procura-se” com um anúncio lacônico: “Procuram-se pessoas apaixonadas” e, abaixo dele, sem nenhuma lógica sintática, constavam a palavra “dinheiro” e, em seguida, três pontos de exclamação. Yinon telefonou. Essa entrevista também foi realizada no estacionamento do Edifício Clal, mas dessa vez foi entrevistado por um homem gordo com o rosto enfeitado por um cavanhaque. O gordo lhe explicou que organiza um concurso de perguntas e respostas chamado “Amor verdadeiro”, ao qual comparecem casais apaixonados, e toda vez um dos membros do casal é colocado diante de uma situação terrível e o outro precisa sacrificar algo a fim de salvá-lo. “Nos Estados Unidos fizeram isso com homossexuais e foi alucinante”, disse o gordo. “Mas aqui em Israel as pessoas são mais conservadoras.”

No começo, Debbie não quis participar, mas quando compreendeu quanto isso era importante para Yinon, ela concordou. No primeiro programa fizeram com que ela deitasse sobre o ninho de formigas-de-fogo que se alimentam de carne humana, e Yinon foi obrigado a alimentá-las com seu globo ocular esquerdo a fim de salvá-la. Na semifinal, Debbie precisou se despir de forma provocante para salvar Yinon dos punhos assassinos de um violento lutador uzbeque e, no programa final, Yinon foi obrigado a beber de canudinho uma quantidade considerável da sua própria urina para resgatar Debbie de uma sequência de choques elétricos mortais.

*

Debbie e Yinon venceram e ganharam uma fortuna e também uma placa para a porta, feita de ouro puro, adornada com diamantes, na qual, entre os seus nomes, estava desfraldado um enfeite — um coração perfurado por uma flecha. O apresentador ficou chocado quando descobriu que o casal — que concordou em sacrificar tanto em nome do seu amor — nem ainda morava junto e, em reação, eles somente sorriram timidamente para ele. Essa foi a última vez que se apresentaram juntos na televisão. No caminho de volta do estúdio, um motorista de caminhão, que tinha cochilado ao volante, saiu da pista e se chocou com eles de frente. Yinon tinha se apresentado uma vez no painel que abordava morte nas estradas e atacara virulentamente a mentalidade provinciana do motorista israelense, mas isso não era o que importava agora. O acidente de carro foi horripilante, e no momento em que Debbie, toda ferida, tentou em vão reanimá-lo, Yinon já tinha descoberto que estava certo e que depois da morte realmente existe algo triste e solitário que não pode ter nome.

 Ilustração Felipe Cohen

Azeitonas ou blues do fim do mundo

No dia em que o mundo está acabando, eu como azeitonas. O plano original seria pizza, mas, quando entrei no supermercado e vi todas as prateleiras vazias, compreendi que poderia esquecer a massa de pizza e o molho de tomate. Tentei falar com a atendente idosa no caixa rápido, que estava justamente conversando com alguém em espanhol por Skype, mas ela me respondeu sem nem mesmo olhar para mim. Ela parecia arrasada. “Compraram tudo”, murmurou, “só sobraram absorventes e picles.”

Na prateleira de picles, só tinha sobrado um pote de azeitonas recheadas com pimentão vermelho do tipo que eu mais gosto.

Quando voltei para o caixa expresso, a atendente idosa já estava aos prantos. “Ele é um doce”, ela disse, “meu netinho querido. Eu não vou vê-lo mais, não vou poder cheirá-lo, nunca mais vou conseguir abraçar esse meu bebezinho.”

Em vez de responder, pus o pote sobre a esteira de compras e tirei do bolso uma nota de cinquenta. “Tudo bem”, falei, quando compreendi que ela não tinha a intenção de pegar a minha nota, “não precisa dar troco.”

“Dinheiro?”, a atendente riu. “O mundo está prestes a ser destruído e você me oferece dinheiro? O que eu devo fazer com isso?”
Dei de ombros. “Eu quero muito essas azeitonas. Se cinquenta não é suficiente, eu posso te dar mais, o quanto que for…”

“Um abraço”, interrompeu-me a atendente aos prantos, “vai te custar um abraço.”

