Identidades, Literatura infantojuvenil,

Questão de gênero

A premiada ‘graphic novel’ que ajuda jovens trans e suas famílias a se entenderem — e despertou uma onda de censura nos EUA

01out2022

No ano passado, bibliotecas escolares de várias cidades estadunidenses baniram o premiado álbum em quadrinhos Gender Queer após uma barulhenta campanha de pais que acusavam o conteúdo de pornográfico, inadequado para menores. Em entrevista a Walter Porto, na Folha de S. Paulo, o quadrinista Art Spiegelman — que também teve o seu Maus, premiado com o Pulitzer, censurado nas escolas — explicou que a campanha contra Gender Queer está na origem da recente onda de censura a livros nas escolas dos Estados Unidos. Houve grande impacto midiático, as vendas do livro foram impulsionadas e as edições estrangeiras começam a ser publicadas, inclusive em português.

Problema comum no Brasil e nos Estados Unidos, o conservadorismo tenta brecar avanços na liberdade sexual e de gênero dos últimos anos. Mas o que significa queer? Muito usado nos Estados Unidos para definir identidades não heteronormativas, o termo originalmente significa “desviante da norma”, “não convencional”, e corresponde ao Q da sigla/acrônimo LGBTQIAPNB+, que abarca pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexo, assexuais, pansexuais, não binárias e mais.

A única receita para estar por dentro desses temas é repensar as definições de gênero e se informar. Para quem quer curtir e ao mesmo tempo ler tudo explicadinho, desenhadinho, Gender Queer, ou Gênero Queer, de Maia Kobabe, autore e ilustradore queer não binárie, é a melhor opção. Tudo que direi aqui está no quadrinho, que é autobiográfico e deve ser lançado em português em 2023.

Palavras

Maia Kobabe nasceu na Califórnia, numa família alternativa, acolhedora e intelectualizada. Ainda criança, começou a ter questões com corpo e gênero, mas as palavras lhe escapavam, e nem seus pais, compreensivos e abertos, sabiam como lidar. Então Maia pesquisou e procurou saber o que se passava no seu corpo e como a sociedade lida com essas questões.

Elu sublinha como foi importante ter acesso à literatura queer nas bibliotecas para poder se entender. Na faculdade de artes, começou a narrar em quadrinhos seu percurso de identificação de gênero e sexualidade como um exercício para se autoconhecer e como uma narrativa direcionada para sua própria família. Acabou agradando milhares de pessoas nos Estados Unidos, ganhou o Alex Award, da respeitada American Library Association, e o Stonewall Book Arward, da organização pró direitos LGBTQIAPNB+ Rainbow.

Maia nos deixa entrar em seu pensamento nesse misto de diário com memórias. Acompanhamos suas idas e vindas, dúvidas, angústias e questionamentos. Em entrevista, elu diz que os quadrinhos são a arte ideal para pessoas queer, pois no desenho cabem tanto o imaginário de desejar ter outro corpo como o sofrimento dentro do que se nasceu.

Maia nos mostra os mais sofridos sentimentos das pessoas queer em relação à genitália. Nós, mulheres cis, temos que nos acostumar com exames ginecológicos o mais das vezes incômodos, como a introdução de espéculos na nossa vagina, mamografias que esmagam nossos seios em máquinas semelhantes ao que imaginamos serem instrumentos de tortura. Em Maia, o espéculo se torna um alfinete gigante, que atravessa o seu corpo inteiro. O incômodo da menstruação é multiplicado ao infinito, e o que pra nós, mulheres cis, é um incômodo aparentemente administrável, para elu é um mar de sangue impossível de conter, e tantos outros mal-estares que podemos experimentar lendo livros como este. O sofrimento já está cada vez mais claro para parte da classe médica e de pais e mães, que não fogem do assunto em publicações, vídeos e palestras de apoio a adolescentes e crianças que sofrem terrivelmente sem acolhimento.

Gender Queer é uma boa escolha no cada vez mais extenso leque de opções de leitura disponíveis, pois é um mergulho na subjetividade de uma pessoa que se entende não binária — isto é, não se identifica nem com o gênero masculino nem o feminino — e assexual, desde a infância até a idade adulta, segundo elu mesme.

Um ponto alto do gibi é a conversa de Maia com a tia lésbica feminista, que ao mesmo tempo acolhe le sobrinhe e a questiona se “deixar de ser mulher para se tornar homem não tem um quê de misoginia”. O papo segue e as gerações se entendem. O diálogo explicita bem a questão de geração que atravessa esse debate e que deve ser encarada. Ao me ouvir conversar sobre transexualidade, bissexualidade e gênero com meu namorado, a filha dele de oito anos interfere: “Ah, mas isso é normal!”. Meu filho de dezessete anos volta e meia me dá notícias de meninas que se assumem lésbicas ou bissexuais, meninos bissexuais, jovens que transicionaram tanto de homem para mulher como de mulher para homem, e pessoas não binárias. Nos últimos anos, homens cis, gays ou não, têm usado saias, pintado as unhas, se maquiado. Esses nichos são o tão sonhado mundo livre que muitas gerações têm sonhado desde as revoluções comportamentais dos anos de 1960. Ainda somos uma pequena parcela da sociedade que não é governada pelo imperativo religioso. Talvez sonhemos com um imperativo ético, segundo o qual as pessoas possam ser o que quiserem sem prejudicarem as demais!

Quanto às narrativas brasileiras, sugiro que @s leitor@s vejam o filme Bixa travesty, de Claudia Priscilla e Kiko Goifman, um retrato de Linn da Quebrada que conta com o ponto de vista e a participação fundamental de sua mãe evangélica, Testemunha de Jeová na época. Remeto à Linn pois ela foi estrela do Big Brother Brasil e explicou para milhões, tim-tim por tim-tim, o que é ser travesti. Assim como Maia Kobabe me ensinou o que é ser queer.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Silvana Jeha

É autora de História da tatuagem no Brasil, publicado pela Veneta.