Agora estou sentado na varanda, vendo televisão e comendo queijo com azeitonas. Foi complicado trazer a televisão aqui para fora, mas se isto é o fim, não tem coisa melhor para terminar tudo do que algumas estrelas no céu e uma péssima telenovela argentina. É o capítulo 436 e eu não conheço os personagens. Eles são bonitos, dramáticos, gritam uns com os outros em espanhol. Não tem tradução, então é difícil entender exatamente o motivo. Fecho os olhos e vou me lembrando da mulher do supermercado. Quando nos abraçamos, tentei ser pequeno, ser mais caloroso do que realmente sou, tentei ter o cheiro de um recém-nascido.

Fora

Quatro dias depois que o toque de recolher foi abolido, já estava claro para todos que ninguém tinha a intenção de sair de casa. Por razões obscuras, as pessoas preferiram permanecer dentro, com suas famílias ou sozinhas, ou simplesmente porque para elas era bom estarem afastadas de todo o resto. Depois de tanto tempo em casa, todas já estavam acostumadas: não sair para trabalhar, não ir ao shopping, não se sentar num café com uma amiga, não aceitar de repente na rua um abraço desagradável de alguém que serviu com você no Exército.

O governo deu às pessoas mais alguns dias para que se adaptassem, mas quando se compreendeu que a situação não mudaria, não houve outra opção. Forças da polícia e do Exército começaram a bater nas portas, ordenando aos cidadãos que saíssem e voltassem à rotina.

Não há o que fazer; depois de 120 dias sozinha, nem sempre é fácil lembrar em que exatamente você tinha trabalhado antes. E não é por não ter tentado. Havia muitas pessoas enraivecidas que tinham dificuldade em respeitar uma autoridade. Talvez uma escola. Ou talvez uma prisão. Você tem uma vaga lembrança de um jovem bigodudo atirando-lhe uma pedra. Será que você é assistente social?

Você fica parada na calçada em frente à sua casa, e os soldados que te acompanham para fora fazem sinal para que comece a andar. Então você anda. Sem saber exatamente para onde. Procura no celular algo que ajude você a reiniciar. Encontros anteriores, mensagens sem retorno, endereços em lembretes. Na rua, perto de você, pessoas correm, e algumas delas parecem muito apavoradas. Elas também não se lembram para onde tinham de ir, ou, se lembram, já não sabem como chegar lá e o que exatamente fazer no caminho.

Você está louca por um cigarro, mas esqueceu o maço em casa. Quando os soldados entraram e gritaram para que você saísse, você mal teve tempo de pegar as chaves e a carteira, esqueceu até mesmo os óculos de sol. Você poderia tentar voltar agora para o apartamento, mas os soldados ainda estão lá, batendo impacientemente nas portas dos vizinhos, então você vai ao mercadinho e descobre que tem apenas uma moeda de 5 shekels na carteira. O vendedor — um rapaz alto cheirando a suor — pega de volta o maço que lhe dera e diz: “Vou guardar para você aqui, perto do caixa”, e quando você pergunta se pode pagar no cartão, ele sorri como se você tivesse contado uma piada. Quando pegou o maço de volta, o dorso da mão dele, mão peluda como uma ratazana, tocou em você. Cento e vinte dias tinham se passado sem que alguém tivesse tocado você. Seu coração se acelera de medo, o ar assobia nos pulmões e você não sabe se vai se aguentar. Ao lado do caixa eletrônico está sentado um homem magro, de roupas sujas, e perto dele há uma caneca de lata. Você até se lembra do que é preciso fazer em casos como esse. Você passa por ele em passos rápidos, e quando ele conta em uma voz trêmula que já faz dois dias que não come, você olha para o outro lado como uma executiva, não permitindo troca de olhares. Não há com que se preocupar. É como andar de bicicleta, o corpo se lembra de tudo, e esse coração, que ficou aliviado quando você estava sozinha, endurecerá novamente em minutos.

(Tradução de Fercho Marquéz-Elul)

Este texto foi feito com o apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Etgar Keret

É autor de De repente, uma batida na porta e Sete anos bons, publicados pela Rocco.